O que fazer para nunca mais acontecer? Ditaduras e pandemias

Em momentos de crescente populismo antidemocrático, devemos lembrar que calar aqueles que podem “causar problemas” é prática corrente de ditaduras e isso não favorece em nada o controle de pandemias.

Nota: Primeiro desejamos afastar qualquer margem para uma visão racista ou preconceituosa das críticas que faremos à China ao longo do texto. Entendemos que se o coronavírus fosse um problema meramente do povo ou da cultura “asiática” ou “chinesa” teríamos pandemias similares aparecendo em outros países que compartilham destas raízes culturais. O problema na verdade é político e quem deve ser responsabilizado é o governo chinês, não seu povo.

Matando os mensageiros

O primeiro problema óbvio aqui é o fato de, pela China ser uma ditadura, tentaram esconder o problema e calar quem tentou emitir os alertas. Tomemos por exemplo a história de Li Wenliang, médico chinês e que faleceu em decorrência do COVID-19.

“Em 30 de dezembro, o médico enviou uma mensagem para colegas alertando sobre um possível surto de doença respiratória com sintomas semelhantes aos da SARS Síndrome Respiratória Aguda Grave (…) O doutor Li Wenliang recomendou aos companheiros de trabalho que usassem equipamentos de segurança para evitar a infecção. O médico fez o alerta após perceber que, naquele fim de ano, o hospital no qual trabalhava já tinha recebido sete casos de infecção com sintomas graves”.

“Ele é apontado como um dos primeiros a identificar a existência do surto do novo coronavírus e alertar as autoridades. O médico de 34 anos foi um dos oito médicos que a polícia chinesa investigou sob acusação de “espalhar boatos” relacionados ao surto(…) Junto com os colegas, ele foi convocado pela polícia e foi forçado a assinar uma carta na qual prometiam não divulgar informações sobre a doença”. Leia mais aqui.

Blogueiros e jornalistas chineses também sofreram e continuam a sofrer pressão para não reportarem a crise e alguns simplesmente “desapareceram”.

Índice de Democracia, conforme Economist Intelligence Unit. Fonte: Wikipedia.

A suposta eficiência autoritária

A atual situação tem sido vista por muitos como uma espécie de teste de eficiência dos diferentes governos. Em momentos críticos parece sedutora a oposição entre democracia e eficiência. Dadas as necessidades de cooperação e ação coordenada alguns equivocadamente podem enxergar (ou oportunisticamente levar outros a enxergarem) que o Estado autoritário é mais eficaz no trato de epidemias que Estados democráticos.

Contudo, o contexto atual demonstra que atuação bem coordenada não depende de uma concentração exacerbada de poder no Estado ou em grupos específicos. Depende sim de atuação de instituições eficientes, presentes nos Estados democráticos de alguns dos países de maior sucesso na luta contra o COVID-19, tal como a Coréia do Sul, Taiwan e Nova Zelândia.

Ademais, pandemias são problemas globais, que diminuem a distância entre os vizinhos. Ditaduras não facilitam nem o trato interno com a pandemia nem o esforço internacional comum que se faz necessário.

A transparência é um fator decisivo para o desenvolvimento de prontidão geral através da disseminação de informação. A falta de transparência da China efetivamente comprometeu a eficiência e dificultou a ação internacional conjunta no início da pandemia.

Transparência e Eficiência

Transparência não trata apenas de um compromisso moral de governantes perante governados. Ela também permite uma coordenação mais eficaz ao:

  • Reduzir a incerteza com relação a veracidade de informações e qualidade de fontes;
  • Reduzir a demora na reação;
  • Uma avaliação honesta da atuação governamental e da gravidade da crise como um todo;
  • Também é um modo de tornar mais facilmente aceitável para o governado a necessidade de cooperação e respeito às regras, fazendo-o se sentir corresponsável pelos resultados.

Pode parecer algo óbvio, mas preferimos explicitar: manter uma população segura não é o mesmo que mantê-la desinformada (pelo contrário!). Limitar as informações disponíveis ao outro significa limitar sua capacidade de atuação. A única eficiência aí possível é a do controle do outro.

