A avaliação mais ambiciosa feita até hoje da GiveDirectly é um divisor de águas.
Há cerca de uma década, a organização de caridade GiveDirectly distribui dinheiro diretamente a residentes pobres na África Subsaariana, começando no Quênia e depois expandindo para Uganda, Malaui, Ruanda, Libéria, a República Democrática do Congo e o Marrocos.
A organização foi fundada por economistas e tem estudado o impacto de seus programas desde o primeiro dia. Mas a pesquisa se focava de maneira restrita nos beneficiários: eles ficavam melhor, igual, ou pior que as pessoas que não recebiam dinheiro?
Agora, um grupo de pesquisa lançou um estudo de larga escala de um programa da GiveDirectly que distribuiu mais de 10 milhões de dólares em dinheiro para moradores rurais do distrito de Siaya, no Quênia, perto do lago Victoria. Mas desta vez, o foco não foi nos indivíduos que receberam ajuda. Ao invés disso, os pesquisadores queriam descobrir que efeito o dinheiro tinha sobre a região do Quênia onde o auxílio estava sendo distribuído — o primeiro grande estudo a testar efeitos de “equilíbrio geral” desta política.
A GiveDirectly deu cerca de US$1.000 cada (ou US$1.871 em termos de poder de compra) a mais de 10.500 residências, por meio de três transferências no período de mais ou menos oito meses. O programa equivaleu-se à cerca de 15 por cento do PIB local da região. Em termos de comparação, isso é cerca de três vezes mais que o incentivo econômico — relativo ao tamanho do país — que o pacote de 2008–2009 nos EUA.
Então os pesquisadores conduziram extensas e repetidas pesquisas, não apenas de beneficiários, mas com negócios locais e empregadores também, para ver como salários e preços mudavam. Dado o número de pessoas que estavam coletando informações, o estudo como um todo custou para mais de um milhão de dólares para ser feito, de acordo com Ted Miguel, um coautor do artigo e economista na UC Berkeley. (Miguel escreveu o artigo com Dennis Egger, Johannes Haushofer, Paul Niehaus e Michael Walker.)
Eles descobriram que as transferências de dinheiro não foram apenas positivas aos beneficiários; elas também ajudaram pessoas em vilas próximas porque os beneficiários gastaram mais dinheiro, uma parte do qual foi para os negócios dos vizinhos. De modo contrário a alguns receios, não houve efeitos inflacionários significativos, e não houve efeitos de inveja ou ciúmes pelos quais pessoas próximas que não receberam dinheiro se sentissem piores após a intervenção.
O mais surpreendente de tudo, o estudo estima um “multiplicador fiscal” de 2,6 para esta área do Quênia, o que implica que cada dólar investido em estímulo fiscal fará a economia local crescer em US$2,60. Isso é um pouco mais que o multiplicador estimado em lugares como os EUA quando em recessão. Mas “existem muitos países de renda baixa e média que se parecem mais com o Quênia que com os EUA”, disse Miguel. “Esses números podem ser muito úteis para entender multiplicadores fiscais em muitos lugares ao redor do mundo.”
Esta é a coisa maior e mais surpreendente do estudo. Ele não apenas avalia uma organização de caridade específica. Ele traça uma estratégia que pode ser útil de maneira mais geral para que países pobres escapem da pobreza extrema. Essa estratégia é surpreendentemente simples e bem conhecida de pessoas em países ricos: estímulo keynesiano.
É uma estratégia de que ajuda externa de países ricos a países pobres poderia ser mais utilizada no futuro — se este estudo for alguma indicação, para efeitos positivos. Em particular, o estudo sugere que programas de renda básica em países pobres, como considerado pelo atual governo indiano, poderiam ser mais que ferramentas de alívio da pobreza — eles também podem ter benefícios econômicos reais. E em países como a Nigéria ou Angola, com muita riqueza de recursos naturais que pode ser usada para financiar renda básica sem distorcer a economia, a promessa é especialmente grande.
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Estudos anteriores trouxeram à luz desvantagens da abordagem da GiveDirectly
Esta não é a primeira grande avaliação de um programa da GiveDirectly. Haushofer e seu colega economista Jeremy Shapiro conduziram um estudo aleatorizado de curto prazo do programa da GiveDirectly no interior do Quênia de 2011 a 2013, se focando em efeitos nove meses depois de os moradores das comunidades terem recebido ou US$404 ou US$1.525 em espécie.
