Indiferença, racismo e violência: o que vem depois da justiça para George Floyd? — Parte 2

Resumo: argumentamos que, para resolver o problema da violência policial, é preciso discutir seriamente reformas de política criminal — baseadas em evidências científicas.

0.Antes de ler esse artigo…

Nosso primeiro ponto é de que vidas negras importam em qualquer lugar do mundo — no Minnesota, no Alagoas ou em Gana.

Sendo assim, nosso principal questionamento é por que o sofrimento de pessoas na periferia do mundo não suscita sequer uma fração da atenção que damos à violência e à discriminação em nossos países? Deste modo, caso ainda não tenha lido, recomendamos que leia a primeira parte deste artigo aqui onde desenvolvemos esse argumento.

Já leu a primeira parte? Então vamos seguir em frente.

1.Introdução

Já faz duas semanas que se espalham pelo mundo protestos contra o racismo e a violência policial, insuflados pela morte de George Floyd — negro americano cuja morte por asfixia, durante uma abordagem policial, viralizou em vídeo.

Estes movimentos tem inspirado protestos similares no Brasil onde, sem dúvida, não faltam casos similares para justificá-los. Basta lembrar da decisão do Supremo Tribunal Federal de restringir operações policiais em favelas cariocas durante a epidemia de Covid-19 — as quais já resultaram em pelo menos 434 mortes e alguns casos brutais repercutindo na mídia, como o e João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos — baleado durante operação conjunta das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.

Permitam-me perguntar o que provavelmente já passou pela cabeça de todo mundo: o que vai acontecer depois?

2.Atenção como recurso escasso

Os protestos têm alguns fatores que lembram as manifestações de 2013, quando “o gigante acordou” e da Primavera Árabe de 2010–2011 — a qual também começou com a viralização do vídeo da chocante morte de Mohamed Bouazizi, que se incendiou em protesto contra o governo tunisiano (como destacado em nosso post sobre o livro a Revolta do Público).

Quais foram as consequências destes protestos? A Primavera trouxe mudanças de regime e instabilidade ao Norte da África e ao Oriente Médio; já as manifestações de 2013 marcaram o surgimento de movimentos e personalidades que depois viriam a dominar a cena política nacional.

O cenário atual aparenta ser ainda mais delicado: estamos no auge da pandemia de Covid-19, durante uma crise econômica sem precedentes, com disputas políticas que, para usar um eufemismo neutro, são no mínimo bizarras. Então parece bastante sensato perguntar qual o nosso “fim de jogo” aqui; onde queremos chegar?

Mesmo que a situação seja radicalmente incerta, é mais provável que nos arrependamos se não tivermos ideia de aonde queremos ir e de como chegar lá. Um plano incerto é melhor do que plano nenhum.

Ademais, devemos lembrar que a atenção é um recurso escasso. Amanhã a notícia será outra e então outra e logo tudo isso poderá cair no esquecimento. Você viu a notícia sobre a praga de gafanhotos que está assolando as plantações na África nos últimos meses? Não? Pois é…

Some-se a isso o fato de que, se terá uma “estrela” dos noticiários deste ano muito difícil de se competir pela atenção: o coronavírus, possivelmente a pior pandemia dos últimos 100 anos, ao menos pelas suas consequências sociais.

3.Propostas

Nossa sugestão é focar nas ideias de que vidas negras importam e de que precisamos reduzir a violência policial — e levá-las às últimas consequências; o problema é que essas consequências podem ser contra intuitivas para muitos. Por exemplo, ela provavelmente deverá passar, antes de mais nada, pela redução na morte de policiais.

Segundo, se queremos resolver ou reduzir o problema da violência policial, precisamos atuar sobre todo o contexto da justiça criminal; a começar pelo óbvio: a política criminal deveria ser desenhada com base em evidências, com o objetivo explícito de prevenir e desencorajar violência e sofrimento, e não de satisfazer desejos de vingança, nem o anseio psicológico da população por retribuição. Se você tem medo de homicídios, então deveria se preocupar em reduzir as taxas anuais de homicídio; para isso, devemos investigar como outros países e sociedades efetivamente fizeram isso.