Martin Gurri tem comentado sobre o aumento na expressão de insatisfação popular no mundo. Essa insatisfação seria hoje mais expressa que no passado por uma combinação de desenvolvimento de tecnologias da informação, com um público que está se afogando em informações (nem sempre confiáveis) e com tendências niilistas. Niilismo desenvolvido por expectativas altas, alimentadas por promessas nunca totalmente concluídas pelas elites políticas, intelectuais e econômicas.

Tendo em vista o maior dinamismo para se organizar coletivamente derivado dos avanços de tecnologias da informação, e a maior facilidade que insatisfações são expressas, cabe ao governo que deseja promover coordenação de ações em sua população prezar pela transparência, e construir a confiança do público. Como veremos a frente nos exemplos da Coréia do Sul e Taiwan este é um elemento decisivo na eficácia do combate a pandemias.

Apesar de haver um pequeno exagero na análise de Gurri sobre o grau de niilismo generalizado, não se pode negar que hoje para uma causa e/ou grupo adquirirem visibilidade é muito mais fácil que no passado. Hoje a necessidade de representantes, de um “porta-voz”, de um grupo em liderança que leve a causa ou a condição de um grupo a uma esfera de visibilidade maior (seja estatal, midiática, cultural ou intelectual) é consideravelmente menor que no passado.

Manifestação de dissenção é algo que hoje será mais esperado, suprimi-la é possível, mas certamente irá dificultar uma coordenação eficiente, já que retira a agência do cidadão, o torna “massa”, e como veremos a frente isto diminui a eficiência coletiva. Ditaduras criam estímulos perversos favoráveis a retenção de informação, inclusive contra o próprio Estado. Por medo de sofrer represálias, o governo local de Wuhan dificultou ao governo central da China tomar conhecimento da, na época, ainda epidemia. Por sua vez, a falta de transparência pelo governo central chinês criou dificuldades para uma reação global inicial.

Um governo que prefere jogar cortinas de fumaça a aceitar que (como qualquer instituição) devem prestar contas não é capaz e otimizar sua eficiência em liderança e coordenação. A autoridade que silencia forma um desenho institucional inferior a um mais transparente, tal como encontrado nas democracias.

Outro fato que relaciona eficiência e transparência é comentado neste artigo, escrito por colaboradores do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Os autores demonstram que em situações emergenciais, tal como no momento atual, a tendência que segue a diminuição da transparência é a de aumento do desvio de verbas. A pressa em disponibilizar recursos muitas vezes faz com que decisores políticos ignorem a transparência. Justamente no momento em que esses recursos são mais necessários, mais são desviados. Um governo transparente é mais confiável na alocação de recursos, enquanto ditaduras costumam ser menos confiáveis em relação a potenciais desvios.

Eficácia do poder descentralizado

Uma organização social que se desenvolva para otimizar a eficácia de decisões coletivas deve prezar pelo poder impessoal e descentralizado. Decisões coletivas derivadas de deliberação tendem a ser mais eficazes que decisões derivadas de hierarquia autoritária rígida, na qual o cargo se sobrepõe ao questionamento e a deliberação.

Não é raro nos depararmos com a ideia de que a deliberação democrática torna a prática de governar onerosa, pesada, e compromete eficiência ao tornar a tomada de decisão lenta, e cheia de potenciais entraves. A deliberação em organizações democráticas pode ser vista como um “sacrifício” a ser feito em favor da imparcialidade e isonomia. Algo como fazer uma troca, se perde um pouco em eficiência e se ganha em justiça.

Mas assim como a transparência é mais que um valor, mas um requisito para eficácia, do mesmo modo o é em relação a deliberação, e a descentralização do poder, estas não são só valores que pairam sobre as sociedades livres, mas são também necessárias para tornar essas sociedades mais eficazes.

Um exemplo da relativa eficácia da descentralização está presente mesmo na China. É bem reconhecido que o sucesso chinês na redução da pobreza foi proporcionado somente após sua abertura econômica no final dos anos 70. De fato, a redução da pobreza não depende exclusivamente de crescimento econômico, mas fato é que a China é dirigida por um Estado autoritário fazem décadas, mas só após sua abertura que se deu seu tremendo progresso na redução contra a pobreza.

