Ostras, Gordon Ramsay e a caça a terroristas

foto de três ostras, uma ao lado da outra

Assisti hoje a dois episódios de Gordon Ramsay Uncharted, uma série em que ele vai a lugares extremos do mundo conhecer a culinária de povos originários. O primeiro episódio foi com indígenas nos Andes peruanos e o outro com maoris na Nova Zelândia. 

No primeiro, ele comeu alpaca e porquinho-da-índia. No segundo, um tipo de ostra selvagem, uma enguia e… uma cabra. O episódio mostra ele atirando na cabra, uma espécie invasora (trazida por europeus) que desequilibra o meio ambiente e, por isso, tem sua caça liberada.

Gordon Ramsay foi aquele que, agora (julho de 2022), viralizou um vídeo fazendo piada com filhotes de cabras presos e assustados em uma fazenda. Ele subiu na cerca do celeiro e brincou “yum yum, quem de vocês eu vou comer? Você!… Hora de ir ao forno!”, apontando para um cordeiro indefeso. Nesse caso, comeria um animal criado em fazenda, um refém procriado à força, e não uma espécie solta desequilibrando o meio ambiente.

Matar ambos, para um vegano, é moralmente errado. Mas talvez possamos ser estrategicamente mais abertos. Ou mais imperfeitamente veganos? Não tenho respostas, mas… Quando se trata dos maoris da Nova Zelândia ou dos indígenas peruanos, com milênios de tradição em seu habitat, podemos exigir que parem imediatamente de matar animais selvagens? 

Alguns veganos dizem que esses povos, se não conseguem se alimentar de plantas onde estão, deveriam se mudar para as cidades ou campos em que seja possível viver sem matar animais. Mesmo sem ser culturalmente relativista, não consigo dizer isso. Apelo para o “na medida do possível e praticável”, silencio sobre essas violências (o porquinho da índia morto era tão bonito, tinha outro vivo e solto e assustado dentro da cabana dos indígenas) e prefiro focar nos 80% da população que já pode alterar seus hábitos e retirar a violência do prato (principalmente a parcela privilegiada em áreas urbanas e que só “caça” no supermercado).

Ainda assim, resta o tema das “espécies invasoras”, como as cabras na Nova Zelândia, os cangurus na Austrália e até, ainda que mais controlado, os felinos em Fernando de Noronha. Assumindo que seja extremamente caro um programa de esterilização em massa desses animais, que seja impossível capturá-los todos e levá-los a outros ambientes para evitar o desequilíbrio da biodiversidade… Seria aceitável seu abate? E, consequentemente, estes animais abatidos poderiam ser comidos?

Por um olhar ambientalista, a atuação humana para reequilibrar a fauna é totalmente justificável. Por um olhar 100% antiespecista, acho que a argumentação iria na linha de: “não fazemos isso com o descontrole populacional de humanos, por que seria ético tratar diferentemente os animais?” 

No meu caso de veganismo imperfeito e só 98% antiespecista, não tenho uma conclusão, mas minha primeira reflexão é ficar no meio do caminho. Acho que, se não houver mesmo alternativa sem violência, consigo entender (mas lamentar) o assassinato das cabras, cangurus e felinos invasores destas regiões selvagens. Toda a biodiversidade ali depende do equilíbrio entre espécies e, repetindo, não havendo outra alternativa, tratar animais sencientes como “praga” talvez seja necessário. Fazemos isso nas nossas plantações de legumes e frutas como legítima defesa, né? Fazemos isso com mosquitos transmissores de doenças, não?

Somos os únicos animais sencientes que possuem reflexão ética para mudar o cardápio e, justamente por isso, podemos sair do ciclo de mortes e moralmente escolher uma alimentação sem sofrimento animal. Se isso é verdade, poderíamos estender esse “poder” para apoiar o equilíbrio no sofrimento dos animais selvagens? 