A avaliação de curto prazo descobriu que as vidas dos beneficiários melhoraram imensamente: a fome despencou, o investimento e a renda da agricultura e de pequenos empreendimentos aumentou (o que sugere que as transferências incentivaram o crescimento econômico), a propriedade de bens de valor como telhados de ferro e gado dispararam, e os beneficiários estavam mais felizes em um número de métricas diferentes.
Mas pesquisas subsequentes olharam para efeitos colaterais da transferência de dinheiro — e isso complicou a imagem.
Primeiramente, Haushofer, Shapiro e James Reisinger publicaram um outro artigo que descobriu que, mesmo no curto prazo, satisfação com a vida — medida pela pergunta: “considerando todas as coisas, quão satisfeita (o) você está com sua vida no geral esses dias?” numa escala de 1 a 10 — caiu entre os moradores dos vilarejos que não receberam dinheiro, mas cujos vizinhos sim. Isso sugere que as vantagens aos beneficiários podem ter trazido custos reais para os não-beneficiários, que tiveram que assistir a seus vizinhos florescerem enquanto eles permaneciam na mesma.
Daí em 2018, Haushofer e Shapiro lançaram um artigo de acompanhamento que media os efeitos depois de três anos, o qual incitou um grande debate entre a GiveDirectly e outros economistas, como Berk Özler, do Banco Mundial.
O debate tratava dos diferentes resultados a que chegaram Haushofer e Shapiro comparando-se dentro de uma vila, ao invés de entre vilas. Dentro de uma dada vila, as pessoas que receberam dinheiro pareciam significativamente melhor depois de três anos; elas tinham US$400 a mais em bens em média e gastavam US$47 a mais por mês, o que significa que elas tinham uma qualidade de vida significativamente melhor anos após receber o dinheiro.
Mas se se comparasse vilas onde algumas pessoas receberam dinheiro com vilas onde ninguém recebeu, as primeiras não ficaram muito melhores. Isso fez com que algumas pessoas, como Özler, se preocupassem que o programa não tinha ajudado os beneficiários tanto assim, mas que tivesse prejudicado seus vizinhos substancialmente, fazendo com que ele não fosse um sucesso de verdade. Isso não é um resultado inédito tampouco, Özler e coautores encontraram efeitos colaterais negativos em termos de satisfação de vida de um programa de transferência de dinheiro no Malaui, e um estudo recente do Banco Mundial descobriu que um programa do mesmo tipo aumentava o atraso do crescimento das crianças em residências que não recebiam o dinheiro, um efeito colateral negativo realmente sério.
Outros contestaram a interpretação de Özler, sugerindo que os resultados estranhos teriam origem em dados ruins; Sandefur nota que a coleta de dados foi feita de modo diferente em vilas de controle.
A GiveWell, que avalia organizações de caridade e que recomenda a GiveDirectly como causa por muitos anos, optou por esperar até que outro artigo, com uma amostra maior e que testasse os efeitos colaterais da GiveDirectly, saísse, ao invés de se posicionar nesta disputa específica, observando que novas evidências poderiam ajudar a resolver a discordância. O estudo mais abrangente, a avaliação do “equilíbrio geral”, é o novo artigo científico sobre o qual o presente artigo trata.
O novo estudo é uma resposta a essas críticas anteriores
Então, o que dizem as novas evidências? O novo artigo não aplicou nenhuma aleatoriedade interna nas vilas — todos em condições para transferências em cada vila recebiam as transferências. Isso por si só reduzia as chances de efeitos colaterais negativos por criar menos “perdedores” na mesma vila. Mas residências nas condições previstas representavam apenas um terço em suas vilas, normalmente; para poder receber, os beneficiários tinham que viver sob telhados de sapê, um teste bem simples de pobreza (residências mais ricas na área rural do Quênia tipicamente têm telhados de metal).
Ainda era possível que seus vizinhos mais ricos poderiam ter ficado piores psicológica ou economicamente pelas transferências das maneiras que os estudos anteriores sugeriam. O design do estudo também deixou em aberto a possibilidade que as pessoas nas vilas de controle poderiam ficar piores. Talvez o dinheiro desse início à inflação que as deixaria piores, ou então elas ficassem sabendo disso e teriam consequentemente uma pior saúde psicológica.