Já um exemplo da eficiência da deliberação vemos através deste vídeo (com legendas em português disponíveis), aonde o neurocientista Mariano Sigman demonstra por meio de experimentos com amplas plateias como grupos conseguem tomar boas decisões, ou seja, decisões acertadas, precisas, e mesmo decisões livres de contradições (algo paralelo a ideia de “sabedoria das multidões” de James Surowiecki).

Os experimentos parecem apontar para a necessidade de deliberação em pequenos grupos dentro do grupo maior para se atingir boas decisões. Soma-se a isto a existência de boa diversidade de opiniões entre grupos em deliberação e temos um bom potencial para que boas decisões coletivas sejam tomadas espontaneamente, e posições mais radicais sejam naturalmente diluídas.

Pessoas que assumem posições extremadas, geralmente são dotadas de grande confiança e baixa reflexividade acerca de seus posicionamentos. O que por si poderia deter maior potencial de convencimento, mas não é o que estes experimentos demonstram: quando há deliberação de fato, e posturas mais radicais que transparecem confiança são confrontadas com uma maioria mais moderada e não dogmatizada o que prevalece é uma noção de que para se chegar a uma decisão acurada é necessário maior questionamento, deliberação e investigação.

Os insights de Sigman a partir destes primeiros experimentos parecem estar de acordo tanto com posições comuns dentro da filosofia política como a de Hannah Arendt, que entende em seu famoso conceito sobre a “banalidade do mal” que a ação nociva que uma sociedade pode causar contra os indivíduos pode ser derivada de alienação do sujeito que em nome de uma autoridade executa essa ação, e ao executa-la aliena-se da responsabilidade e julgamento da ação, delegando-os a autoridade ou mesmo a um objetivo, ou “propósito” o qual ele pode ou não se relacionar. Também está de acordo com o encontrado dentro da psicologia social como no caso de Milgram, que com seus experimentos acerca da obediência a figuras de autoridade, verifica os sujeitos destes experimentos abdicando de responsabilidade ao supostamente infligir dor a outra pessoa a mando de uma figura de autoridade.

Tanto os exemplos de Arendt, como de Milgram (marcados pelos horrores da Segunda Guerra) tratavam de como a sociedade toma más decisões, de como o sujeito representando uma autoridade se exime de responsabilidade e se torna parte de uma má decisão coletiva. A rigidez da hierarquia autoritária facilita estas más decisões, e justifica tanto os horrores cometidos, quanto a passividade de quem é alheio ás decisões tomadas.

A ideia aqui é simples, a falta de deliberação derivada de concentração de poder limita a responsabilidade moral de ações coletivas (atos bárbaros são mais facilmente cometidos em nome de uma autoridade rígida e inquestionável que retira a agência do sujeito que comete estes atos), e compromete a eficiência em decisões coletivas. Decisões coletivas derivadas de deliberação tendem a serem mais precisas, e sobretudo tendem a anular viés pessoal. Em um cenário onde cargos pesam mais que processo de deliberações, o oposto tende a acontecer, vieses são reforçados e nunca questionados.

Além disto, como mostramos neste artigo, diversidade cognitiva é um elemento chave na tomada de decisões coletivas. Não é questão apenas de que “quanto mais diverso melhor”. De fato, a partir de um ponto o aumento de diversidade começa a se tornar ineficiente e prejudicial. Mas mesmo assim, o artigo a que nos referimos deixa claro que heterogeneidade cognitiva auxilia nas tomadas de decisões mais precisas e benéficas. Homogeneidades arbitrárias não são mais eficazes, e na verdade enfraquecem “filtros” de más decisões.

Eficácia da liberdade

Que tipo de ação coletiva coordenada é mais eficaz? A pautada pela coerção? Ou a pautada pela cooperação? Uma ação coordenada só deve apelar para a coerção no momento em que a cooperação falha.

Não há como negar que fora impressionante a demonstração de poder estatal da China em sua reação a pandemia a partir de Janeiro. Desde o lockdown de 60 milhões de pessoas em Hubei, a medidas restritivas estendidas a aproximadamente 700 milhões de pessoas. Isto sem falar sobre a construção agora icônica de dois hospitais de mil leitos em questão de dias. Parte da eficiência nessas ações específicas se deve pelo tremendo poder concentrado dentro da China e pela força de seu Estado.

