A questão das Lagostas (com David Foster Wallace)

Imagine que você vive em um mundo 100% vegano. Nenhum animal é machucado para virar alimento, vestuário ou outro produto qualquer. Nenhum animal sofre com crueldade para entretenimento humano (ex: rodeio, rinhas de galo, zoológicos, etc). 

Imagine que você acorde nesse mundo de total respeito a qualquer ser senciente. Você iria às ruas para protestar pelo direito de cozinhar animais vivos? Você participaria de manifestações para jogar animais vivos em água fervente e vê-los se debatendo até a morte?

Em 2003, David Foster Wallace, um dos melhores escritores da sua geração, foi convidado pela revista Gourmet a acompanhar o maior festival de lagostas dos EUA.(em uma região que fornece 50% de todas as lagostas daquele país). 

O ensaio que escreveu dessa experiência é maravilhoso. Ele, comedor de lagostas, vendo-as sendo cozidas vivas (em um momento, há uma panela gigantesca com 100 lagostas em água fervente ao mesmo tempo, imaginem o barulho de desespero), ele, comedor de lagostas, começou a se questionar sobre esse consumo.

Separei os melhores trechos para refletirmos juntos. David começa enciclopédico: 

“Para fins práticos, todo mundo sabe o que é uma lagosta. Como de costume, todavia, existe muito mais para saber do que a maioria de nós se importa em descobrir — é tudo uma questão de interesses pessoais. (…) A palavra inglesa lobster vem do inglês antigo loppestre, supostamente uma corruptela de lacusta, a palavra latina para gafanhoto que também é a raiz de “lagosta”, combinada com o inglês antigo loppe, que significa aranha. Além disso, um crustáceo é um artrópode aquático da classe Crustacea, que inclui caranguejos, camarões, cracas, lagostas e lagostins de água-doce. E os artrópodes são membros do filo Arthropoda, que abrange insetos, aranhas, crustáceos e quilópodes/diplópodes, que possuem como principal traço comum, além da ausência de uma estrutura centralizada cérebro espinal, um exoesqueleto quitinoso composto por segmentos ao qual se articulam pares de apêndices. A questão é que lagostas são basicamente insetos marinhos gigantes.(…) E é verdade que se trata de lixeiras do mar, comedoras de coisas mortas, embora também comam um pouco de moluscos vivos, certos tipos de peixes machucados e por vezes umas às outras. Mas também são boas de comer. Ou pelo menos é o que achamos agora.”

Na sequência, um panorama histórico que eu desconhecia completamente: “Até certa altura do século xix, todavia, a lagosta era literalmente um alimento de classe baixa, consumido apenas pelos pobres e encarcerados. Até mesmo no rude ambiente penal dos primórdios da história americana algumas das colônias tinham leis limitando o uso de lagostas na alimentação dos detentos a uma única vez por semana, porque isso era julgado cruel e incomum, semelhante a obrigar pessoas a comerem ratos. Uma das razões para esse baixo prestígio era a fartura de lagostas na Nova Inglaterra de então. “Abundância inacreditável” são as palavras com que uma fonte descreve a situação. (…) Também é preciso levar em conta que as lagostas pré-modernas eram cozidas mortas e em seguida postas em conserva, geralmente em sal ou embalagens herméticas primitivas. A indústria da lagosta no Maine teve início com uma dúzia dessas fábricas de conserva nos anos 1840, de onde as lagostas eram enviadas a lugares tão distantes quanto a Califórnia, e a demanda existia somente por serem baratas e possuírem um alto teor de proteína, basicamente um combustível mastigável.”

E, já neste início, ele começa a cogitar o problema ético: “Um detalhe tão óbvio que a maioria das receitas nem se preocupa em mencionar é que as lagostas precisam estar vivas ao serem colocadas no tacho. Isso faz parte do apelo contemporâneo da lagosta — é o alimento mais fresco que existe. E além de não precisarem ser limpas, temperadas nem depenadas, é simples para os vendedores manter as lagostas vivas. Chegam vivas dentro das armadilhas, são colocadas em recipientes com água do mar e podem — desde que a água seja mantida aerada e as garras dos animais estejam amarradas ou presas para impedir que ataquem uns aos outros por conta do estresse do confinamento — sobreviver até o instante em que são fervidas.

“Então aqui vai uma pergunta que se torna praticamente inevitável diante da Maior Panela Para Lagostas do Mundo e pode vir à tona em cozinhas espalhadas por todos os Estados Unidos: é certo ferver viva uma criatura senciente para nosso mero prazer gustativo? Um conjunto de preocupações relacionadas: seria a pergunta anterior uma manifestação enfadonha de sentimentalismo ou raciocínio politicamente correto? Nesse contexto, qual seria o sentido de “certo”? Seria isso tudo apenas uma questão de escolha pessoal?”