Nenhuma dessas coisas aconteceu. As residências que não receberam transferências melhoraram substancialmente — elas gastaram em média US$334 a mais no ano e meio seguinte, o que é similar ao aumento nas residências que receberam o dinheiro. Isso não é o efeito de se comparar com os vizinhos, em que se aumenta o gasto e reduz a poupança para se manter no mesmo nível dos pares: suas poupanças, mais que qualquer coisa, aumentaram. Em vez disso, os gastos pareciam ser financiados em grande medida por um aumento substancial da renda anual, principalmente por salários.
Basicamente, a economia geral da região se expandiu, e tanto os beneficiários como os não-beneficiários melhoraram de vida porque as transferências permitiram gastos que ajudaram seus empregadores e seus próprios negócios.
Não houve efeitos significativos no bem-estar psicológico dos não-beneficiários; o efeito estimado na verdade foi positivo, mas não significativo.
Basicamente, os efeitos colaterais negativos que estudos anteriores sugeriam que fossem possíveis não apareceram.
Isto, novamente, é parcialmente devido ao design do estudo. Inveja entre residências equivalentemente pobres na mesma vila era menos provável desta vez, porque todas as residências elegíveis foram pagas. Mas havia ainda milhares de vizinhos levemente mais ricos que poderiam, teoricamente, ter sido afetados — mas não o foram.
“Isso alterou muito meus pré-julgamentos” disse Haushofer. “Este novo estudo… nós não apenas não vemos nenhum indício de efeitos colaterais negativos, nós vemos muitos indícios de efeitos colaterais positivos, até em resultados psicológicos. Não está inteiramente claro por que isso aconteceu. Qualquer que seja o motivo, nós conseguimos impulsionar a economia local e gerar grandes repercussões econômicas, e os efeitos psicológicos parecem tê-las acompanhado.”
O estudo fornece evidências para um modelo específico do que falta na economia de países em desenvolvimento
A história apresentada pelo estudo é um pouco intrigante da perspectiva da economia de desenvolvimento tradicional. Se uma vila rural no Quênia for um mercado fechado — isto é, ela não faz nenhum comércio com outras vilas ou cidades — então lançar mais dinheiro ali deveria levar à inflação. O dinheiro por si só não aumenta a habilidade da vila de produzir bens e serviços úteis — ele não cria novos cortes de cabelo ou alfaiatarias de vestidos ou telhados de metal do nada. Daí que se teria mais dinheiro para o mesmo número de bens, o que significa que o preço dos bens tem que aumentar.
Se a vila é um mercado aberto, por outro lado, então pode-se não ver efeito nos preços — o preço dos bens é definido a nível local ou nacional, por isso injetar dinheiro numa vila específica poderia fazê-la melhorar sem provocar inflação. A maioria das vilas no estudo eram uma mistura de ambos, com muitos bens sendo trazidos do resto do Quênia, mas outros bens e serviços — como carpintaria ou alfaiataria ou comidas perecíveis — sendo proporcionados localmente.
O que é intrigante neste novo artigo é que ele encontra efeitos inflacionários mínimos — aumento de cerca 0,1 por cento nos preços, em média — mesmo em bens e serviços “não-comerciáveis”, que são produzidos localmente. Seema Jayachandran, uma economista da Universidade do Noroeste dos EUA que encontrou pequenos efeitos inflacionários de um programa de transferência no México no trabalho dela, diz que inflação mínima é compreensível para bens comercializáveis, mas não para serviços locais. “As pessoas talvez contratassem um carpinteiro para construir algum móvel. O carpinteiro tinha mais dinheiro, então comia num restaurante local, e assim por diante”, disse ela. “Esses serviços usam vários insumos, então esperamos que alguns deles serão escassos. E quando há maior demanda por recursos escassos, esperamos que os preços aumentem, tanto dos insumos, como, em seguida, do produto ou serviço final.”
Que os preços não tenham aumentado é especialmente confuso se considerarmos os benefícios em renda para as pessoas que não recebiam as transferências. Isso indica que muito do gasto a mais foi para bens e serviços feitos localmente, bens e serviços os quais deveriam ter aumentado como resultado, pois o trabalho e outros insumos requeridos para fazê-los são escassos. “Como se reconcilia o grande multiplicador da renda local, por um lado, com os efeitos desprezíveis sobre preços de bens não-comercializáveis, por outro lado?” pergunta Jayachandran. “Eu não quero dizer que tem algo de errado com o artigo, mas há uma tensão nos resultados que o artigo não explica totalmente.”
