Resumo: Vidas negras importam — não importa onde vivam. Assim como a justiça criminal discrimina contra minorias, nossas sociedades e culturas dão menos valor aos que vivem na periferia. Seja na periferia das grandes cidades, seja na periferia do mundo.
Índice
1-O racismo nas expectativas de vida
Desculpe, mas vamos começar jogando um monte de números em você. Compare as seguintes expectativas de vida ao nascer:
É difícil saber como começar aqui. Primeiro, a boa notícia: note o progresso ocorrido em todos os casos listados; ele teria sido ainda maior se não fosse a epidemia de AIDS — que derrubou a expectativa de vida em diversos países de modo bastante desproporcional: na África do Sul, por exemplo. Mas, de todo modo, a tendência é clara: os países pobres estão melhorando, como destacado no livro Factfulness; é nessas sociedades que se observam as maiores taxas de crescimento econômico hoje e também os maiores ganhos dos “indicadores sociais” e de saúde.
Segundo, as más notícias: sabemos que a expectativa de vida tem três “momentos turbulentos”:
a) de 0 a 5 anos (i.e., a mortalidade infantil)
b) a juventude adulta, de 15 a 30 anos (principalmente, reflexo de comportamentos arriscados: trânsito, violência e abuso de drogas — lícitas ou não) — esse momento afeta desproporcionalmente muito mais os homens.
c) acima dos 60 anos (consequência do envelhecimento).
A discriminação e, principalmente, a pobreza contribuem para todos esses fatores, em todo lugar: restringem o acesso à informação, à educação e à saúde, além do tempo disponível ao cuidado pessoal e da família — além de aumentar a probabilidade de viver em locais sem condições sanitárias adequadas e com conflitos de gangues.
Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo, e Ghana, um dos países mais pobres do mundo. Distantes, mas unidas por uma quase igual expectativa de vida.
2-O que faz os países pobres continuarem pobres?
Caso você pegue um mapa-múndi notará que o desenvolvimento e a redução da pobreza ocorrem ocorrem em clusters, em agrupamentos geográficos. As explicações variam:
a) países vizinhos têm semelhanças culturais, a cultura influencia instituições (segundo D. Acemoglu, cria oligarquias rentistas), que influenciam a economia;
b) clima: embora pouco discutido por economistas, eles reconhecem que países tropicais (com exceção de algumas cidades-estados, como Cingapura, Brunei, Hong Kong e Qatar) ficam atrás no desenvolvimento econômico — talvez porque o clima afete a cultura, ou a produção agrícola, ou a prevalência de doenças contagiosas fatais, como malária, esquistossomose e pneumonia;
c) efeitos de alcance (catch-up): uma inovação em um determinado país leva ao seu desenvolvimento — e depois, graças ao comércio e investimento externo ( e retornos marginais decrescentes), é exportada para (ou copiada por) outros países, os quais “alcançam” o país desenvolvido.
d) Colonialismo e escravidão: quanto o passado determina o futuro? Ao invés de terem sido tratados como parceiros comerciais de nações desenvolvidas, diversos países foram explorados pelo colonialismo e escravidão. Ainda que o passado não seja uma sentença ao subdesenvolvimento e ex-colonias de exploração tenham vindo a se desenvolver, esse passado, e todos deficits sociais que ele carrega, não deixa de ser um fator de peso.
Por fim, uma quinta possível explicação é que os países costumam ser mais suscetíveis a oferecer apoio e solidariedade a nações com quem têm laços estreitos, como seus vizinhos, e também podem com mais facilidade e rapidez oferecer bens e serviços emergenciais em caso de crises (vide como a Europa respondeu em conjunto à pandemia, mesmo que alguns países hajam sido afetados mais que outros).
Por um lado, essa política de boa vizinhança se justifica por uma noção básica de reciprocidade — de tit-for-tat, toma lá, dá cá. Mas, como os filósofos da moral costumam ensinar, não deveríamos pensar que, só por isso, nossos vizinhos são mais merecedores de atenção — que o sofrimento deles é moralmente pior que o de pessoas em locais mais distantes. E com isso entramos em nosso segundo ponto.