Não fazemos extermínio de seres humanos para reequilibrar a biodiversidade, mas prendemos e até aceitamos matar em legítima defesa. Se um terrorista está assassinando diversas pessoas em uma escola ou em uma casa noturna (para citar exemplos recentes), não estamos autorizados a abatê-lo? Se uma pessoa está matando outra e não há maneira de parar o assassino a não ser… assassinando-o… Não aceitamos esse tiro como legítima defesa? Se Hitler estiver implementando seu genocídio… acho que deu para entender. 

Não sei o que vou pensar no futuro, mas a caça a espécies invasoras me parece se encaixar no exemplo de evitar o extermínio de vidas inocentes e mais fracas (mesmo que o culpado por levar as cabras para esse ambiente sejamos nós, e espero que tenhamos aprendido a lição). Não tendo outra opção sem violência, não matar significaria cumplicidade.

E aí, dado que é para o bem de animais mais fracos que a cabra foi abatida, isso significa que eu gostaria de comer seus cadáveres? Não. Mas também não diria ser uma ação cruel ou “não vegana”, se estamos pensando no veganismo como ação ética em relação ao sofrimento dos animais em geral, que é como o movimento começou [um grupo de vegetarianos britânicos criou o termo “vegan” em 1944 para se diferenciar, dado que também via sofrimento animal na produção de leite, ovos e mel].

Recapitulando então até aqui: 

  • porquinhos-da-india e alpacas no Peru: são espécies locais, mas de subsistência para os indígenas (como peixes no Alasca, e tem um capítulo da série que o Gordon Ramsay vai para lá). Para esses, estrategicamente, nós veganos não deveríamos entrar na discussão. Entra no exemplo do “na medida do possível e praticável”.

  • cordeiros cruelmente encurralados em uma fazenda e que o Gordon Ramsay fez “yum yum quem vou matar para comer”: aqui é um caso clássico de ação imoral no abate (e ele ainda faz piada com isso). A própria audiência comedora de carne, com sua dissonância cognitiva, viralizou com duras críticas ao vídeo.

  • caça em geral por esporte: totalmente imoral também, dado que não se pode chamar de esporte quando um dos participantes é forçado a participar e morrer.

  • caça de cabras invasoras da Nova Zelândia (ou cangurus na Austrália): aqui entram no caso de “legítima defesa”, no nosso papel de “policia contra terroristas de outras espécies mais fracas”. Podemos classificar como uma ação moral matar Hitler, mesmo que a culpa seja nossa em termos levado Hitler para lá. Nesse caso, para sermos consistentes, se aprovamos o abate e consumo da carne das cabras/cangurus terroristas, poderíamos também aprovar o consumo da carne de humanos abatidos quando estão matando inocentes. Isso para quem come carne, claro, eu sou vegano e dispenso a iguaria.

Mas e os mariscos do título? Onde entram nessa discussão? Aqui vai mais uma última polêmica…

Imagine que exista um animal (sei lá, uma cabra invasora, já que é o grande tema do texto), imagine que essa cabra não seja senciente, não possua cérebro, esteja em estado vegetativo deitada na grama. Basicamente, um animal com todo seu sistema funcionando menos o cérebro. Até reage a estímulos externos, mas como um computador reage quando você clica play em um vídeo. O computador não tem um “ser” dentro dele sentindo o clique, ele apenas parece “vivo” passando o clipe da Anitta ali, mas com zero capacidade cerebral ou preferências individuais. O computador não é um indivíduo, não sente dor nem tem desejos e, até o momento, não há provas científicas de que ostras e mariscos tenham. 

Veganos que comem esses dois animais bivalves são chamados de ostroveganos. Ou veganos imperfeitos, como eu nesta minha transição. Mas, se um dia ficar 100% provado que eles não são seres sencientes, e o veganismo é sobre sofrimento animal, ostroveganos que comem ostras e mariscos não poderiam se considerar veganos? 