Não negamos que estes procedimentos tiveram sim um impacto positivo contra o COVID-19 na China. Mas focar nesses atos pode nos fazer perder de vista tanto seus erros, detalhados acima, como outros procedimentos tomados por outros países que tiveram um impacto positivo ainda maior. E um dos maiores representantes destes procedimentos certamente é a Coréia do Sul. É o que podemos ver neste artigo, que demonstra como o caso sul coreano confirma que sim, a transparência é superior a coerção.

A Coréia do Sul tem se mostrado como um dos casos de maior sucesso na luta contra o coronavírus, e sua abordagem difere da abordagem do Estado chinês.

Alguns exemplos de medidas sul coreanas:

  • Entrevistas diárias (duas vezes ao dia) que o Poder Executivo dá a imprensa para informar devidamente a população, tentando ao máximo não privá-la por muito tempo de novas informações.
  • Testes extensos, combinados com o igualmente extenso “rastreamento de casos e contatos”. Também criaram as “zonas de cuidado especial” para onde se direciona mais recursos e pessoal.
  • Uso inteligente da tecnologia para conectar ao invés de controlar. Com aplicativos de auto diagnose, entre outros. Destaque para o aplicativo que conecta pessoas que desconfiem terem interagido com infectados com uma equipe especializada. Deste modo, tais pessoas auxiliam no monitoramento da epidemia, além de informar com melhor precisão indivíduos potencialmente infectados.
  • Trabalho intenso de conscientização em campanhas de distanciamento social. Existem limites para a atuação do Estado na sociedade civil (por mais poderoso que o Estado seja), fazer com que a população esteja bem informada, com um mínimo de dúvidas, e consciente de seu impacto ajuda numa atuação bem coordenada, que depende menos de coerção, e mais de informação para ser mais eficiente.

A partir do que podemos observar, a diferença aqui entre a eficiência do controle social e a eficiência da cooperação reside numa administração da informação.

Por mais que haja certa eficiência na atuação de um Estado autoritário, seu trato com a informação o torna potencialmente ineficaz em comparação com a disseminação de informação em nações democráticasEste artigo, por exemplo, destaca que a falha chinesa foi sobretudo de circulação de informação, não só externa, em relação a outros países, mas também interna.

Informações não chegaram a autoridades centrais, e autoridades locais se mantinham receosas em disseminar informações, já que eram desincentivadas a levar qualquer notícia negativa. Além disso houve um atraso entre a epidemia e a quarentena, estima-se que por volta de 5 milhões de pessoas já haviam saído de Wuhan quando a quarentena foi de fato efetivada.

E, além de uma administração de informações falha, boa parte daquilo em que a ditadura chinesa se mostrou eficiente na realidade não teve um impacto tão relevante. Foi o caso das proibições de viagens em Wuhan em Janeiro: este estudo demonstra que no final de Janeiro, quando as proibições foram efetivadas, inúmeras cidades chinesas já tinham recebidos viajantes de Wuhan infectados. Além disto, essa medida em específico só adiou o avanço da epidemia em pouco tempo, de três a cinco dias.

A pura coerção não se mostra tão eficaz quanto a transparência e a informação, isto nos parece claro na maior parte das situações, inclusive em crises pandêmicas. Porém, precisamos lembrar que nem sempre existe a opção entre coerção e cooperação, há momentos em que não há escolha, e a coerção é a única alternativa para que haja segurança e estabilidade. Mas, quando houver a necessidade de optar entre cooperação e coerção, quase sempre a cooperação será a opção mais eficaz.

Qual a causa comum da “eficácia oriental”?

Demonstramos que o modelo do governo chinês, apesar de mostrar certa eficácia, não se mostrou como o mais eficiente para tratar a atual pandemia, em grande parte (ou mesmo a maior parte) devido a seu caráter autoritário.

Contudo, vemos que os países mais bem sucedidos estão quase todos na mesma região do globo: Coréia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong tem recebido frequentemente elogios no trato com o COVID-19. O que os une neste grupo de nações bem sucedidas? Qual a causa comum de seu sucesso?