3-A periferia do mundo
Pegue o mapa de novo, e observe esses países tropicais, com zonas agrícolas de baixa produtividade, com terríveis doenças endêmicas e problemas de governança (um eufemismo para regimes autoritários opressores). Ao que pese os avanços que destacamos acima, nesses locais ocorreram e ainda hoje ocorrem tragédias das quais raramente ouvimos falar.
Essa periferia do mundo continua sendo tratada de modo secundário quando comparado as tragédias que assolam o primeiro mundo. Não é nenhuma ideia difícil de entender dado que nós que vivemos no Brasil e também somos em geral tratados de modo periférico na ordem do dia.
Contudo, por vezes demonstramos igual ignorância quanto ao que acontece nestes mesmos países periféricos.
Vamos então novamente despejar mais alguns dados. Se a maior parte deles não forem novidade para você, parabéns por ser uma pessoa bem informada quanto a periferia do mundo.
Em 2018, estima-se que houve 228 milhões de casos de malária, com 405 mil mortes (94% em países da África). Em 2017, muito antes da pandemia, 2,5 milhões morreram de pneumonia — 800 mil crianças; a área mais atingida é a África Central. Ainda, recentemente, na República Democrática do Congo (RDC), detectou-se um novo surto de Ebola; no mesmo país, o Alto-Comissariado para Direitos Humanos denunciou o massacre de milhares de civis. Na verdade, essa região tem sido palco de violência étnica e política desde a década de 90, quando houve as Grandes Guerras do Congo, vitimando mais de 5 milhões de pessoas (estimado por mortes em excesso). Mas a maioria das pessoas nunca ouviu falar disso. Igualmente, se a crise de refugiados na Europa impacta a política mundial, o fato de que Uganda abriga mais de 1,4 milhões de refugiados (oriundos principalmente da RDC e do Sudão) é vastamente ignorado. Essas coisas raramente aparecem no seu jornal, muito menos no Twitter; por isso, pode ser interessante checar, esporadicamente, os eventos atuais da Wikipedia.
Vidas negras importam. E como você expressa essa importância também importa.
4-A Indignação sem ação é estéril
Não há motivo para ficar apenas contemplando os números absurdos acima: você pode contribuir diretamente para mitigar o sofrimento dessas pessoas trabalhando para ou doando para organizações filantrópicas. Considere doar para as organizações que trabalham para ajudar esses países e que fazem um trabalho extremamente eficaz nisso.
Felizmente, hoje, você não precisa se tornar um expert em terceiro mundo e impacto social para saber quais organizações são essas. Basta saber que há uma organização chamada GiveWell e que a missão deles é avaliar outras ONGs e assim recomendar aquelas que são mais eficazes nas intervenções de mais alto impacto e trabalhando com as pessoas que mais precisam delas no mundo. E, é claro, tá toda metodologia de como eles chegaram nisso está detalhada em páginas e mais páginas de estudos rigorosos caso você faça parte do grupo de pessoas que gosta de ficar expert nas coisas.
Sendo assim, você pode assim doar para as organizações recomendadas pela GiveWell, diretamente pelo site deles, em inglês, ou então pelo site da doebem, que trás o mesmo conceito para o Brasil, em um site em português, sem se preocupar com taxa de câmbio e IOF. Faça o que preferir.
Agora, se você quer entender um pouco mais o que são essas organizações e suas intervenções eficazes aqui vai uma boa resumida:
4.1.Combata a Malária
Doando para a Against Malaria Foundation, por exemplo, você estará financiando redes tratadas com inseticidas contra a malária. Ao dormirem protegidos por essas redes, as pessoas reduzem o risco de serem picadas pelo mosquito transmissor da doença. Há diversos estudos comprovando a eficácia desta intervenção. Dado o custo relativamente baixo para produzir uma dessas rede, cerca de 4 dólares, trata-se de uma das intervenções de maior impacto para salvar vidas que conhecemos.
4.2.Empodere: dinheiro diretamente na mão dos mais pobres
Alternativamente, você pode doar a Give Directly. A missão da GiveDirectly é realizar transferências diretas de dinheiro, incondicionais, para as pessoas mais pobres do mundo. Tudo isso com a tecnologia que está na mão de todo mundo: o celular.
Por transferências diretas eles querem dizer sem intermediários, impedindo assim que o dinheiro seja desviado por corrupção ou ineficiências administrativas, por exemplo.