Após descrever todo o sistema nervoso das lagostas, e de como elas são capazes de sentir dor, ele continua a reflexão de maneira extremamente honesta: “toda a questão da crueldade com os animais e da moralidade de comê-los não é apenas complexa, mas também desconfortável. Ou pelo menos é desconfortável para mim, e para praticamente todos os meus conhecidos que apreciam uma ampla gama de alimentos e ao mesmo tempo não querem se enxergar como cruéis ou insensíveis.

Até onde percebo, minha principal maneira de lidar com esse conflito tem sido evitar pensar sobre esse assunto tão desagradável. Devo admitir que também me parece improvável que muitos leitores de Gourmet queiram pensar sobre isso ou ser questionados a respeito da moralidade dos seus hábitos alimentares por uma revista mensal de gastronomia. Porém, como a pauta definida para este artigo é descrever como foi participar do festival de lagostas de  2003, e por conta disso passar vários dias em meio a uma grande massa de americanos comendo lagostas, e por conta disso ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experiência de comprar e comer lagostas, calha que não existe uma maneira honesta de evitar certas questões morais. Há vários motivos para isso. Para começar, não existe só o problema de que as lagostas são fervidas vivas, mas também o de que quem faz isso é você — ou pelo menos isso é feito especificamente para você, in loco. 

“Conforme mencionado, a Maior Panela Para Lagostas do Mundo, que é destacada como uma atração no programa do festival, fica bem à vista de todos na área norte do flm. Tente imaginar um Festival da Carne do Nebraska cujas festividades incluíssem caminhões estacionando e gado sendo descarregado por uma rampa para em seguida ser abatido diante do público no Maior Matadouro do Mundo ou coisa parecida — seria impossível.

“Naturalmente a maioria das lagostas é preparada e comida (percebam, contudo, o eufemismo semiconsciente “preparada”, que no caso das lagostas significa na verdade matá-las bem no meio das nossas cozinhas). No cenário habitual o sujeito chega em casa com as lagostas e toma pequenas providências como encher o tacho de água e pôr para ferver, e em seguida retira as lagostas da sacola ou qualquer que seja o recipiente em que tenham sido trazidas… e então coisas desconfortáveis começam a acontecer. Por mais estuporada que esteja depois do trajeto, por exemplo, a lagosta costuma voltar à vida de forma alarmante ao ser colocada na água fervente.

“Quando é despejada do recipiente para dentro do tacho fumegante, às vezes a lagosta tenta se segurar nas bordas do recipiente ou até mesmo enganchar as garras na beira do tacho como uma pessoa dependurada de um telhado, tentando não cair. Pior ainda é quando a lagosta fica imersa por completo. Mesmo que o sujeito tampe o tacho e saia de perto, normalmente é possível ouvir a tampa chacoalhando e rangendo enquanto a lagosta tenta empurrá-la.

“Ou escutar as garras da criatura raspando o interior do tacho enquanto se debate. Em outras palavras, a lagosta apresenta um comportamento muito parecido com o que eu ou você apresentaríamos se fôssemos atirados em água fervente (com a óbvia exceção dos gritos). Para falar de modo ainda mais direto, a lagosta age como se sentisse dores terríveis, fazendo com que algumas pessoas abandonem a cozinha levando consigo um daqueles cronômetros de plástico para esperar em outro cômodo até o processo inteiro chegar ao fim.

“A maioria dos eticistas concorda que existem dois critérios principais para determinar se uma criatura viva possui a capacidade de sofrer e, assim, possui interesses genuínos que podemos ou não ter o dever moral de levar em conta. Um deles se relaciona ao hardware neurológico requerido para a experiência da dor com que o animal vem equipado — nociceptores, prostaglandinas, neurorreceptores opioides etc. O outro critério é se o animal demonstra algum comportamento associado à dor. E é necessária uma boa dose de ginástica intelectual e detalhismo behaviorista para não ver as ações de lutar, se debater e fazer tilintar tampas de panela como comportamentos associados à dor. 

“(…) De qualquer modo, no flm, diante dos aquários borbulhantes em frente à Maior Panela Para Lagostas do Mundo, observando as lagostas recém-pescadas se amontoando umas sobre as outras, sacudindo impotentes as garras amarradas, se escondendo nos cantos mais escuros ou se afastando inquietas do vidro quando alguém se aproxima, é difícil não sentir que estão infelizes, ou assustadas, mesmo que seja alguma forma rudimentar dessas emoções… e, a propósito, por que a rudimentaridade tem que ser incluída na questão? Por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento seria menos urgente ou desconfortável para a pessoa que está colaborando com ela ao pagar pelo alimento resultante desse sofrimento? Não estou tentando passar um sermão ao estilo do PETA — ou pelo menos acho que não. Ao invés disso, estou tentando compreender e articular alguns dos questionamentos perturbadores que vêm à tona em meio às risadas, à animação e ao orgulho comunitário do Festival da Lagosta do Maine. A verdade é que se, comparecendo ao festival, o sujeito se permitir cogitar que as lagostas podem sofrer e que prefeririam que isso não acontecesse, o evento começa a ficar parecido com um circo romano ou um festival de torturas medievais.”