Vamos brevemente mencionar algumas das medidas que alguns destes países adotaram, e assim poderemos talvez perceber um padrão. Já falamos um pouco sobre o caso sul coreano, tão próximo ao epicentro da pandemia, e ainda assim tão bem sucedido, então certamente precisamos falar sobre Taiwan, igualmente próximo e bem sucedido.

Talvez o mais importante no caso de Taiwan (e de outros países bem sucedidos) é o fato de terem passado pela epidemia de SARS em 2003, fato que gerou uma prontidão nestes países que não se via em países ocidentais.

As medidas adotadas por Taiwan na verdade se assemelham muito as tomadas pela Coréia do Sul: transparência, um bom trato e disseminação de informações, uso inteligente de tecnologia, e análise cuidadosa de dados. Tudo isso possibilitou informar adequadamente a população e garantir sua confiança. Destacamos a seguir as medidas mais concretas:

  • Esta mesma prontidão mencionada acima se concretizou na criação do Centro de Comando Nacional de Saúde em 2004 após a crise do SARS. Este sendo um centro de resposta contra surtos e epidemias, atuando conectando, e facilitando comunicação entre autoridades nacionais, regionais e locais. Em outras palavras, não só um investimento em prontidão, mas em comunicação (ambos frequentemente andando juntos). Ainda em Janeiro o governo taiwanês já coordenava seus ministérios para enfrentar a crise vindoura.
  • Agilidade ao traçar perfis entre a população de maior probabilidade de infecção através da integração dos dados de seus sistema de saúde com dados de imigração e alfândega. Assim cruzando histórico de viagens com sintomas apresentados recentemente, e assim gerando perfis que iam de baixo risco, assim sofrendo menores restrições, a alto risco, que devem passar por quarentena.
  • Intenso rastreamento, através deste banco de dados. E mesmo indo atrás de cidadãos que apresentavam sintomas de dificuldades severas de respiração, porém testaram negativo para influenza, para então testa-los para COVID-19.
  • Comunicação aberta com sua população, com instruções e entrevistas diárias de seu Ministro da Saúde, e de seu Vice Presidente, um conhecido epidemiologista. Através da mídia (incluindo proclamações do Vice via redes sociais) o governo mantém a população bem informada, e detalha informações necessárias para prevenção e cuidados quando infectados. A população está ciente dos passos tomados pelo governo, e é alimentada com informações continuamente.
  • Posição ativa na alocação de recursos, como a fixação de preços de máscaras, e uso de fundos governamentais e pessoal militar pra aumentar a produção de máscaras. Rendendo um estoque de 44 milhões de máscaras cirúrgicas, 1,9 milhão de máscaras N95, e 1100 salas de isolamento de pressão negativa.
  • Disponibilização de comida para infectados em quarentena assim como frequentes exames de saúde.

Já percebemos aqui um padrão se formando, a transparência e o trânsito livre de informações se opondo ao ocultamento e o controle intenso e extenso da população. Mas alguém pode sugerir que há mais aí do que uma “simples” disposição institucional.

Poderiam também dizer que em alguns países haveria maior disposição da população para atuar em colaboração com o Estado que outros, países que aceitariam “intromissão estatal” com maior familiaridade. Poderiam também dizer que em alguns países há naturalmente maior confiança no Estado que outros mais caracterizados por paixões polarizadoras na política. Poderiam até mesmo afirmar que há uma separação aqui entre o Ocidente e o Oriente, uma separação cultural, que pode ter se iniciado mesmo mais de 2.000 anos atrás com Confúcio lá e Sócrates, Platão e Aristóteles aqui.

Haveria então um componente cultural necessário para se chegar a este mesmo nível de eficácia? A oposição que interessaria então seria menos entre o autoritarismo chinês e a democracia sul coreana e taiwanesa, e mais a oposição entre o fragmentado Ocidente e o Oriente culturalmente mais coeso?

Bem, nós não concordamos inteiramente com esta visão: vemos como evento mais relevante para a diferença no tratamento da atual pandemia o surto de SARS em 2003, e menos os ensinos de Confúcio mais de 2000 anos atrás. Estamos mais próximos da posição deste artigo (com versão em outline para não assinantes). Sim, há certa ingenuidade, e talvez até certo racismo em identificar a eficácia oriental num traço cultural que determine que orientais sejam subservientes, que aceitem mais facilmente o poder estatal, que tenham populações homogêneas, e que não sejam tão afeiçoados a liberdade quanto ocidentais.