4.Uma rápida lição da história

No séc. XVIII, o Império Britânico costumava expatriar seus detentos para a Austrália; graças às condições monstruosas dos navios, cerca de um terço dos “passageiros” morria na viagem, e os demais chegavam feridos e famintos.

Ao contrário do que muitos possam pensar, esse problema não era ignorado.

Contudo, apesar da revolta da opinião pública e da crítica dos parlamentares, nada parecia resolver — até que um economista sugeriu que, ao invés de pagar por cada prisioneiro embarcado o governo passasse a pagar por cada prisioneiro que chegasse vivo à Austrália. Quase que imediatamente, as mortes durante a travessia caíram em 99%.

5.Evidências importam. Incentivos importam.

Ao analisar estatísticas sobre homicídios no Brasil percebi que, antes de mostrar sugestões de políticas baseadas em evidências, seria bom mostrar alguns dados. Sim, hoje tem tabela e gráfico; mas em troca, também prometo acabar esse texto com uma anedota pessoal curiosa.

Primeiro, observe que um dos principais entraves a adotar políticas para reduzir a violência policial é que parte da população apoia a violência policial, sob a alegação de que isso é necessário para reduzir a violência em geral; claro, essa objeção raramente é apresentada como um argumento consistente e formal, mas basta observar alguns memes bem questionáveis que circulam na rede para observar que existe essa causalidade na cabeça de muitas pessoas.

Também podemos observar que sociedades menos violentas costumam dar menos suporte à truculência policial e vice-versa. Como aponta Tyler Cowenessa pesquisa aponta que a maioria dos entrevistados apoiava enviar militares para reprimir os protestos relacionados a George Floyd.

De fato, às vezes pode ser bastante difícil avaliar evidências em ciências sociais — como já discutimos em outro post; e é preciso tomar um certo cuidado com cientificismo (assim como mentirosos gostam de falar em fake news, as teorias mais ridículas podem ser apresentadas como “conhecimento científico”).

Mas o que quero propor é uma reformulação do debate, para evitarmos uma “guerra de empatia” — em que mostrar solidariedade a pessoas que são alvo de violência policial é visto como sinal de indiferença para com a violência social e o bem-estar dos próprios policias, e vice-versa.

Podemos substituir então essa discussão por uma questão factual, a ser resolvida por evidências; ao invés de jogar o blame game de trocar acusações indignadas, precisamos definir objetivos robustamente mensuráveis — como reduzir a taxa de homicídios e a taxa de mortes causadas por policiais — e então descobrir que medidas podem ser adotadas para atingi-los.

Então, começarei falando justamente das mortes de policiais.

6. Vidas de policiais importam

No post anterior, citei expectativas de vida de diferentes populações, inclusive contrastando Moema (80,6 anos) com Cidade Tiradentes (57,3). Confesso que não encontrei estatísticas igualmente confiáveis sobre policiais — o que é compreensível; pense na dificuldade metodológica de compilar dados sobre PMs mortos mesmo depois de aposentados, e controlar para todas as fontes de viés, como renda.

Esse artigo publicado na Revista Ciência e Políciaaponta que soldados da PM do Paraná tinham, em 2014, expectativa de vida de 61,9 anos, enquanto oficiais tinham expectativa de vida de 75,7 anos — a média da corporação é de 66,3 anos. Muito citado foi um estudo com a conclusão de que a média de idade de óbito da PM/ES seria de 58 anos; mas:

a-não encontramos o estudo em si (se você o tiver, por favor, nos envie o link na seção de comentários);

b-aparentemente, não houve revisão por pares;

c- ele usa dados de requerimento de pecúlio de 1988 a 2018 — ou seja, não trata da expectativa de vida hoje (lembre que a expectativa de vida do Brasil era muito menor 30 anos atrás), nem de mortes que não geraram requerimento de pecúlio.

