De Sam Deere
Aqui estão quatro ideias com as quais provavelmente você já concorda. Três se referem a valores, e a última é uma observação sobre o mundo. Separadamente, cada uma delas parece um pouco banal ou óbvia. Mas, juntas, elas têm implicações significativas a respeito de como pensamos sobre fazer o bem no mundo.
As quatro ideias são as seguintes:
- É importante ajudar as outras pessoas: quando as pessoas têm uma dificuldade e podemos ajudá-las, entendemos que devemos ajudá-las. Por vezes, pensamos que isso poderia até ser uma exigência moral: a maioria das pessoas entende que os milionários deveriam doar algum dinheiro. Mas você ficaria surpreso em saber que nós que estamos na média salarial ou acima dela em um país rico somos normalmente parte dos 5% mais ricos do globo1, e também poderíamos doar alguma coisa.
- As pessoas2 são iguais: todo o mundo tem o desejo de ser feliz, saudável, realizado e livre, sejam quais forem as circunstâncias. Todas as pessoas são valiosas, em qualquer lugar onde morem, sejam elas ricas ou não, e independentemente da sua etnia, idade, sexo, capacidade, religião, etc.
- Ajudar mais é melhor do que ajudar menos: tudo o mais permanecendo igual, devemos salvar mais vidas, ajudar as pessoas a viverem mais e fazer mais pessoas felizes. Imagine vinte pessoas doentes deitadas em uma enfermaria de hospital, que morreriam se você não desse algum medicamento a elas. Você tem medicamentos suficientes para todas e não tem motivo nenhum para guardá-los para uma outra oportunidade: será que alguém escolheria sem um motivo aparente salvar algumas dessas pessoas se fosse igualmente possível salvar todas elas?
- Nossos recursos são limitados: mesmo os milionários têm uma quantia finita de dinheiro que podem gastar. Isso também é válido para o nosso tempo: nunca temos horas suficientes no nosso dia. Decidir gastar mais dinheiro ou tempo em uma opção é uma escolha implícita de não gastar em outras opções (quer estejamos pensando nelas, quer não).
Acho que essas quatro ideias são indiscutíveis. Me parece bem intuitivo que devamos ajudar as pessoas em necessidade se pudermos; que não devemos dar uma preferência aleatória a uns grupos em detrimento de outros; que iríamos preferir ajudar mais pessoas e não menos se pudéssemos; e que não temos tempo e dinheiro infinitos.
Na verdade, eu iria mais além: diria que nos sentiríamos bastante desconfortáveis ao tentar defender as posições contrárias se estivéssemos conversando com alguém, dizendo:
- Ajudar outras pessoas em dificuldade não é moralmente obrigatório, importante, nem mesmo bom.
- Tudo bem se eu valorizar as pessoas de forma diferente dependendo das suas diferenças arbitrárias como etnia, sexo, capacidade etc.
- Não importa que algumas pessoas morram mesmo se não me custasse muito para salvar suas vidas.
- Temos recursos ilimitados.
Entende o que eu digo?
Não temos dinheiro suficiente, então sempre precisamos escolher a causa mais merecedora para apoiar.
Se concordarmos que essas quatro ideias simbolizam valores importantes — e acho que concordamos —, então são grandes as implicações sobre a maneira como devemos pensar em fazer o bem. Na verdade, isso significa que o jeito como normalmente pensamos em fazer o bem está errado.
Para sermos fiéis a esses valores, precisamos pensar sobre como podemos ajudar o maior número de pessoas com nossos recursos limitados.
Isso é importante, porque existem algumas causas com as quais podemos gerar um grande impacto investindo uma quantia pequena de dinheiro. Na verdade, as melhores opções são muito, muito melhores do que a média, às vezes centenas de vezes melhores. Isso pode significar a diferença entre ajudar uma pessoa e ajudar centenas de pessoas com exatamente a mesma quantidade de tempo ou dinheiro.
Isso é porque uma organização escolhida aleatoriamente quase certamente não está gerando um impacto tão grande quanto as instituições de caridade mais eficazes (na verdade, muitas causas que decidimos apoiar tendem a ser resultado de uma escolha aleatória ou de fatores sistêmicos que significam que estamos apenas expostos a elas).