Por mais pobres do mundo eles querem dizer pessoas em extrema pobreza, o que significa viver com menos de um dólar e noventa centavos por dia, de acordo com a ONU. Isso já leva em conta as diferenças do que você consegue comprar com um dólar aqui, nos Estados Unidos ou no Quênia, por exemplo. Tudo isso é nivelado numa régua que os economistas chamam de paridade de poder de compra.
Por transferências incondicionais eles querem dizer que não existe quaisquer restrições de como as pessoas usarão o dinheiro. Elas podem fazer o que julgarem melhor. Parte-se do pressuposto que ninguém conhece melhor as necessidades de uma pessoa que a própria pessoa.
E os dados comprovam isso. Por exemplo, uma desconfiança comum é que aqueles que receberam doações poderiam gastá-las com álcool ou cigarros. Contudo, o que diversas pesquisas constataram que os destinatários gastam menos em álcool e tabaco após receber as transferências em dinheiro.
Os dados mostram em geral que, ao receber doações, há um aumento no consumo de alimentos , despesas médicas e educacionais, bens duráveis e melhoramento da casa , como móveis ou telhados modernos. Ainda persistem mitos de que a transferência direta levaria a indolência mas o que se constata é aumento da aquisição de ativos, tal como insumos para negócios, compra de animais, grãos e equipamentos agrícolas. Vale sempre lembrar que a maior parte das pessoas em extrema pobreza e que passam fome vivem, paradoxalmente, do trabalho agrícola. Conheça alguns casos de como as pessoas gastaram as doações neste artigo.
A maior parte das transferências de dinheiro se dá via celular. Neste período de Coronavírus 100% delas estão sendo deste modo. As transferências são feitas por meio de serviços de pagamentos eletrônicos: M-Pesa no Quênia, e pela MTN em Uganda e Ruanda. Tais serviços ficaram muito populares em diversas regiões da África ao substituírem os grandes bancos e assim democratizarem o acesso a serviços tipicamente bancários. As famílias precisam de pelo menos um cartão SIM para participar, e a Give Directly fornece cartões SIM para famílias que ainda não possuem um. Também oferecem aos destinatários a opção de comprar um telefone como parte de sua primeira transferência de renda.
Quando o dinheiro eletrônico é transferido para a conta do destinatário, eles recebem uma mensagem de texto informando que foram pagos. Os destinatários podem trocar seu dinheiro móvel por dinheiro físico em qualquer lugar da rede de agentes de dinheiro móvel. Os agentes costumam ser lojistas locais, mas também podem ser postos de gasolina, supermercados, lan houses, cafés e até os próprios bancos. Os destinatários também podem usar pagar diretamente via celular os negócios que aceitam esse sistema como forma de pagamento. Observe, assim, que um efeito desse sistema é também movimentar toda a economia local.
4.3.Não é só dinheiro. Seja um ativista ativo
Dificilmente poderemos hoje ajudar alguém tão distante se não for via essa invenção chamada dinheiro e outra chamada internet, que possibilita transformar valores em sua conta bancária em bits de dados e que esses mesmos bits de dados possam se materializar via transferências de renda para os mais pobres do mundo. De fato, seria inimaginável um trabalho como o da GiveDirectly a apenas 20 anos atrás.
Contudo, entendemos que há outras formas de ajudar além dessa. A mais óbvia seria tentar chamar atenção para o problema, influenciando outras pessoas a doarem, por exemplo, ou então pelo ativismo político. Considere, por exemplo, a influência sob representantes parlamentares para melhorar a perspectiva de refugiados e aumento do orçamento para ajuda internacional.
5.Conclusão
Mas é claro, nada disso vai evitar um novo caso como o de George Floyd — nem da menina Ágatha Félix ou do menino João Pedro. Quero destacar que não devemos minimizar estas mortes: uma das coisas que deveríamos aprender com conflitos na periferia do mundo, que só está ficando clara agora,é que a violência e a discriminação (além de injustas em si mesmas) aumentam a instabilidade social e nos impedem de resolver outros problemas.
Na segunda parte deste post, vamos discutir o que nós, que não somos especialistas, podemos fazer sobre isso.
Autores : RAP e Fernando Moreno
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