Ainda assim, o estudo é interessante ao apontar a alta incidência de doenças cardiovasculares (30,3%) e homicídios (26,8%) nessa população. A FGV tem um estudo mais amplo — incluindo uma tábua de mortalidade de Policias Rodoviários; mas, novamente, não encontrei um artigo com revisão por pares, e o estudo foi encomendado por uma associação de classe com o objetivo explícito de embasar reivindicações sobre a previdência da categoria.

Um dado mais robusto é o número anual de policiais assassinados, conforme Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Público, que compila estatísticas das Secretarias de Segurança Pública dos Estados. Salvo quando explicitamente mencionado, meu levantamento se baseou inteiramente nos anuários de nº 13, 12 (que achei em xls) e 10 (em pdf!); se alguém quiser revisar, agradeço. Ele também contém informações sobre o número de policiais assassinados fora do serviço; é o policial que pode ter sido executado, ou que foi morto ao reagir a um assalto, ou trabalhava como segurança, etc. Aproximadamente três quartos dos policiais assassinados no Brasil morrem fora do serviço.

Fonte: FBSP

A explicação? Não encontrei; mas o que me vem à mente é que os policiais estão melhor preparados para as situações que podem encontrar durante o expediente, quando estão devidamente acompanhados; é quando estão fora do expediente, sozinhos e surpresos, que eles têm (em geral) maior chance de morrer. Claro, também há um viés de seleção: nem todos os policiais participam de confrontos cotidianamente, mas todos estão suscetíveis a encontrar uma situação fora do expediente.

(Talvez as pessoas tenham um “viés narrativo”: em filmes de ação, a probabilidade de um personagem usando uniforme policial morrer é relativamente alta. Mas na realidade, policiais costumam planejar suas ações a fim de evitar situações que possam levar a um massacre. Note como mesmo nos filmes policiais mais conhecidos no Brasil, Tropa de Elite I e II, os policiais são mortos ou fora de serviço ou por outro policial.)

Porém, note outra coisa preocupante — como o suicídio de policiais é um número comparável ao das mortes em serviço:

Selecionei o bom (SC), o mau (RJ) e o feio (SP)

Minha conclusão parcial é que, se realmente nos preocupamos com as vidas de policiais, de forma geral, provavelmente seria mais eficaz focar as mortes fora do serviço (i.e., mostrar como evitar e reagir a imprevistos) e os suicídios.

E, como demonstraremos a seguir, se nos preocuparmos com as vidas de policiais e fizermos algo eficaz para realmente reduzi-las, teremos um alto impacto em também reduzir as mortes causadas por policiais e a violência policial em geral.

7. Porque as mortes causadas por policiais são escondidas?

Talvez você já tenha visto a queda no número de assassinatos em 2019. Mas provavelmente não viu o aumento do número de mortes causadas por policiais — ao menos eu não encontrei esse dado. Segundo levantamento do G1, houve ao menos 5804 mortes causadas por policiais no ano de 2019; no entanto, eles não obtiveram informação de Goiás, e a estimativa deles de 2018 (5.716) está em desacordo com o FBSP (provavelmente, eles não estão contando as 320 mortes ocorridas fora de serviço).

Uma das coisas que mais me irritam nas estatísticas por homicídio no Brasil (além da discrepância e correção nos dados, claro) é que elas costumam não incluir as mortes causadas por policiais em legítima defesa(dentro ou fora de serviço); isso pode ser “ruído estatístico” na Inglaterra, mas no RJ é mais de 20% do total. Se você matar alguém em legítima defesa, esse dado vai parar na estatísticas (ele gera uma ocorrência policial de homicídio em legítima defesa); mas se um policial matar alguém, mesmo fora de serviço… por algum motivo,as autoridades brasileiras acham que esse dado não tem a ver com o grau de violência do país.