A tensão pode ser explicada, em parte, por problemas nos dados: a pesquisa de preços conduzida pelos pesquisadores, mesmo que rigorosa, focou-se mais em bens que serviços, e por isso talvez tenha deixado escapar se o custo da carpintaria ou alfaiataria por exemplo aumentaram.
Mas Gharand Bryan, um professor de economia na London School of Economics que estuda programas de transferência de dinheiro, levantou uma outra possibilidade intrigante. Pode ser que insumos-chave para esses serviços — pessoas, trabalho — não fossem na verdade escassos.
“Qualquer um que tenha passado um tempo em vilas parecidas terá visto a grande quantidade de ‘trabalho ocioso.’ É uma característica própria de muitos países em desenvolvimento que não haja tanto assim para se fazer.” Bryan observa. “Neste caso, o que o dinheiro parece fazer é encorajar as pessoas a gastar um pouco, e isso causa um aumento no número de horas de trabalho produtivas na economia.” Afora a redução no tempo de lazer, isso é totalmente positivo — e poderia explicar por que não houve efeitos inflacionários.
Se esta estória for verdade — e eu devo deixar claro que este é apenas um estudo e nós não sabemos se esta estória se confirma para a maioria das vilas rurais na África Subsaariana, ou até mesmo no Quênia — isso sugere que há muita “folga” na economia por via de regra, e um pouco de estímulo keynesiano que desperte recursos subutilizados na economia, como trabalho excedente, poderia fazer um bem considerável.
“Apesar da facilidade em explicar o resultado, ele me surpreendeu,” Bryan acrescenta. “E se for verdade fora dessas vilas no Quênia, isso dá a todos interessados em desenvolvimento algo sobre o que refletir: se países em desenvolvimento são mais amplamente caracterizados por trabalho excedente (e eu suspeito que sejam), então será que essa nova evidência sugere que possam haver grandes ganhos agregados simplesmente por colocar dinheiro nas economias?”
Jayachandran adverte que países pobres ainda estão sujeitos a restrições orçamentárias, e não podem só pegar emprestando para fazer incentivos indefinidamente. “Um país em desenvolvimento poderia taxar os ricos para dar dinheiro aos mais pobres, mas daí os efeitos agregados na economia dependem tanto do estímulo negativo do gasto menor dos cidadãos mais ricos e do estímulo positivo do gasto maior dos cidadãos mais pobres”, explica ela. “O efeito líquido do incentivo pode ser positivo ou negativo.”
Mas em países que têm a capacidade para déficits que financiem o incentivo, esta pesquisa é incrivelmente útil.
“Um dos comentários que eu mais escuto de elaboradores de políticas públicas é que desenvolver uma infraestrutura de proteção social estabelecida (isto é, a lista direcionada de beneficiários, sistemas de pagamentos eletrônicos etc.) não se trata apenas de alívio de políticas,” diz Rema Hanna, uma economista e professora na Harvard Kennedy School que assessora governos de países em desenvolvimento sobre programas de transferência e outros tipos de redes de proteção. “Ter sistemas vigorando pode permitir ao governo responder mais rapidamente a desacelerações econômicas através de aumento de transferências de dinheiro para impulsionar a demanda.”
“Para mim, este estudo é, portanto, muito importante no sentido em que ele tenta de maneira verossímil medir este efeito, e nos dá uma sensação da magnitude de como as transferências podem ser usadas como incentivo.”
Além do mais, a estória keynesiana oferece um caminho para ajuda externa que não impõe taxas sobre a população local e, portanto, não é sujeita a restrições orçamentárias para o país de renda baixa em questão. Isso sugere que transferências diretas de governos de países ricos e ONGs a países pobres que sejam usadas como transferências de dinheiro, ou até mesmo empréstimos subsidiados que sejam usados para expandir programas de transferência de dinheiro, podem fazer mais que apenas ajudar os beneficiários por um curto período. Elas podem ajudar a acelerar o processo de desenvolvimento de maneira mais geral.
Isso é uma ideia especulativa. Mais pesquisa é necessária. Mas se estiver certa, é incrivelmente animadora.
Texto original por Dylan Matthews aqui: https://www.vox.com/future-perfect/2019/11/25/20973151/givedirectly-basic-income-kenya-study-stimulus
Tradução por Bruno Gabellini.
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