E isso importa, porque, se não escolhemos bem, então ou bem não estamos dando às pessoas um tratamento igualitário (ou seja, estamos implicitamente discriminando alguns grupos de pessoas), ou então não estamos ajudando todas as pessoas que podemos (ou seja, permitimos que gente demais sofra ou morra, mesmo que possamos ajudá-las).
Assim, a princípio, cada causa digna — desde uma pesquisa sobre o câncer, passando pela justiça climática, santuários de animais e até a prevenção de doenças facilmente tratáveis, porém impronunciáveis em locais que provavelmente nunca visitaremos — deve ser uma carta na mesa… exceto se também pensarmos que seja melhor ajudar mais pessoas e entendermos que não temos recursos suficientes para ajudar todo o mundo. Com isso, primeiro devemos focar nas causas com as quais podemos ajudar o maior número de pessoas com nosso tempo e dinheiro limitados, não apenas aquelas pessoas sobre as quais calhamos de já termos ouvido falar.
Pode ser muito difícil tentar ser neutro com relação a causas. A maioria das pessoas já passou por uma experiência própria de perda: perdi dois parentes para a leucemia; assisti à doença consumir seus corpos e aos analgésicos embaçar suas mentes, e vivi o luto pela morte deles. É bastante aceitável que isso nos faça querer doar para organizações que estejam tentando resolver aquele problema específico ou então buscar a cura para a doença que nos roubou nossos entes queridos. Somos criaturas empáticas, e não queremos que outras pessoas passem pelo sofrimento que tivemos, nem que seus entes queridos vivam o mesmo luto.
Mas, se nos preocupamos em tratar as pessoas com igualdade, também deveríamos tentar tratar suas experiências da mesma forma. Não existe um bom motivo pelo qual eu deva preferir evitar a morte, incapacitação e sofrimento causados por uma doença específica (como a leucemia) mais do que deveria me preocupar com o sofrimento provocado por malária, tuberculose, acidentes de trânsito ou qualquer outra coisa. O que interessa é que vidas são abreviadas, pais são privados do convívio com seus filhos, pessoas estão vivendo com dor. Demonstrar preocupação igual significa tratar toda morte ou sofrimento como uma tragédia, não apenas aquela provocada por doenças específicas com as quais convivemos, por um acaso cruel do destino que as colocou no nosso campo de visão.
Tomar essas decisões é muito, mas muito difícil. Entretanto, existe um conjunto de ferramentas de raciocínio que podemos utilizar para nos ajudar. Essa forma de pensar se chama altruísmo eficaz. É quase o mesmo que o altruísmo comum (pois enfatiza a importância de ajudar outras pessoas); a palavra “eficaz” significa apenas tentar pensar claramente sobre como nossas ações podem ajudar o maior número de pessoas, ou fazer um bem maior.
Vejo o altruísmo eficaz como um meio de poder viver melhor com os valores que já temos.
Esse modo de pensar se aplica a qualquer meio pelo qual possamos querer fazer o bem, seja uma manifestação em favor de uma mudança política, a escolha sobre onde doar o dinheiro ou como provocar um grande impacto com nossas profissões.
Num mundo com tantas causas dignas nas quais podemos trabalhar, isso nos mostra uma saída para a paralisia decisória, sistematicamente procurando maneiras para fazer o maior bem com o tempo e recursos limitados.
Isso nos leva a encarar algumas decisões difíceis. Mas lembre-se, de qualquer forma estamos fazendo escolhas quer pensemos nelas, quer não. Mesmo que seja difícil não doar para alguma causa que parece realmente importante — seja por motivos pessoais, seja porque você foi convencido por um discurso de marketing para caridade —, lembre-se de que você está sempre abrindo mão de outras causas dignas.
Veja um exemplo disso. Um cidadão comum no Reino Unido doa cerca de £ 6.700 (US$ 9.600)3 ao longo da sua vida profissional. Com esse dinheiro poderíamos financiar a distribuição de cerca de 1.900 mosquiteiros4 (e evitar que umas 200 crianças ficassem muito, muito doentes com a malária5, e provavelmente salvar pelo menos duas ou três vidas). Entretanto, a maioria das doações voluntárias são destinadas a instituições de caridade da área médica no país.6 O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido entende que investir £ 25.000 para salvar um ano de vida saudável seja um bom valor.7 É altamente improvável que uma instituição de caridade no país alcance esse valor, então o impacto do doador comum será muitas, muitas vezes menor do que poderia ter sido. Lembre-se, só porque não pensamos sobre essas escolhas, isso não significa que elas não estejam lá.