Talvez você pense: “mas vida de bandido não conta”. Não quero discutir isso; apenas cabe apontar que “bandido” não é um “estado civil” — essas pessoas não foram julgadas, elas são apenas suspeitas. Segundo, se realmente a morte foi causada em legítima defesa, isso implica que, se não fosse a intervenção do policial, o morto teria cometido um crime — então é natural que esse fato conte na estatística de crimes contra a vida, tanto quanto latrocínio ou lesão corporal seguida de morte. O que nós queremos saber ao olhar estatísticas não é se uma sociedade é boa ou má, mas se é violenta.

Selecionei, para comparação e visualização, estatísticas do Brasil, RJ, SC e SP:

FBSP

Quero destacar algumas coisas; primeiro, note como as polícias que mais matam são também as que mais morrem. Algum estatístico de verdade poderia fazer um trabalho melhor do que eu aqui, mas essa relação, constante ao longo de quatro anos, indica que um aumento da letalidade policial definitivamente não causa redução na morte de policiais. A explicação mais plausível é o inverso — em locais mais violentos, policiais também matam mais. Ou seja, preocupar-se com as mortes sofridas por policiais não justifica, prima facie, defender o aumento da letalidade policial.

Segundo, na maioria dos estados brasileiros, o percentual de mortes causadas por policiais é inferior a 10% do total de mortes violentas — há algumas exceções em estados com menor população. Nos quatro anos analisados, a soma das mortes cometidas por policiais no RJ e em SP estiveram entre 38% e 49% do total nacional; então, embora esse seja um problema nacional, fica claro que se concentra nesses dois estados.

Vale lembrar: assim como as estatísticas de homicídios podem estar sub-reportadas (p. ex., não consideram pessoas desaparecidas), esses dados sobre violência policial só incluem aquilo que a polícia de fato registra. Sabemos por exemplo que, nos EUA, a maioria das ocorrências de mortes pela polícia estão omitidas da estatística oficial.

Enfim, não devemos menosprezar a queda no número de homicídios apontada para 2019. Mas, antes de sequer começar a analisar o que causou tal queda, precisamos de dados sobre mortes causadas por policiais — afinal, não queremos apenas que os homicídios sejam substituídos por outras mortes violentas.

O governo alega que foram suas medidas especiais, como o decreto que flexibilizou a restrição a armas (mas que sofreu reveses ao longo de 2019) e o pacote anti-crime — que só virou lei em dezembro. De fato, é plausível que a postura dos governantes (e mesmo o “caráter expressivo” do direito) e a expectativa de um aumento do rigor tenha tido uum papel para desencorajar a prática de crimes violentos; contudo, se for apenas isso, é provável que observemos uma regressão à média nos próximos anos — como já está ocorrendo em 2020.

Também é preciso notar que a queda de homicídios começou muito antes, ainda em 2018 (quando houve a intervenção no RJ), contrariando a narrativa politicamente útil aos governistas.

8.Incentivos importam: a anedota que prometi

Em 2011, João (nome fictício) era um homem forte de 29 anos vivendo numa propriedade rural paupérrima, renegado da família, sem telefone nem água encanada, longe de tudo num município decadente da campanha gaúcha. Estava em casa bebendo cachaça com a namorada, Maria, 36, ex-prostituta, e com seu amigo José, de 25 anos, com histórico mental consistente com transtorno bipolar, quando decidiram caminhar até um sítio “vizinho” (5km de distância) — cuja família agrediram e fizeram de reféns durante horas, exigindo… milho.

