Resumo: Um Paradoxo para Probabilidades Mínimas e Valores Gigantescos

Este é um resumo do documento de trabalho do GPI “A Paradox for Tiny Probabilities and Enormous Values” de Nick Beckstead e Teruji Thomas~”. O resumo foi escrito por Tomi Francis.

Tradução: Alphatrad                      Revisão: Ramiro Peres

Muitas decisões na vida envolvem equilibrar riscos com seus potenciais resultados. Por vezes, os riscos são pequenos: pode ser-se morto por um carro enquanto se caminha para fazer compras, mas seria excessivamente medroso ficar em casa sentado sem papel higiénico a fim de evitar este risco. Outras vezes, os riscos são extremamente grandes: o seu bilhete de loteria poderia ser sorteado amanhã, mas seria imprudente pedir emprestado 20 mil a um agiota chamado “Killer Clive” para pagar os 50% do custo inicial da grande festa de amanhã (ainda que você realmente goste de grandes festas). A teoria da decisão correta deveria dizer-nos para não sermos nem demasiado medrosos, nem demasiado imprudentes, certo? Errado.

Em “A Paradox for Tiny Probabilities and Enormous Values”, Nick Beckstead e Teruji Thomas argumentam que cada teoria de decisão ou é “tímida”, no sentido em que por vezes nos diz para evitarmos riscos de pequena probabilidade, independentemente da dimensão do pagamento potencial, ou “imprudente”, no sentido em que por vezes nos diz para aceitarmos um desastre quase certo em troca de uma pequena probabilidade de obter um pagamento suficientemente grande.

O caso central de Beckstead e Thomas é assim. Imagine que você tem um ano de vida, e pode trocá-lo por um bilhete que, com uma probabilidade de 0,999, lhe dará dez anos de vida, mas que o matará imediatamente em caso contrário – com uma probabilidade de 0,001. Também pode aceitar vários bilhetes: dois bilhetes darão uma probabilidade de 0,999^2 de obter 100 anos de vida – e, caso contrário, a morte; três bilhetes darão uma probabilidade de 0,999^3 de obter 1000 anos de vida – e, caso contrário, a morte… e assim por diante. Parece objetivamente tímido dizer que obter n+1 bilhetes não é melhor do que obter n bilhetes. Dado que não pretendemos ser tímidos, devemos dizer que é melhor comprar um bilhete do que não comprar nenhum; dois é melhor do que um; três é melhor do que dois; e assim por diante. 

Precisamos agora de introduzir um pressuposto crucial. Segundo a transitividade, se X é melhor que Y e Y é melhor que Z, X deve ser melhor que Z. Assim, se um bilhete é melhor que nenhum, e dois bilhetes é melhor que um, então ter dois bilhetes é melhor do que nenhum. Uma vez que três bilhetes é melhor do que dois, e dois bilhetes é melhor do que nenhum, três bilhetes também é melhor do que nenhum. Continuando desta forma, pode ser demonstrado que para qualquer n, obter n bilhetes é melhor do que não receber nenhum. Mas isso parece objetivamente imprudente: obter, digamos, 50.000 bilhetes resultará em morte quase certa[1]. Temos assim um paradoxo: não parece razoável ser tímido, nem parece razoável ser imprudente – mas, dada a transitividade, se não formos tímidos, temos de ser imprudentes.

Vale a pena assinalar que existem alguns filósofos que pensam que devemos rejeitar a transitividade à luz de problemas filosóficos como estes. Mas essa é uma opção muito pouco atrativa, pelo menos à primeira vista: se as opções continuam a melhorar, como poderia a última não ser melhor do que a primeira? Beckstead e Thomas não discutem muito a rejeição da transitividade, e pretendo segui-los ao deixá-la de lado. Tendo-o feito, temos de aceitar ou timidez ou imprudência: o argumento de Beckstead e Thomas não nos deixa escolha.

Quão mau seria ser tímido? Você pode pensar que não é tão óbvio que é sempre melhor viver dez vezes mais tempo, com uma probabilidade muito ligeiramente menor, do que viver um décimo de tempo com uma probabilidade ligeiramente maior. Se apenas tivéssemos de aceitar algo assim para evitar a imprudência, as coisas não seriam tão más. Mas infelizmente, o paradoxo de Beckstead e Thomas não se aplica apenas aos casos em que estamos a decidir o que é melhor para nós próprios. Também se aplica a casos em que estamos a escolher em nome de outros: ou seja, aplica-se à tomada de decisões morais. E a timidez na tomada de decisão moral é realmente difícil de aceitar.

Para ver porquê, vamos modificar um pouco o exemplo central. Imagine que cada bilhete sucessivo, em vez de nos permitir viver durante dez vezes mais tempo, nos permite salvar dez vezes mais vidas. Obter um bilhete adicional resulta então numa probabilidade muito ligeiramente menor de salvar muitas mais vidas. De facto, de cada vez que se obtém outro bilhete, o número esperado de vidas salvas torna-se quase dez vezes maior. Assim, parece ser moralmente muito melhor obter outro bilhete, não importa quantos bilhetes já se tenham obtido.

Intuições puras como estas à parte, Beckstead e Thomas mostram que teorias tímidas enfrentam uma série de outras objeções. Por exemplo, se você for “tímido” em salvar vidas, então a sua tomada de decisão moral vai depender de formas estranhas dos acontecimentos em regiões distantes do universo, sobre as quais não tem controlo.

