O veganismo tem basicamente três portas de entrada: causa animal, saúde e meio ambiente. Mas são muitas as portas de saída: pressão social, publicidade carnista diária e onipresente, comidas afetivas, medos e dúvidas nutricionais, dificuldades no ajuste cultural, na montagem do prato, no aprendizado de novas receitas, na comodidade de comer fora com amigos e família, na escolha de cosméticos, roupas, leitura de rótulos nos mercados, eventos e viagens a trabalho… e a lista segue.
Tudo isso implica na existência de muitos ex-veganos. Pessoas que buscaram esse caminho, mas foram “vencidas” por algumas das portas de saída. Uma pesquisa inclusive indicou que em torno de 80% dos que tentam seguir essa escolha de vida desistem.
Embora o veganismo seja acessível a todas as classes sociais (o prato vegano é em média 40% mais barato que o prato carnista, com os mesmos nutrientes), muitas das dificuldades de adaptação são reduzidas para quem tem mais dinheiro.
E aí entra nossa surpresa com os ex-veganos milionários. Felipe Neto é o maior Youtuber do Brasil, com 44 milhões de assinantes. Anitta tem 66 milhões de seguidores no Instagram. Ambos têm acesso financeiro aos melhores nutricionistas e chefs do país, as maiores “portas de saída” ali não existem para eles. Também possuem agendas bastante corridas, mas podem pagar para manter a comodidade de não comer, nem vestir, nem usar cosméticos e outros produtos vindos de crueldade com animais. Ambos também são grandes ativistas contra diversos tipos de opressão, escrevo sobre isso neste post de poucas semanas atrás, trazendo um desafio aos “wokes”.
Então, mesmo Anitta e Felipe Neto levantando a bandeira e apoiando o veganismo, por que desistiram? Por que não conseguiram finalizar a transição individual? Acredito que podemos ter algumas pistas com o filósofo Espinosa, um dos meus preferidos.
São em momentos difíceis que se descobre o verdadeiro propósito de uma mudança. Espinosa é conhecido como o filósofo dos afetos, tendo dissecado dezenas deles (amor, ódio, melancolia, ciúme, soberba, inveja, desejo etc.). Viveu em Amsterdã no séc. XVII, morreu aos 44 anos com uma obra imensa escrita e teve Einstein como seu seguidor mais famoso. Portanto, dispensa apresentações mais longas e podemos ir direto para seus ensinamentos.
Um grande aprendizado de sua filosofia é o conceito de conatus, que descreve a potência de cada pessoa, sua força de perseverar. Tudo o que acontece conosco afeta nosso conatus positivamente (gerando alegria e contentamento) ou negativamente (gerando dor e melancolia). E, da mesma maneira que temos paladares e gostos diferentes, cada individualidade tem seu “ritmo” de resposta a bons e maus encontros. Bons encontros aumentam nosso conatus. Maus encontros o reduzem.
A cada minuto, somos afetados (temos encontros) tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora. Segundo Espinosa, “quando a mente é tomada de algum afeto, o corpo é, simultaneamente, afetado por meio do qual sua potência de agir é aumentada ou diminuída.”
Internamente, nossos pensamentos e funções biológicas fazem nosso conatus flutuar. Se você tem sede e consegue tomar uma água, sente alegria. Conatus aumenta. Se não tem como matar a sede, sente dor. Conatus reduz. Se você fica relembrando um erro que cometeu, pode sentir vergonha e, com isso, baixar seu conatus. Se, por acaso, relembra alguma conquista ou momento feliz de sua vida, fica satisfeito consigo mesmo e eleva seu conatus.
Do lado externo, ainda mais no mundo carnista em que vivemos, somos afetados sucessivamente no encontro com outras pessoas, eventos, propagandas, notícias. Cada encontro desses afeta nossa força de perseverar.
E aí entra o papel do nosso propósito. Por que decidimos nos tornar veganos? Qual foi nossa porta de entrada? Com tantos encontros, notícias, medos e dores em um mundo majoritariamente contra nossa escolha, como aumentar nossa potência? Como não deixar baixar o conatus e ficar “tentado” a uma das inúmeras portas de saída?
Um conatus negativo pode nos levar a desanimar e entrar em conflitos internos com nossa decisão. Conflitos e dúvidas que, em outro contexto, não emergiriam. Por mais força de vontade que cada um tenha para manter sua escolha vegana, por mais automotivação e discursos inspiradores, por mais firmeza interna que tenhamos, Espinosa afirma que ainda somos frágeis em relação ao mundo externo: “a potência humana é bastante limitada, sendo infinitamente superada pela potência das causas exteriores.”
Mas o que devemos fazer então? O primeiro passo é reconhecer que cada evento, cada encontro afeta de modo diferente cada pessoa. É o famoso ditado popular, também citado por Espinosa em seu livro Ética: “cada cabeça, uma sentença”. Então, você tem de identificar sozinho que tipo de afetos e encontros precisa organizar. Você conhece o que aumenta ou diminui o seu conatus? O que te empolga ou te desestabiliza? Como lida com cada contexto em relação a pessoas, lugares, comidas, eventos?