“(…) é possível que as gerações futuras considerem as práticas de agronegócio e alimentares contemporâneas da mesma maneira como hoje enxergamos os espetáculos de Nero ou os experimentos de Mengele? Minha própria reação inicial é achar uma comparação dessas histérica e extremada — todavia, o motivo pelo qual ela me parece extremada é que eu creio que os animais são moralmente menos importantes que os seres humanos; e quando se trata de defender essa crença, ainda que para mim mesmo, preciso reconhecer que (a) tenho um óbvio interesse egoísta nessa crença, pois gosto de comer certos tipos de animais e quero ser capaz de continuar fazendo isso, e (b) não consegui elaborar nenhum tipo de sistema ético pessoal dentro do qual essa crença se torne verdadeiramente justificável em vez de ser apenas uma conveniência egoísta. 

“Levando em conta o local onde este artigo será publicado e minha própria falta de sofisticação culinária, tenho curiosidade em saber se o leitor se identifica com quaisquer dessas reações, confissões e desconfortos. Também não quero soar excessivo ou moralista, quando na verdade o que sinto é confusão. 

Aos leitores de Gourmet que apreciam refeições bem feitas e bem-apresentadas envolvendo carne de vaca, vitela, cordeiro, porco, frango, lagosta etc.: Vocês pensam muito sobre a (possível) condição moral e o (provável) sofrimento dos animais envolvidos? Se pensam, quais convicções éticas desenvolveram para se permitir não apenas comer, mas também saborear e desfrutar de iguarias à base de carnes de animais (pois o desfrute refinado, em contraste à mera ingestão, é naturalmente a razão de ser da gastronomia)? 

“Se, por outro lado, vocês não dão a menor bola para confusões ou convicções e acham coisas como o parágrafo anterior puro umbiguismo sem sentido, o que em seu íntimo faz vocês sentirem que não existe realmente problema algum em desconsiderar de forma peremptória toda essa questão? Isto é, a recusa em pensar nessas coisas seria o produto de um raciocínio ou na verdade vocês apenas não querem pensar sobre o assunto? E se for isso mesmo, por que não? Vocês chegam a pensar, mesmo à toa, sobre as possíveis razões dessa relutância em pensar no assunto?

“Afinal de contas, ser muito consciente, atencioso e cuidadoso a respeito do que se come e de todo o contexto englobante não é parte do que distingue um verdadeiro gourmet? Ou toda a atenção e a sensibilidade extraordinárias do gourmet devem se limitar ao sensorial? Tudo poderia realmente ser resumido a uma questão de sabor e apresentação? Estas últimas indagações, todavia, ainda que sinceras, obviamente envolvem questões muito maiores e mais abstratas a respeito das conexões (caso existentes) entre estética e moralidade — sobre o que realmente significa o adjetivo em uma expressão como “A Revista da Boa Vida” — e essas questões levam diretamente a águas tão profundas e traiçoeiras que talvez seja melhor encerrar por aqui a discussão pública. Existem limites para o que mesmo pessoas interessadas podem perguntar umas às outras.”

E o texto termina com esse convite à reflexão. David Foster Wallace já tinha, anos antes, sido enviado a uma feira agropecuária para escrever um outro ensaio. O texto também é muito bom e, em partes, é possível ver o início de alguns desconfortos em relação aos gritos de porcos. Quando nos conectamos com os animais, fica mais difícil justificar o financiamento de tanta violência.

Para terminar, só um complemento, voltando às lagostas. David Foster Wallace era conhecido por inserir toneladas de notas de rodapé em seus livros. Esse ensaio não é diferente. Em uma nota de rodapé, ele basicamente conclui todas as suas reflexões sobre a feira de lagostas: “A comparação moral em jogo não é o valor de uma vida humana versus o valor de uma vida animal, mas sim o valor de uma vida animal versus o valor do gosto humano por um tipo específico de proteína. Até mesmo o carnista mais teimoso reconheceria que é possível viver e comer bem sem consumir animais.

Encerrando muito cedo uma carreira literária ainda muito promissora, considerado um dos melhores escritores do final do século XX, David Foster Wallace se suicidou em 2008, aos 48 anos.

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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