Faz um ano e meio que comecei esse blog. Já falei bastante dos três pilares do movimento pela libertação animal: animais, meio ambiente e saúde. Sempre pensei neles como as portas de entrada, mas agora vejo que somente três portas não bastam.
O caminho para um mundo sem crueldade animal passa também por outros dois pilares: espiritualidade e pessoas. Assim, a equação seria Veganismo = Animais + Meio Ambiente + Saúde + Espiritualidade + Pessoas. Imaginando um arco, os dois extremos se juntam. Os animais (as vítimas, os principais oprimidos) lado a lado com as Pessoas (os algozes, os opressores).
O pilar Espiritualidade, não muito lembrado, é até bem conhecido. Existem inúmeras correntes religiosas (ou místicas, ou espirituais, como a leitora preferir) que “salvam” alguns animais da exploração. Algumas chamam as vacas de sagradas, várias proíbem comer porco, outras pregam o vegetarianismo, algumas o veganismo e algumas salvam até vegetais (ver o jainismo), falando que cenouras berram de dor quando são fatiadas.
O pilar Pessoas busca nos lembrar que… as pessoas também são vítimas. São vítimas quando pensamos que os matadouros e frigoríficos possuem as piores condições de trabalho possíveis (e a maior rotatividade e taxa de acidentes, 30% anual!); quando imaginamos o impacto mental que traz um turno diário com meta de matar 2 mil animais (como esse trabalhador chega em casa? como lida com a família?); quando refletimos sobre como os abusos contra animais, mesmo pets, pode ser a porta de entrada para outros crimes (vários estudos nos EUA mostram conexão entre violência com animais e com pessoas, possuem até anualmente uma “Semana de Visibilidade” focada nessa conexão).
O pilar Saúde foca muito no estômago, na melhoria de vida “do umbigo para dentro”. Mas e na melhoria das nossas relações sociais? E nas relações político-econômicas? E na redução da violência coletiva entre pessoas? Por isso, precisamos também desse novo pilar. E ele não se resume às pessoas violentas.
Em um ano e meio de reflexões com amigos, parentes, leitoras, eu não conseguia entender como tantas pessoas boas, carinhosas, atenciosas, como tantas pessoas cheias de amor não se importavam com a crueldade animal. Agora, acho que compreendi.
Vejam esse trecho de um livro do Coetzee, Nobel de Literatura, quando uma personagem defensora dos direitos dos animais reflete com seu filho: “É possível, me pergunto, que todos estejam participando de um crime de proporções inimagináveis? Estou fantasiando isso tudo?… Calma, digo a mim mesma, você está fazendo tempestade em copo de água. Assim é a vida. Todo mundo se acostuma com isso, por que você não? POR QUE VOCÊ NÃO?”
Eu não consigo me acostumar com pessoas cheias de amor se acostumando com tanta crueldade, evitando assistir aos vídeos com assassinatos que financiam, fugindo da responsabilidade de agirem quando descobrem a violência que é matar alguém que não quer morrer.
O movimento pela libertação animal precisa ser também pela libertação das pessoas dessa inércia, desse vírus cultural, dessa dependência emocional com alimentos (e produtos) compostos de crueldade.
Se eu não entender que as pessoas são reféns, se eu continuar a achar que estão com plena sanidade mental, não há como não equipará-las aos grandes responsáveis por atrocidades na nossa história. Não há como não interpretá-las como praticamente nazistas. E, sendo assim, não há como não odiá-las. Odiar as pessoas seria a única saída. E muitas vezes, senti esse ódio.
Eu me recuso a interpretar meus amigos, parentes, conhecidos, como nazistas. Eu me recuso a odiá-los. Um movimento que prega a paz não pode ser movido pelo ódio. Então, mudei.
Após descobrir o pilar Pessoas, entendi que posso tratá-las como indivíduos inocentes e ingênuos que precisam de ajuda, que precisam de apoio para perceber que a cura (pelo menos dessa doença) só depende delas.
Assim, em vez de odiar, o sentimento interno que me surge é o de cuidado. O de paciência, atenção e tolerância. O de companheirismo e apoio mútuo. Tudo o que a humanidade precisa para ter paz consigo mesma. E uma humanidade em paz consigo mesma é a única que conseguirá promover a paz em sua relação com animais.
Quando vemos tantas opressões entre humanos no mundo, a raiva toma conta. Mas matar “adversários opressores” também não pode ser a solução entre humanos. As guerras terminam quando começa o diálogo. E o diálogo avança melhor quando não odiamos o oponente. E, estrategicamente, pensar o oponente como uma pessoa doente e não como um demônio ajuda a aumentar nossa tolerância.