Vamos ver como isso funciona. Suponha que haja duas escolhas, A e B. A dá uma probabilidade ligeiramente maior de salvar n vidas, enquanto B dá uma probabilidade ligeiramente menor de salvar N + n vidas, onde N é muito maior do que n. Estas duas escolhas estão resumidas no quadro abaixo:

Probabilidades
pq1 – (p + q)
An vidas salvasn vidas salvas0 vidas salvas
BN + n vidas salvas0 vidas salvas0 vidas salvas

Se você é tímido em salvar vidas, então prefere salvar um grande número de vidas n com alguma probabilidade p + q, em vez de salvar um número maior de vidas N + n com uma probabilidade ligeiramente menor p. Por isso vai ter de dizer que A é melhor do que B em alguma versão deste exemplo.

Agora, aqui está um facto interessante sobre este caso. Com uma probabilidade p, o que quer que você faça, pelo menos n vidas serão salvas. Se imaginarmos que, de qualquer maneira, estas n vidas correspondem às mesmas pessoas, então a sobrevivência delas nada tem a ver com a sua escolha entre A e B. Pode ser, p. ex., que estas pessoas estejam localizadas numa galáxia distante, e que a razão pela qual existe uma probabilidade p de serem salvas é que outra pessoa nessa galáxia distante escolheu tentar salvá-las. Agora considere o seguinte caso, que é exatamente como o anterior, mas em que o agente distante escolheu não tentar salvar estas vidas

Probabilidades
pq1 – (p + q)
A’0 vidas salvasn vidas salvas0 vidas salvas
B’N vidas salvas0 vidas salvas0 vidas salvas

Se N é maior que n e p é maior que q, então B’ é obviamente melhor que A’ de uma perspetiva moral: proporciona uma maior possibilidade de salvar um maior número de vidas. Mas espere: a timidez disse-nos que A é melhor que B. Estamos a dizer isso, e estamos também a dizer que B’ é melhor que A’, apesar de os dois pares de casos diferirem apenas na questão de que algum outro agente de uma galáxia distante decidiu tentar salvar n vidas. Isso é muito estranho, e muito difícil de acreditar! 

Aceitar a imprudência é mais palatável do que aceitar a timidez? De início pode parecer que sim: embora a imprudência seja algo contra-intuitiva, pelo menos parece haver uma forma consistente de se ser imprudente –  basta maximizar a expectativa do que se pensa ser bom, como o número de vidas salvas, ou o número de anos de vida que se vai gozar. Mas mesmo que possamos engolir a morte quase certa, Beckstead e Thomas salientam que as teorias de decisão imprudentes enfrentam outros desafios em casos infinitos: são obsessivas em relação às infinitudes de uma forma preocupante, e têm dificuldade em lidar com certas apostas infinitas. Para que seja fácil ver como surgem os dois desafios, vamos considerar um agente imprudente que quer maximizar o número esperado de anos de uma vida boa que terá em casos finitos. (Isto tornará os problemas mais fáceis de serem vistos, mas eles são generalizáveis a todos os decisores imprudentes.)

Primeiro, a obsessão infinita. Para qualquer pequena probabilidade p, um agente imprudente pensará que em vez de ter n anos de uma vida boa com certeza, seria melhor ter uma probabilidade p de N anos de uma vida boa (e em caso contrário, uma morte certa), desde que N seja suficientemente grande. Uma infinitude de anos de uma vida boa é presumivelmente melhor do que qualquer número finito de anos, pelo que se deve igualmente preferir qualquer probabilidade, por menor que seja, de obter infinitos anos de uma vida boa, ao invés de qualquer número finito de anos de uma vida boa com certeza. Por outras palavras, parece que os decisores imprudentes perseguirão obsessivamente quantidades infinitas de valor, por mais improvável que seja que isso resulte em qualquer coisa.

Os decisores imprudentes enfrentam outro tipo de problema quando se trata da aposta de “São Petersburgo“. Neste jogo, uma moeda sem viés é atirada ao ar até cair “coroa”, não importa quanto tempo demore. O jogador recebe então um pagamento de 2^n anos de vida, onde n é o número de vezes que a moeda cai cara. Os pagamentos são ilustrados na tabela abaixo.

Número de caras1234n
Anos de vida recebidos248162n

Em comparação com ter n anos de uma boa vida com certeza, seria melhor obter uma versão truncada do jogo de São Petersburgo que termina prematuramente se os primeiros n + 1 lançamentos resultarem em cara, uma vez que isto renderá n + 1 anos esperados de vida boa. Claramente, qualquer jogo truncado de São Petersburgo é pior que o jogo não truncado: é melhor ter uma pequena chance de continuar depois de n + 1 lançamentos do que não ter esta chance. Assim, para os decisores imprudentes, deve ser melhor aceitar a aposta de S. Petersburgo do que ter qualquer número finito de anos de vida com toda a certeza. Isto é especialmente estranho na medida em que significa que deve ser melhor ter o jogo de São Petersburgo do que ter qualquer um dos seus possíveis resultados. Este é outro tipo de paradoxo. 

Em resumo, Beckstead e Thomas mostram que temos algumas escolhas difíceis a fazer quando se trata de tomar decisões sob risco. Talvez tenhamos por vezes de ser muito tímidos, e nesse caso também precisamos de pensar que o que devemos fazer por vezes depende de formas estranhas de partes do mundo que não podemos de modo algum afetar. Ou, por vezes, temos de ser muito imprudentes, e obcecados por infinitudes. Ou temos de negar a transitividade: temos de acreditar que A pode ser melhor do que B, e B pode ser melhor do que C, sem que A seja melhor do que C. 

Nenhuma destas opções parece ser boa. Mas também ninguém disse que a teoria da decisão iria ser fácil.

References 

Beckstead, N. and Thomas, T. (2021), A paradox for tiny probabilities and enormous values. GPI Working Paper No. 7–2021.


[1] A probabilidade de sobreviver em caso de 50.000 bilhetes é 0,999^50.000 – o que é menos que 10^(-21).

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