Essa é uma questão em aberto no movimento. Alguns, incluindo Peter Singer, assumem que o sofrimento de bivalves é tão extremamente improvável, que seu consumo é justificado. Outros, incluindo Gary Yourofsky e a própria Vegan Society, fazem sua linha de corte no reino animal. Se é proteína animal, não pode ser comida e devemos dar a eles o benefício da dúvida sobre sua senciência.

Já fui “zoado” e levei puxão de orelha de amigos veganos perfeitos, mas não posso deixar de confessar: ainda penso em manter o consumo desses dois bivalves. Esta semana, faço 1 ano do meu primeiro mês vegano (lembrem que, nos 3 primeiros meses de minha transição, eu ainda comia carne 1 dia por mês, era uma forma do meu cérebro desmamar do vício em carne). Nos últimos 9 meses 100% vegano, não comi nem bivalves, mas quero refletir mais antes de uma decisão definitiva. 

Hoje, se me perguntam, ainda penso em completar a transição abandonando seu consumo, ainda quero falar que nunca mais vou comer ostras e mariscos, mas fico me perguntando… 

Imagine que exista um animal sem cérebro e que seja extremamente improvável que ele sofra ou tenha consciência de que sofra (basicamente funcionando como uma pessoa com morte cerebral, em que é moral podermos desligar os aparelhos).

Imagine que a proteína desse animal fosse altamente nutritiva e, inclusive, riquíssima em nutrientes-chave que a dieta vegana precisa dar atenção: ferro, cálcio, zinco, vitamina b12 e ômega 3.

Imagine que, para veganizar o mundo, essa proteína pode ser estratégica para algumas pessoas mais resistentes a nunca mais comer animais ou resistentes a suplementar vitamina b12 (aqueles mais “naturebas”) ou com algumas restrições graves de saúde durante a transição (já que desde criança nossa microbiota cresceu no mundo carnista).

Imagine que para populações que vivem da pesca, a troca pelo cultivo desse animal que não sofre pode ser economicamente sustentável e facilitar a adesão ao veganismo (basicamente o conto de Omelas sem aquela criança presa no subsolo sendo capaz de sofrer). E imagine que um desses dois bivalves (o marisco) possua um preço bastante acessível para facilitar a transição vegana de populações de renda mais baixa. 

Agora, imagine que esse animal incapaz de sofrer ainda possua impacto extremamente positivo para o meio ambiente. Seu cultivo em fazendas aquáticas não mata outros animais durante a colheita mecanizada, não necessita de agrotóxicos (nem desmata nem consome água, óbvio) e ainda captura nitrogênio, ajuda a combater o aquecimento global, apoia a restauração de corais, retira acidez e filtra a poluição da água melhorando o ambiente para os outros animais marinhos (inclusive serve de santuários para peixes), ajuda a trazer luz solar para águas mais profundas promovendo o crescimento de algas e evita erosão e enchentes nas costa.

Imagine que, ao contrário das cabras invasoras, ostras e mariscos sejam exatamente o inverso de genocidas para a biodiversidade em seu entorno. Ao invés de aumentar o extremo sofrimento de animais selvagens e o equilíbrio da fauna local, elas aumentam a qualidade da vida animal que as circunda. 

Estes dois bivalves são terroristas do avesso que aumentam a vida, não a reduzem! Se os cogumelos fazem isso na terra, regenerando seu entorno, ostras e mariscos fazem isso no mar! Sim, existe uma possibilidade extremamente baixa de ostras e mariscos serem sencientes. Mas será que a linha divisória do veganismo não deveria parar ali, agregando-os à alimentação humana por todos esses benefícios? Ainda não tenho respostas, mas as respostas negativas que ouvi até aqui não têm me convencido.

E se pensarmos que não se resolve o problema dos animais sem pensar de maneira sistêmica? E se pensarmos na urgência de veganizar o mundo, e que 40% da população global vive em áreas costeiras? E que no Brasil somos 60% vivendo no litoral e que a transição econômica e nutricional poderia ser acelerada tendo mariscos e ostras como “moeda de troca”?…

Enfim, não tenho a resposta. 

Foi só um “food for thought”.


Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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