No Afeganistão, são pessoas (homens) doentes proibindo mulheres de fazer faculdade. No Brasil, são pessoas (homens) doentes matando pessoas trans nas ruas. Na polícia dos EUA (e em todas do mundo), são pessoas doentes discriminando e matando principalmente pessoas negras inocentes. No Irã, são pessoas doentes (homens) obrigando mulheres a se vestir tapando o cabelo.
Uma diferença da crueldade com animais, claro, é a quantidade de vítimas. São pessoas doentes (homens e mulheres) matando 70 bilhões de animais terrestres por ano. E trilhões de animais marinhos. Sem falar das crueldades cotidianas com cães e gatos e outros pets.
Se formos tratar todos os opressores como nazistas, a solução fácil seria matá-los. Estamos dispostos a matar todo o governo do Afeganistão? E nosso tio do pavê que é transfóbico? E todos os homens machistas do Irã (e do mundo inteiro)? E o caminho é mesmo MATAR todos os racistas?
Se a resposta for não, então a alternativa é realmente vê-los como doentes e se aproximar para mudá-los, conseguir com que eles se ajudem e ajudem a mudar o mundo. Foi assim com o próprio nazismo. Não era possível matar metade dos alemães, nem prender a todos que participaram das crueldades. A solução foi um amplo projeto de desnazificação. A solução foi a conversa, foi o diálogo, foi a educação.
Por exemplo, do infoescola: [após a Guerra, a gestão da Alemanha foi dividida entre os Países Aliados] “O objetivo dessa divisão e ocupação era eliminar todos os vestígios do regime nazista. Mais de 200 mil nazistas foram aprisionados. Os Acordos de Potsdam reforçaram a proposta de limpeza da sociedade, da cultura, da imprensa, da justiça e da política de toda influência nazista. Ainda em 1945, os principais líderes vivos do nazismo começaram a ser julgados em Nuremberg, onde 24 pessoas foram condenadas e também seis associações julgadas criminosas.”
A Alemanha tinha mais de 40 milhões de pessoas nessa época. Se 30% fosse nazista raiz, daqueles que dá ódio na alma, seriam 12 milhões de supremacistas ativos ferrenhos. Só 200 mil foram presos. O resto, principalmente os passivos na banalidade do mal, precisou se libertar da ideologia violenta por meio da educação e do diálogo. Estavam doentes, eram reféns da crueldade em que participavam.
Não dá para ver o opressor sempre como um inimigo a ser fuzilado. As pessoas opressoras também devem ser vistas como ferramentas para a destruir a própria opressão na qual participam. É ajudando-as a se curar dessa doença e vício pela crueldade (ou ignorância e inércia em relação a ela) que transformamos o mundo. É só quando elas mudarem que seremos maioria (principalmente no caso da libertação animal, em que 98% da população mundial ainda está do lado violento).
Se quiser construir uma casa, o mestre de obras não pode fuzilar os pedreiros. O marceneiro não pode odiar o martelo se quiser pregar uma tábua. O Hamilton não pode ter raiva do carro nem dos mecânicos se quiser ganhar uma corrida.
Precisamos curar essas pessoas por meio da informação e do acolhimento, como faríamos com qualquer pessoa doente ou viciada em drogas. É com a transformação dessas pessoas que os animais vão se libertar, eles não têm como fazer isso sozinhos ou depender apenas de uma minoria de 2%.
Repetindo: a melhor estratégia para domarmos nossa raiva, e sermos efetivos para a libertação animal, é pensar nos carnívoros como reféns de um sistema maior que eles. Como pessoas doentes. Na verdade, esse diagnóstico é até bem verdadeiro: “A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, definiu SAÚDE como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade”.
Quem está em um completo bem-estar mental e social se financia a crueldade com animais?
Os onívoros são pessoas doentes (pela cultura, pelo marketing, pelo vício de dopamina que recebem comendo bacon e muçarela). São pessoas dependentes do prazer de suas violências diárias.
Eles são 98% do mundo e são nossa ponte para a libertação animal. Se precisamos deles, logo, também precisamos gostar de estar junto deles, não podemos nos fechar na bolha vegana. Sim, devemos tentar frequentar os ambientes empanturrados de carnismo. Se for possível psicologicamente, é importante comparecer nos churrascos e olhar todos ali como ferramentas, entendendo que estão doentes, abraçando-os, ouvindo suas piadas… Sei que é difícil ver as pessoas se esbaldando em violência, mas, quanto mais lotado o evento, maior a probabilidade de você encontrar alguns abertos a se tratarem do vício.
Priorize sua energia nas pessoas já simpáticas ao tema, aquelas em que só falta um empurrãozinho. Tente carinhosamente fazer com que tomem o primeiro passo, reduzindo consumo de animais e se tornando aliadas. Aos poucos, nos churrascos seguintes, as piadas vão reduzir. Se mais de 50% for aliado (mesmo sendo apenas flexitariano), as próprias piadas nazistas vão minguar. E a transformação no seu círculo social terá começado.