Horas depois, os policiais da delegacia que eu (então delegado) coordenava encontraram João na beira duma estrada vicinal, em cima de Maria, talhando seu rosto com um facão / machete — o que lhe deixou uma cicatriz profunda. Os policiais apontaram as armas e deram voz de prisão, mas João não se intimidou e respondeu “atira!”; ao invés de atirar, eles o dominaram e algemaram, sem causar grandes ferimentos. Eles eram bons policiais, e nem todos teriam feito o mesmo — mas um deles depois me admitiu que, além da ética básica, pesou na sua decisão o fato de que atirar provavelmente teria tornado as coisas muito mais difíceis (levar o sujeito para o hospital, sujar a viatura, responder a um processo, controlar os outros suspeitos…). Os três suspeitos (inclusive Maria) foram levados à delegacia, onde foram indiciados por extorsão (no caso de João, também por lesão corporal grave + violência contra a mulher).

Confesso que sempre pensávamos duas vezes antes de prender alguém. Na época, a burocracia de um flagrante era assustadora; claro, seguir um procedimento bem definido é necessário e ajuda a assegurar os direitos do suspeito, mas nossos programas de computador eram muito ruins e tornavam tudo uma experiência demorada e desagradável para todos. Além disso, a delegacia se localizava num sobrado antigo, e não tinha uma cela apropriada para manter o preso; depois, nós mesmos tínhamos que levá-lo ao presídio, a 110km dali. Então, enquanto eu tomava o depoimento de basicamente todo mundo (vítimas, policiais, testemunhas, suspeitos), João estava numa cadeira na cozinha, a peça mais afastada, algemado e sob constante supervisão de ao menos um policial; ele não parava de gritar, intimidando as demais vítimas e testemunhas. Quando tentei pedir que parasse, ele gritou e me enfrentou: “Vai fazer o quê? Vai me matar? Mata se for homem!”.

Essa foi a única vez que recordo de seriamente, deliberadamente, cogitar uma hipótese semelhante — de pensar sobre se poderia ou deveria fazer algo assim. É algo que ainda me assusta. Pode-se dizer que eu estava “sob violenta emoção”, e privação de sono e estresse; numa fração de segundo, passou pela minha cabeça:

a) a vida desse pobre coitado é horrível, ele não faz bem para si, nem para ninguém, e não tem qualquer perspectiva real de recuperação;

b) então, qual seria o problema se eu simplesmente… mas imagina as consequências: a sujeira, o trabalho adicional que daria, a mancha na minha reputação — a vergonha, os amigos…;

c) POR QUE DIABOS EU SEQUER CONSIDEREI ISSO? Eu não tenho direito de tomar uma decisão dessas, ninguém tem. Vou agredir um sujeito algemado porque ele é barulhento?

Eu terminei por olhar para João com minha expressão mais séria, adulta (eu só tinha 25 anos) e ameaçadora, para retrucar: “Vai levar mais umas 5h para você chegar ao presídio. Se continuar berrando, as coisas vão ficar muito ruins; mas se ficar quieto, ganha café e pizza”.

Os demais policiais ficaram surpresos — eles esperavam pelo menos um tapa, e agora me viam recompensando o mau comportamento. Mas João ficou quieto; era quase outra pessoa. Jantou antes de depor, e então invocou o direito ao silêncio. No caminho até o presídio, ele dormia. Só aí que eu percebi que aquela provavelmente havia sido a única refeição dele no dia.

Não me entendam mal; eu entendo que algumas pessoas podem ler isso e logo enveredar para julgamentos morais intuitivos, como “você pensou em agredir e matar alguém algemado”, ou “você tratou esse monstro melhor do que as vítimas”. Ao invés disso, eu gostaria que pensassem em como algumas coisas de fato funcionam:

a) Medo de punição / responsabilidade: embora eu e os policiais tenhamos agido de acordo com nossos princípios morais básicos, eles não foram suficientes (ao menos para mim) para impedir de formar a hipótese de violá-los; além disso, a consideração sobre as consequências (a perspectiva de punição e a opinião dos demais) pesou sobre nosso julgamento. Será que, se houvesse um botão para fazer João desaparecer sem deixar rastro, sem ninguém saber, eu teria apertado? Felizmente, ao menos naquela situação, era muito mais fácil oferecer pizza — e funcionou.