Ao identificar o que aumenta sua potência, que só você pode descobrir, ao ouvir, reconhecer e atuar sobre o que aumenta sua “força de perseverar”, você melhora suas reações em momentos de dúvidas. Melhora inclusive o clima em torno de si, com amigos e familiares deste mundo que não se importa com, ou não consegue enxergar ainda, tanta crueldade com animais.
Siga o caminho indicado pelo filósofo dos afetos, organize os seus encontros de acordo com seu conatus. E você reduzirá a probabilidade de dar um passo atrás, como Anitta e Felipe Neto fizeram.
Mais um ensinamento de Espinosa para Anitta e Felipe Neto e… (este trecho final é direcionado a atuais e potenciais ex-veganos)
Um grande aprendizado de sua filosofia é que apenas um afeto mais forte nos “liberta” de outros afetos. Se você tem dificuldade em sua transição, analise se é possível fazer espinosamente diferente.
Por exemplo, qual foi sua motivação para se tornar vegano? Se foi a causa ambiental e ela não estiver sendo forte o suficiente para resistir a um churrasco, verifique se documentários e textos sobre saúde em uma dieta vegana te ajudam a se fortalecer. E vice-versa.
Essas duas portas de entrada são muito populares, mas são realmente mais fracas em momentos de baixo conatus, em que você fica refém do mundo externo e pode acabar sendo tentado a desistir deste caminho ético. Inclusive, eu acredito que 100% dos “ex-veganos” desistiram da escolha porque nem saúde nem meio-ambiente são afetos fortes o suficiente para resistir à cultura carnista, a toda comodidade que “não se importar com animais” culturalmente nos oferece.
Independentemente de qual das duas portas de entrada te trouxe ao veganismo, o pedido que faço é para você se abastecer de gasolina vegana com a porta de entrada mais forte. Não postergue o afeto mais intenso e essencial: o sofrimento animal. Pesquise e veja documentários sobre como eles são tratados pela indústria. Aqui neste meu post tem uma lista de 12 vídeos para você fortalecer seu afeto.
Se não suportar as cenas, ao menos leia as legendas e descrições. Aliás, se não suporta as cenas, algo dentro de você já diz que é um afeto muito mais forte do que o prazer do bacon ou da lagosta, lembre disso.
Foi apenas me forçando a passar por esses afetos intensos que consegui realizar minha transição. Eu sempre fui o mais carnista da família, eu sabia que precisava de um afeto muito forte para me desconectar do afeto prazeroso de comer os fluídos ou pedaços de animais.
Por algumas semanas, assisti a diversos documentários e cenas dos “bastidores” da indústria. Aqui descrevi como foi assistir Dominion em 2 posts, podem começar lendo sobre o filme, antes de assisti-lo. Se a leitura bastar (lembrando, cada um é afetado diferentemente em seu conatus), nem precisa ver o documentário. Mas, quando sentir que um afeto forte pode te fazer desistir, volte a ele. A filosofia de Espinosa funciona (e serve para outros vícios também, fica a dica).
Quando estiver sendo bombardeado por afetos fortes, pergunte-se que está na raiz da sua “desorganização” do conatus? Verifique se você foi suficientemente afetado pela empatia com os animais, pergunte-se o que sentiria se estivesse no lugar deles, sendo criados em sofrimento, manuseados e decepados em vida (galinhas debicadas, porcos com rabos cortados e bois castrados sem anestesia, vacas tendo os corpos invadidos para engravidar forçadamente e tudo isso antes de uma morte nada humana, já que não há meio humano de se matar alguém que não quer morrer).
Assista às imagens, o sabor do bacon vai trazer um afeto cada vez menor a cada choro de um porco separado da mãe. O segredo é conseguir afetos um pouco mais fortes do que aqueles que te fazem querer comer lagosta com gorgonzola.
Espinosa nos mostra, com sua filosofia, que apenas discursos de conscientização (como esse texto aqui.) nunca serão priorizados quando um afeto mais forte surgir, discursos não afetam comportamentos. Experiências, sim. Segundo ele: “fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro”.
Na próxima vez em que sentir ondas te levando na direção contrária (publicidade, eventos, comodidade, prazer e todas as portas de saída para um caminho sem ética em relação aos animais), reorganize seus encontros, abasteça-se de gasolina vegana, fortaleça seus afetos. Discursos, orações e “reforços” interiores não vão te ajudar. Espinosa diz que você precisa lutar trazendo afetos externos. Então, mude sua estratégia e analise quais experiências de conexão com sofrimento animal (visuais principalmente) você precisa para contrapor as ondas e ventos contrários. Com quais afetos exteriores você precisa armar seu barco (um remo? uma vela? um motor?) para atravessar as ondas e reduzir a tentação da porta de saída?
Arme-se da escolha pela não violência. Os animais agradecem.
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.
Texto maravilhoso e vem em linha com o que venho observando. Por isso eu importante fazer parte da comunidade vegana, se fortalecer nos outros, ter amigos na causa. Fantástico