O problema de um “Orientalismo” neste caso começa quando autoridades e público geral no Ocidente acreditavam que o coronavírus se manteria restrito ao Oriente. Primeiro seria uma doença oriental que nunca nos afetaria, e então se tornou um problema só solucionável pela perspectiva oriental. Fato é que nos países orientais de maior sucesso não foi a cultura, mas a experiência do SARS, 17 anos atrás, e instituições eficazes que fizeram a diferença. Enquanto por cá, a pandemia parecia uma realidade distante a todos.

Apesar de haverem sim diferenças culturais, os problemas enfrentados por democracias orientais não estão tão distantes de problemas enfrentados pelas democracias aqui. Para exemplificar, segue trecho traduzido do artigo referido acima:

“A Coréia do Sul, especificamente, não é a sociedade de espírito comunitário do tipo que os americanos gostam de imaginar. Em um estudo de 2018 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a pontuação da Coréia do Sul em ‘confiança média nos outros’ foi de apenas 0,32 em 2014. O país foi superado pelas chamadas sociedades ocidentais individualistas, como Noruega (0,68), Suécia (0,65), Holanda (0,54), Canadá (0,44) e até Estados Unidos (0,41).

A tendência contemporânea de uma política polarizada e acrimoniosa sobrecarregada pela Internet não pulou a Coréia do Sul. Na verdade, a Coréia do Sul estava na vanguarda dessa tendência, já que o país adotou a Internet de alta velocidade em larga escala antes de praticamente qualquer país do mundo. Antes que os EUA soubessem o que era o YouTube, a Coréia do Sul já estava lidando com as implicações negativas de uma sociedade online, com campanhas contra cyberbullying e a desinformação. Anos antes da inteligência russa intervir na eleição presidencial dos EUA em 2016, e antes do referendo do Brexit, os presidentes conservadores da Coréia do Sul estavam usando suas próprias agências de espionagem para postar milhões de tweets falsos nas eleições.”

Não estamos afirmando que hábitos numa população, uma “cultura” não tenham nenhum impacto institucional ou econômico. Só não enxergamos evidências em qualquer forma de determinismo, biológico ou, no caso cultural. Uma cultura não determina absolutamente o ambiente institucional, este ambiente pode inclusive influenciar na cultura, mas não há uma continuidade plena entre estes. O conhecimento técnico é algo completamente transferível e, dado que instituições modernas se desenvolvem (ou deveriam se desenvolver) em volta de conhecimento técnico, não há motivo para crer nesse determinismo.

Max Weber, um dos pais da sociologia, entendia esta “descontinuidade” em sua tipologia das ações sociais. Nos hábitos, na cultura, há a ação irracional tradicional, sem uma finalidade dada, fundamentada na subjetividade da tradição. Pode até se argumentar que a ação racional referente a valores também cabe aqui.

Enquanto que em instituições modernas deve prevalecer a ação racional referente a fins, onde há uma finalidade objetiva, e sua fundamentação se embasa na eficácia técnica em se chegar a este fim. Valores e hábitos podem ser mais difíceis de se disseminarem de um povo ao outro, mas o conhecimento técnico não, ele é facilmente assimilável em comparação. Estes dois campos podem se encontrar numa situação social de diferentes modos, um conjunto de técnicas assim, não pertence a uma “origem cultural”, e a uma disposição de um povo a entende-lo e aplicá-lo.

Mas ainda pode se contra-argumentar usando do próprio Weber, que haveria afirmado que o capitalismo teria sido condicionado pelo cristianismo protestante. O que podemos interpretar do trabalho de Weber é menos um determinismo cultural-religioso sobre o capitalismo, e mais uma relação de afinidade entre um aspecto moral e outro “prático”, afinidade esta que aliás teve um fim como o próprio Weber entende.

Pode-se insistir em afirmar que os procedimentos orientais não poderiam entrar em afinidade com a cultura ocidental (especialmente em nosso país), já que culturas são mais difíceis de se adaptar que instituições. Assim, o mais provável seriam instituições se adaptarem a uma cultura incompatível, e por essa adaptação serem deturpadas em relação a seus valores originais.