Então, por favor, pense com cuidado sobre essas ideias — a importância do altruísmo, da igualdade e de fazer o máximo que pudermos com nossos escassos recursos — e veja se elas fazem sentido para você.
Se fizerem, da próxima vez que pensar em transformar o mundo em um lugar melhor, lembre-se desses valores aliando eficácia e altruísmo.
Alguns recursos para saber mais sobre o altruísmo eficaz:
- O que é o Altruísmo Eficaz?
- Este breve resumo sobre o altruísmo eficaz
- O verbete da Wikipédia sobre altruísmo eficaz
- Doing good better de Will MacAskill
- O Manual do Altruísmo Eficaz
Algumas atitudes que você pode tomar que consideramos realmente eficazes
- Doe para uma instituição de caridade recomendada com base no seu impacto e eficácia — verifique nossas Principais Instituições de Caridade e recomendações para Fazer Boas Doações. (N.R: é possível doar no Brasil a algumas dessas ONGs por meio da doebem).
- Se você quiser apoiar instituições que investem no bem-estar de animais não humanos com eficácia, veja estes Avaliadores de Caridade para Animais.
- Comprometa-se com manter as doações ao longo da sua vida — 9.614 pessoas (até o momento) se comprometeram em doar 10% da sua renda por toda a vida para as instituições de caridade eficazes, e 764 se comprometeram em doar 1% ou mais das suas rendas por um período específico.
- Escolha uma profissão que realmente tenha um alto impacto lendo os conselhos de carreira do 80.000 Horas.
- Inicie um grupo de discussão na sua vizinhança ou universidade e busque outras pessoas interessadas em de fato fazer a diferença.
Notas:
1. O número que coloquei na calculadora (32.140 dólares americanos) é a renda pessoal média de alguém com 25 anos ou mais nos EUA, mas é claro que você deverá substituí-la por sua própria renda, país e detalhes da família. Alguns outros valores genéricos que você pode usar para comparação são 24.062 dólares americanos (renda pessoal média para pessoas nos EUA com mais de 18 anos), 21.100 libras esterlinas (renda pessoal média do sexto decil no Reino Unido) ou 59.900 dólares australianos (salário médio de trabalhadores em tempo integral na Austrália).
2. Usei a palavra “pessoas” neste artigo por conveniência, mas é claro que, se você estiver preocupado com o bem-estar de animais não humanos, poderá ler isso como “animais” ou “seres sencientes”, etc.; todos os argumentos ainda se aplicam.
3. Charities Aid Foundation, UK Giving 2014, p12 <https://www.cafonline.org/docs/default-source/about-us-publications/caf-ukgiving2014>. Calculado multiplicando o valor típico doado mensalmente (£ 14) por 12 (para obter doações anuais) e depois por 40 (número de anos em que alguém normalmente está ativo na força de trabalho).
4. Usando o valor de cerca de US$ 5 por mosquiteiro distribuído pela Against Malaria Foundation, que é correto para a maioria dos lugares em que a organização opera. Em alguns países (como a RDC) há um maior custo em se operar, mas mesmo com um valor mais alto de US$ 7,50 por mosquiteiro, você ainda pode distribuir 1.000 mosquiteiros.
5. Branco, MT. “Custos e custo-efetividade das intervenções de controle da malária …” 2011. <https://malariajournal.biomedcentral.com/articles/10.1186/1475-2875-10-337>.
6. Charities Aid Foundation, UK Giving 2014, p14 <https://www.cafonline.org/docs/default-source/about-us-publications/caf-ukgiving2014>.
7. <https://www.nice.org.uk/news/blog/carrying-nice-over-the-threshold>.
Tradução: José Oliveira
Revisão: Fernando Moreno e Luan Marques
Publicado em 22 de março de 2016 originalmente aqui.