Veganismo pelos… Animais + Meio ambiente + Saúde + Espiritualidade + Pessoas.
Pode parecer ativismo religioso se colocar em uma posição de “salvar” os demais dos seus “pecados”. Mas talvez seja esse o caminho. E aí voltamos ao outro pilar desse texto, a Espiritualidade. A imensa maioria do mundo segue algum tipo de espiritualidade e todas elas se conectam com discursos de paz. A própria abolição da escravidão foi fortemente influenciada pela religião na Inglaterra e nos EUA. Direitos humanos, idem.
Se o carnismo é uma seita quase impossível de sair, o veganismo se assemelha mais a uma religião. Existem momentos e blocos violentos nas religiões, mas também existem segmentos extremamente pacíficos. Toda corrente espiritual possui líderes e/ou seguidores veganos. Temos budistas veganos, católicos veganos, judeus veganos, muçulmanos veganos, umbandistas veganos e assim por diante.
Como as tradições espirituais acolhem potenciais novos integrantes? Acolhendo de coração e alma. Como as religiões tratam os “infiéis”? Acolhendo de coração e alma. E perdoando.
Devemos evitar olhar para as pessoas como em um Tribunal da Inquisição, não devemos julgá-las nem queimá-las em praça pública, justamente porque é pelo afeto positivo que elas vão mudar, que vão se religar aos animais e entender como o sofrimento deles é desnecessário e injusto, como tudo se baseia apenas em atender prazeres individuais.
Infelizmente, acredito ser muito difícil veganizar o mundo só falando das vítimas acorrentadas e degoladas. Pessoas doentes não se importam com as vítimas, mas ainda se importam com sua religiosidade. Uma porta de entrada para o veganismo também é uma porta de entrada para “salvação de suas almas” (qualquer crença ou interpretação que a pessoa faça dessa frase).
Quem ainda come carne não deve ser fuzilado, mas salvo. A Alemanha não se desnazificou matando todos os nazistas, mas acolhendo-os. Grande parte dos alemães só apoiou o regime pela inércia e ignorância, faziam atividades burocráticas desconectados do que acontecia nos campos de concentração, sofriam com a propaganda e lavagem cerebral, os nazistas estavam presos em uma seita e foram salvos. Suas almas e espiritualidade também. Comedores de carne não são nazistas, eu me recuso a vê-los assim, mas podem ser salvos da mesma maneira.
Heartivism: ativismo com o coração. Se nosso ativismo é pela paz, ele não pode se basear no ódio. Um ativismo violento pelo fim da violência pode ser contraproducente (além de paradoxal). Sei que é difícil, quando lembramos dos animais nos calabouços, mas Espiritualidade e Pessoas são dois pilares fundamentais.
O veganismo precisa abraçá-los para crescer. Pode ser um caminho até mais rápido para as pessoas se conectarem com o sofrimento dos animais, se religarem a algo maior que o prazer individual de comer bacon.
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“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, abrir espaço” (Ítalo Calvino)
No meio do inferno que criamos para os animais, só o veganismo é a salvação. Se o pilar racional e ético (“é errado machucar os animais”) está demorando muito, precisamos dar atenção também ao coração e à espiritualidade das pessoas. Cuidar melhor delas. É assim que elas se transformam.
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Para quem ainda come animais, ficam essas questões abaixo. Olhe para seu coração. Conecte-se com sua espiritualidade e…
Você não se sente refém de algo que não faz parte dos seus valores mais íntimos?
Se não tivesse sido anestesiada nessa cultura desde a infância, você realmente machucaria animais? Será que pagaria para alguém machucá-los?
Como você se sente escondendo de si toda a violência que financia? Sabemos que não concorda. Então, por que continuar?
Por que não pesquisar sobre o tema? Buscar ver o que acontece antes do leite chegar à sua mesa? Antes da carne chegar à churrasqueira ou do ovo no pudim? Por que não pesquisar sobre os bastidores do couro, das peles, dos zoológicos, dos rodeios?
Quantos anos mais você vai evitar se questionar? Essa é a pessoa que você quer ser? Você é alguém que luta de verdade contra as opressões do mundo? Que luta contra TODAS as injustiças?
Quanto tempo mais você vai procrastinar? Quanto vai demorar para colocar a si própria contra a parede, e não os animais no paredão?
Como diz Marly Winckler, fundadora da Sociedade Vegetariana Brasileira: “Como queremos encontrar e praticar a paz se praticamos a violência em cada refeição?”
Veganismo pelos… Animais + Meio ambiente + Saúde + Espiritualidade + Pessoas.
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.
Orgulho da sua trajetória. Obrigada por ajudar com a minha também ❤️🐷
Excelente texto! Veganismo é saudável e pacifista.