Uma guerra nuclear poderia causar uma catástrofe muito maior do que imaginamos, poderia nos colocar em um inverno nuclear, um cenário climático capaz de abalar os ecossistemas do planeta, com um impacto inestimável para todos os seres vivos.
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Um inverno nuclear pode comprometer a agricultura, por isso precisamos de um plano de segurança
Há setenta mil anos, acredita-se, a humanidade quase foi extinta.
Uma super erupção vulcânica, chamada Toba, liberou uma grossa camada de cinzas numa grande parte do mundo e escureceu o sol por seis anos inteiros. Cultivos morreram ao redor do planeta e, pela maioria das estimativas, só alguns milhares de seres humanos sobreviveram — alguns pesquisadores acreditam que tenham sido apenas 40 “casais reprodutores” de sobreviventes.
A possibilidade que um evento assim aconteça novamente deixa David Denkenberger acordado a noite. Denkenberger é professor-assistente de engenharia mecânica na Universidade do Alaska Fairbanks, e seu pensamento sobre cenários apocalípticos o levou a um projeto paralelo quixotesco: descobrir como garantir que ninguém morra de fome após uma catástrofe natural como Toba, ou uma artificial como um inverno nuclear.
Pode parecer uma fixação peculiar, mas é um problema real sobre o qual poucas pessoas estão pensando. O mundo não tem muita comida guardada na eventualidade de um desastre de grande escala.
Para sermos justos, desastres assim são bem raros. Toba foi um. Outro foi o asteroide que acredita-se que tenha matado os dinossauros. E há os desastres criados pelo homem — o risco de um “inverno nuclear” logo após uma guerra nuclear, por exemplo.
Nenhum desses riscos catastróficos globais são prováveis, mas cada um deles seria desastroso se acontecesse, e Denkenberger argumenta que se começarmos a agir agora, podemos torná-los menos catastróficos. Ele deu início a uma organização — Alliance to Feed the Earth in Disasters (ALLFED — ou Aliança para alimentar a Terra em [caso de] desastres, em português) — dirigida a fazer exatamente isso.
Denkenberger teve a ideia em 2011, enquanto lia um artigo intitulado “Fungos e Sustentabilidade”, o qual concluía que, se humanos causassem sua própria extinção, cogumelos reinariam novamente no mundo. “Eu pensei, por que nós simplesmente não comemos os cogumelos e não nos extinguimos?”, comenta o professor.
Por muito tempo, pensar sobre catástrofes tem sido o domínio, em sua maior parte, de grupos marginais ou alguns sobrevivencialistas (no original survivalists). Há uma bibliografia acadêmica muito limitada que olha para aquilo que pode destruir a humanidade e como prevenir tais desastres ou sobreviver a eles. “Há mais artigos acadêmicos sobre besouros do esterco do que sobre o destino do H. sapiens”, um pesquisador na área de riscos existenciais escreveu ano passado.
Mas isto está mudando aos poucos. O destino da civilização humana é um tema de pesquisa e investigação científica importante — e se nós formos azarados o suficiente, ela pode ser vital.
>> Leitura recomendada: Segurança nuclear, um importante tópico de interesse para os governos.
Como alimentar o mundo em caso de um desastre
A ALLFED é uma organização sem fins lucrativos de oito pessoas com uma simples missão: ajudar a aumentar a preparação de governos, ONGs, corporações e órgãos internacionais para alimentar todos no mundo no dia seguinte a uma catástrofe natural ou um inverno nuclear. O grupo foca tanto em pesquisa quanto em comunicação: descobrir como produzir comida sem o sol e como disseminar esta informação para ajudar a humanidade no caso de um desastre.
Na primeira vez que Denkenberger mergulhou na pesquisa existente quanto a sobrevivência após tais catástrofes o que ele encontrou não foi animador. A maioria da pesquisa existente dá como certo que bilhões de pessoas morrerão.
No entanto, Denkenberger argumenta que a tecnologia já avançou o suficiente para que não haja motivo para tanto pessimismo. Cogumelos acabaram não sendo uma boa solução — caros demais e demoram para crescer — mas há várias alternativas. Insetos, por exemplo — eles crescem rápido, eles comem coisas que nós não podemos, e eles são comestíveis (embora não amigáveis às sensibilidades culinárias de muitos de nós). Algas marinhas são outro exemplo. Elas podem crescer bem com menos luz solar.