Hábitos e disposições na verdade não surgem em “pacotes”, o senso de perenidade que certos conjuntos de hábitos podem passar, mais comumente do que se imagina é na verdade arbitrário. Uma homogeneidade cultural costuma ser ilusória, e pode até servir função político-simbólica a quem se beneficie desta ideia.

Disposições se alteram, e entram em afinidade com outras construções sociais. Tanto quanto a instituição se adapta ao hábito, o hábito se adapta a instituição. Certa incompatibilidade cultural só é obstáculo intransponível para instituições ineficientes. Há um equívoco comum em crer que certas práticas, que procedimentos técnicos, que um melhoramento institucional estão sempre reféns de culturas, as quais deveriam ser profundamente alteradas por completo para possibilitar alteração institucional.

A diferença entre Taiwan ou Coréia do Sul para com a Itália, Espanha, ou mesmo nós não é uma disposição cultural que diminui a distância entre sociedade civil e Estado, permitindo um controle estatal maior. A diferença está em maior eficiência institucional. Do mesmo modo como mostramos que a diferença entre a China e a Coréia do Sul e Taiwan reside não só na eficácia institucional, mas na qualidade democrática.

Do mesmo modo que eficiência institucional não se explica por disposição inata, por qualidade cultural (apesar de haver certa influência sim), ineficiência institucional não pode ser resumida a uma qualidade cultural. Um melhoramento institucional é possível em qualquer cultura, sem depender de uma revolução cultural antes. E mais uma vez, isso é facilmente observado na maior facilidade que o conhecimento técnico é transferido, independente da origem cultural. Passados obstáculos comunicativos, indivíduos em qualquer “cultura” podem compreender e aplicar melhoramentos técnicos.

Ainda do artigo mencionado acima:

“É absurdo sugerir, por exemplo, que americanos e europeus nunca se submeteriam ao tipo de rastreamento de contato de alta tecnologia que a Coréia do Sul implementou, quando milhões deles voluntariamente entregam seus dados pessoais a empresas como Google e Facebook todos os dias. (De fato, o governo dos EUA já está usando dados de localização de anúncios para celular para estudar a propagação do coronavírus). Ninguém deveria ser tão tonto a ponto de afirmar que a noção ocidental de liberdade nos levaria a não fazer nada contra um surto viral, o qual se estima que possa causar centenas de milhares de mortes, ou que um bloqueio nacional é de alguma forma mais consistente com a noção de liberdade do que uma quarentena adequada de pacientes individuais que permitem que o resto da sociedade continue seu funcionamento.”

Creditar o sucesso das democracias orientais a um comunitarismo e subserviência inatos nos parece não só uma simplificação tacanha, um equívoco na interpretação do verdadeiro impacto da cultura e de hábitos na sociedade, como nos parece mais um modo de retirar o crédito da democracia e de instituições eficientes. Em outras palavras é outro modo de se enevoar a questão, atrelando a ela oposições ideológicas, e perdendo uma perspectiva prática de solução do problema.

A questão se resume então ao elogio do comunitarismo, ou a ameaça do comunitarismo. Ainda, ao elogio do Estado fortalecido, ou a ameaça do Estado fortalecido, o elogio ao Oriente, ou a ameaça do Oriente. Existe um face humana, social, política da pandemia, mas não podemos deixar que nossa tendência a antropomorfizar a realidade nos cegue a um problema: uma crise que existe a despeito de nossas divisões e identidades.

Conclusão

Onde queremos chegar com tudo isto é que a causa do sucesso oriental não é um poder centralizado, nem um traço cultural que compele cidadãos a obedecerem a seus governos como ovelhas. É a qualidade institucional que merece os créditos aqui, o uso inteligente da tecnologia da informação, fluxo livre de informações, a transparência dos governos que estimula confiança, a eficiência institucional que, inclusive, aumenta ainda mais a confiança.

Nosso alerta aqui é para com os efeitos da pandemia em nosso imaginário político. A mensagem presente na atuação questionável da China, e no sucesso de democracias orientais é simples, instituições eficientes em sociedades livres, essa é a combinação vencedora que não parece estar tão presente na mídia e entre a opinião geral.