Então, se você quer que um determinado grupo de pessoas não tenha comportamentos violentos, é interessante evitar que, no ambiente onde eles estão inseridos, esses comportamentos sejam considerados normais e aceitos. Isso vale para a violência urbana, para prisões, para polícia.

Ninguém duvida que alguns policiais (não todos) eventualmente terão de tomar a decisão de matar alguém — em legítima defesa de si ou de terceiros; mas se se trata mesmo de uma decisão excepcional para proteger a vida de alguém, então eles não deveriam se importar de ter alguns custos de transação — como depor sobre isso posteriormente, e passar por uma investigação e uma avaliação psicológica. Igualmente, o Estado deveria arcar com os custos de colocá-los nessa situação, e pagar uma indenização se não ficar comprovado que o sujeito morto de fato ameaçava a vida de outrem.

b) Instintos e incentivos: comer não mudou o caráter de João, mas o fez menos desesperado — note como, desde o início da história, seu comportamento havia sido autodestrutivo. E, por causa disso, o medo de ser punido não era um bom incentivo para João — ele estava acostumado com situações de ameaça, com uma vida alienada da sociedade; a expectativa de recompensa era uma perspectiva melhor.

Durante um bom tempo, foi popular uma teoria de “punição ótima” defendida por importantes economistas (como o nobel Gary Becker, e o “czar da regulação” na gestão Obama, Cass Sunstein), segundo a qual, ao invés de policiamento constante e ostensivo, deveria haver punições raras, mas duras. Isso pode funcionar relativamente bem para crimes econômicos — para agentes que sejam sensíveis a um pequeno risco de uma grande punição no futuro. Mas, para a violência urbana, isso foi um erro que levou ao encarceramento em massa; além de casos claros de enfermidade mental (que, ao menos na minha experiência, não são raros),boa parte dessa população é de jovens, em que:

A) há pouca sensibilidade a “pequenos riscos”: i.e. um investidor evita um risco de 5% de falir – mas um jovem pode repetir 20x um comportamento enquadrado como tráfico de drogas, mesmo que tenha 5% de chances de ser flagrado; ou

B) a perspectiva de ser preso não parece, ex ante, tão ruim, se você vive num ambiente em que isso é considerado normal — aliás, o insucesso do programa Scared Straight;

C) a duração da pena não importa, porque não há planos alternativos para o futuro: assim como é raro alguém pensar seriamente em aposentadoria antes dos 30, uma pena longa não desencoraja muito mais do que uma curta.

São os incentivos certos que importam. Note que a sugestão do primeiro exemplo deste texto — pagar por cada prisioneiro vivo que chegasse à Austrália — não funcionou no caso dos navios negreiros, que eram matadouros flutuantes. Embora o traficante recebesse apenas por escravos que chegassem vivos mesmo que os comerciantes pagassem por cada um que chegasse vivo, ele podia compensar sua perda amontoando o maior número de pessoas possível (em economês, a oferta de detentos expatriados era limitada, ao contrário da de africanos). E, nesse caso, o público não se importavaCertamente, vidas negras não importavam.

Estamos começando a fazer algum progresso moral. Agora, está na hora de começarmos a pensar em como adaptar a lição básica de economia — seres humanos funcionam à base de incentivos — a nossas políticas de segurança pública. É o assunto do próximo post.

O debate sobre quais políticas funcionam para diminuir a violência policial não encerram por aqui. Também lembramos que eles se inserem num debate ainda mais amplo de quais reformas na política criminal deveriam ser feitas. Na terceira parte deste artigo, a ser publicada em breve, desenvolveremos mais tais ideias assim como quais organizações e pesquisadores se dedicam a resolvê-las.

Autores: RAP e Fernando Moreno

Leia agora a parte 3 (final) deste artigo, aqui.

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