O resfriamento repentino causado por um mundo sem sol mudaria como as correntes no oceano se movem e, por mais que seja difícil criar um modelo que preveja o resultado disso, é plausível que isso na verdade resulte em um oceano rico em nutrientes, adequado para o cultivo de comida que requer pouca luz.
E então temos bactérias que transformam produtos biológicos como folhas e grama, que não podemos comer, em açúcares e proteínas, que podemos. E bactérias que fazem a mesma coisa, mas se alimentam de metano do gás natural. (As companhias trabalhando nisso preferem o termo “proteínas unicelulares”, é o que me conta Denkenberger, o que definitivamente soa mais apetitoso).
No livro Feeding Everyone No Matter What (Alimentando a Todos, Não Importa o que Aconteça), Denkenberger e o coautor Joshua M. Pearce exploram o estado da arte dessas opções. Elas não parecem apetitosas — mas o mais crítico é que elas podem ser possíveis. Se a humanidade tivesse que reorientar seus objetivos para o de produzir calorias suficientes sem precisar do sol, parece ser possível quase alcançarmos essa meta — e pesquisas adicionais podem vir a tapar as lacunas restantes.
Na maior parte dos casos, não se tratam de projetos que você possa montar no jardim de casa. “Muitos esforços, como dos preparadores (no original, preppers)” — uma subcultura de pessoas que se preparam para o colapso da civilização — “tem se focado na sobrevivência individual ou familiar”, aponta Denkenberger. Mas hoje, a produção alimentícia é muito mais eficiente se for centralizada em fábricas, e isso continuaria a ser verdade depois de uma catástrofe. Por isso a equipe da ALLFED foca sua pesquisa em como converter usinas químicas e fábricas para o cultivo de comida, mais do que em como domicílios ou indivíduos poderiam sobreviver.
“Algumas dessas ideias podem ser usadas em escala doméstica”, Denkenberger disse, mas “isso é mais um plano B se não pudermos ter a cooperação de larga escala necessária para readaptar uma fábrica”.
Alimentar o mundo também garantiria nossa resiliência contra uma catástrofe de maneiras mais indiretas. Por exemplo, países podem ter menor probabilidade de entrar em guerra e governos maior chance de se unir se houver acesso confiável a comida no meio de uma crise. Por outro lado, guerras e conflitos internos podem ser mais prováveis numa eventual falta de comida.
Planejar para o pior dos casos pode ser útil em situações que não são tão ruins quanto o pior dos casos, tal como uma má seca que leve ao que Denkenberger chama de um “déficit de 10 por cento”. Uma baixa de 10 por cento na produção agrícola global ainda deixaria comida suficiente para abastecer a todos, mas na prática, os preços de alimento provavelmente subiriam de maneira que centenas de milhares morreriam de fome. Um plano de “backup” também seria útil para tais situações.
A ALLFED é uma organização bastante nova então, no presente, eles estão apenas investigando as oportunidades “mais a mão” (no original: lowest-hanging fruit) de uma dúzia de áreas diferentes relevantes para a alimentação do mundo no caso de uma catástrofe. Poderiam os biorreatores que produzem etanol serem ao invés disso usados para transformar biocombustíveis em açúcar que as pessoas possam comer? Pode-se cultivar proteínas unicelulares em folhas de plástico? Quão caro será a readaptação de usinas químicas?
Claro, tudo isso levanta a questão: por que não colocar esse esforço em prevenir essas catástrofes, cujas perdas sem dúvidas seriam enormes mesmo que pouquíssimas pessoas morressem de fome? Denkenberger certamente concorda que devemos nos focar nisso. Mas às vezes vale a pena se preparar para algo que preferiríamos prevenir.
Autora: Kelsey Piper — para o Future Perfect, da Vox. 25 de julho de 2019 e publicado originalmente em: https://www.vox.com/future-perfect/2019/7/25/20707644/nuclear-winter-famine-apocalypse-allfed
Tradução: Bruno Gabellini