Costumamos enxergar a realidade em oposições simples, nem sempre com nuances, e facilmente esse modo de enxergar a realidade é capturado por um viés ideológico. Assim, o desafio político-institucional da pandemia se torna um teste, uma disputa entre EUA e China, entre democracias liberais e Estados iliberais, entre Ocidente e Oriente etc. Mas averdade costuma não estar nem num ponto, nem no outro, e nem num meio termo, mas fora dessa concepções, e no caso, o desafio é a todos nós.

Mas mais que um desafio aqui também temos um incentivo para melhorarmos a qualidade de nossas instituições e estimular cada vez maior transparência e fluxo livre de informações diante de um novo mundo e de novos desafios. Instituições eficientes, que não se percam em autocracias e corporativismos, e que assim possam despertar confiança mais facilmente, aliadas a livre circulação de informação, e certa accountability de seus chefes, tudo isso é crucial para lidarmos com pandemias como esta no futuro.

A questão que colocamos ao longo do texto não é de questionamento do poder estatal em si, mas de sua concentração sem accountability. A própria necessidade de instituições eficientes demanda a colaboração estatal. O próprio caso do Brasil é um exemplo de como instituições não devem lidar com isto no futuro. Não há comunicação adequada ou de qualidade com a população, há desencontro de informações entre autoridades, não há atuação coordenada entre diferentes níveis da autoridade estatal, e mesmo o trato e disseminação de informações se encontra profundamente comprometido, como mostramos aqui.

Pandemias nos unem a todos como um problema comum que se sobrepõe a inúmeras pautas, incluindo divergências internas e externas em diferentes nações. Como tal exige cooperação em diversos níveis, um ambiente ditatorial de concentração de poder pode parecer um ambiente próspero para levar a esta cooperação, entretanto não é o que os exemplos demostraram. Ambientes ditatoriais favorecem particularismo e enviesamento, o que não impossibilita sua eficácia, mas certamente não a otimiza.

Devemos manter cautela e cuidado, pois mesmo com ameaças graves e comuns a todos como esta, sempre haverão aqueles que irão tentar submete-las a interesse ideológico particular. Haverão inúmeros oportunistas que tentarão se aproveitar da crise e da nossa (re)descoberta da necessidade de cooperação para venderem a si e suas ideias autoritárias como verdadeiras opções humanitárias, e caminhos reais para a superação, afinal é nas crises que mais facilmente interesses particulares se disfarçam de interesse comum, e são nas crises que mais facilmente se abdica da liberdade motivados pelo medo.

O que deve ser feito?

Pode parecer que há pouco a ser feito aqui mas talvez seja esse momento da comunidade global reverter sua atual condescendência com a ditadura chinesa. Sua importância econômica não lhe dá “passe livre” para não se responsabilizar pelos seus erros. Ditaduras em geral devem ser mais pressionadas para serem mais transparentes, respeitarem a liberdade de expressão e, ao fim, se democratizarem.

A sociedade civil deve pressionar a comunidade internacional pela condenação veemente ao desrespeito aos direitos humanos e liberdade de imprensa, assim como o apoio aos movimentos de democracia e dissidência em países que são ditaduras.

Próximas leituras

Além de tudo que foi dito acima, para entender o porquê dessas doenças estarem surgindo na China, há um contexto muito específico relacionado ao consumo de animais selvagens e exóticos. Deste modo, sugerimos que não deixe de também ler a proposta: Banir o comércio de animais selvagens e os “mercados molhados

Sugerimos também que leia a outra proposta deste guia, para uma melhor Comunicação entre especialistas, jornalistas e populaçãoEm um momento que temos visto um profundo desprezo pela palavra dos especialistas por lideranças populistas, o antídoto para a desinformação reside na maior transparência. Contudo, este artigo não se limita a um elogio acrítico aos especialistas, analisando também onde estes, jornalistas e o mundo acadêmico em geral tem sistematicamente errado e assim criaram as condições para a atual crise de fake news e negação de consensos científicos.

Este artigo faz parte da série: “Coronavírus: o que fazer para nunca mais acontecer”.

Autores: Caio Freire e Fernando Moreno

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