Utopia: todos felizes. Distopia: todos em sofrimento. Vistopia: só uma parte mínima vê o sofrimento de uma imensa quantidade de vidas, o resto (a maioria) não enxerga nada de errado ou não se importa.
Meu primeiro VegFest, o maior congresso vegano da América Latina, se encerrou ontem, dia 11/12/22, exatamente no meu aniversário de um ano vegano. No dia 11/12/21, comi os últimos seis camarões da minha vida. E isso tem feito toda a diferença.
Mas eu ainda não conhecia o que era o VegFest. E hoje, e agora que acabou, eu não consigo mais voltar para o mundo vistópico sem VegFest. Está difícil me readaptar, parece que o tempo parou por quatro dias que duraram quatro anos que se passaram em quatro segundos. Vou tentar resumir de maneira aleatória os aprendizados e encontros, pois a intenção não é um relatório sobre o evento. Nem faria sentido, pois a programação do congresso é só o topo de um iceberg de experiências.
“O que fazemos com os animais é imperdoável”. Essa frase me marcou na plenária final tanto quanto “o futuro vegano é inevitável” da abertura. A agonia e ansiedade que sentimos (a vistopia) é sobre como acelerar a segunda afirmação e como acordar o mundo para a primeira.
O mundo fora do Vegfest seguia seu ritmo normal de violência contra os animais não humanos. Sabíamos disso, mas lá dentro havia um conforto. Uma energia diferente por poucos dias. Os abraços de olhares, em que todos sabíamos lutar pela mesma causa, tanta gente diferente dando a vida para acelerar o futuro vegano, cada um do seu jeito, de bodybuilders a ambientalistas, de médicos a filósofos, de nutricionistas a empreendedores e comunicadores e chefs de cozinha, de cientistas e veterinários e economistas e pesquisadores a marinheiros e pintores e escritores, de artistas a advogados, de atletas a cientistas, de fundadores de santuários a fundadores de startups, de ONGs de conscientização e manifestações de rua (e de oceanos) a ONGs de impacto em políticas públicas e legislação, os abraços de olhares entre tanta gente diferente fazendo tudo que pode em seus campos, o mundo fora do Vegfest seguia seu ritmo sem dar importância ao sofrimento dos animais não humanos, mas nossa energia dos encontros pipocava de esperança.
Os corredores da feira transbordavam tecnologia e criatividade de empresas pequenas até multinacionais. Podíamos ver que, se não for pela consciência ética, o mundo poderá ser veganizado pela inovação em produtos e processos.
Provei superfoods amazônicos, suplementos de proteína, chocolate de batata doce e sorvete de inhame melhores que qualquer opção com crueldade animal. Provei hambúrgueres, almôndegas, linguiça e até churrasco grego que não deve nada às versões “tradicionais”. Vários amigos sentiram isso: o churrasco grego dava medo de tão parecido com gordura animal no sabor e consistência. Idem para creme de avelã, manteiga, queijos, milk-shakes, cappuccinos, vinhos, picolés, cervejas, requeijão, coxinhas, nuggets, chocolates, doce de leite, churros, esfihas, kibes e até, talvez o maior sucesso da feira, sorvete de casquinha estilo McDonalds. O único produto que não encontrei ainda foi um queijo muçarela que derrete/estica como a versão em pizzas com crueldade. Fica o desafio para o VegFest 2023.
A feira era aberta gratuitamente ao público, assim como a Cozinha Show, com receitas preparadas e degustadas ao vivo. A criatividade do menu vai em lista: Torta viva de chocolate; Bolo proteico de banana; “Costelinha” de tofu empanada no fubá com molho de ervas. (Tambaqui); Moqueca de Banana da Terra com legumes e vegetais; Tostada de grão de bico em 3 formas com legumes e picles; Feijoada do Laguna; Cogumelos à doré; Sanduíche de Seitan defumado com crisps de couve e picles de repolho roxo; Ceviche de banana verde e Patê de Banana Verde; Cream Cheese Fermentado; Lentilha sequinha; Hambúrguer e Molho “bolonhesa” com legumes; Churrasco Vegano; Pão de trança recheado; Bolo de banana com “doce de leite” e crocante de castanhas; Travesseiro de abobrinha; Moqueca de banana cremosa; Churros de banana sem glúten; Bobó de pequi com grão de bico e farofa de castanha de baru; “Queijo Polenguinho”; Ceviche vegano; “Peru” de tofu recheado e Salpicão pro Reveillon; Receitas de Ceia com Laticínios de Aveia: Empadão e “Ferrero Rocher”.
Se a ética não vai veganizar o mundo, a tecnologia e a criatividade vão. Os onívoros também podem ajudar no meio do caminho sem nem perceberem. Quanto maior a demanda pelos produtos veganos, maior a escala possível de produção e menor o preço. Em uma das palestras, o dono do Green Kitchen disse que 80% dos seus clientes são onívoros. Corta para o final do segundo dia. Divido o uber até o metrô com três pessoas aleatórias. A motorista pergunta se somos todos veganos. Não somos, duas comem carne e estão trabalhando no evento. Mas, quando a motorista afirma não conseguir viver sem um bife, são as duas não veganas que fazem propaganda dos hambúrgueres de plantas que provaram na feira e acharam maravilhosos.
O VegFest não é só comida. A feira também tinha inovações em cosméticos, produtos de limpeza, medicamentos, vestuário. A feira também trazia exposição de fotos, atividades esportivas e ioga, uma loja do Laguna, o primeiro time 100% vegano do Brasil, e até uma experiência de Escape60, em que os participantes tinham de solucionar problemas para libertar as galinhas da indústria.
Tudo isso porque a causa vegana é pela ética com os animais em todos os setores, não só na comida. Aprendi em uma das palestras que estamos evoluindo bastante em simuladores computacionais de olhos e pele, assim animais não serão mais queimados com ácido para testes de substâncias. Isso faz parte de um caminho dos 3 Rs (redução, refinamento e substituição/replacement) que ativistas pelos direitos dos animais buscam trazer para a ciência. Até porque, 90% de medicamentos seguros e eficazes em animais não são seguros e/ou eficazes em humanos. A metodologia não funciona de maneira completa, só causa sofrimento. Dois exemplos famosos: penicilina e aspirina (se passassem por testes em animais seriam reprovadas por serem tóxicas demais para uso em humanos).
No Brasil, temos 370 organizações que defendem os direitos dos animais e 814 mil (sim, quase um milhão) que defendem os direitos humanos. A conclusão é: faltam ativistas pela causa animal no país. Até porque 99% das 370 organizações que os defendem focam apenas em cães e gatos. Faltam ativistas para outras espécies além das consideradas “pets”.
“Aqueles que chutam focinhos”. Acho que pode ser uma boa metáfora. Imagine um mundo em que sempre foi comum chutar focinhos de todos os animais, exceto cães e gatos. Há milênios os humanos chutam focinhos por acreditar que é importante para a saúde. O chute no focinho libera hormônios essenciais no cérebro e enzimas que ajudam na digestão de proteínas no intestino. Assim, as sociedades não conseguem ver a violência ao chutar focinhos, pois também é cultural e gera um grande prazer (ah, chutar focinho de bacon é vida!) e, vejam só, deus muitas vezes pede que focinhos sejam chutados. Exceto cães e gatos. Chutar focinhos de cães e gatos é crime nessa sociedade, pois é inadmissível conviver com uma violência dessas, nada justifica, nem deus algum.
“Se deus permite que matemos os animais, ele também permite que não os matemos” (frase de Ricardo Laurino em sua palestra apertada pelo jogo do Brasil na Copa – mas vou levar para sempre seu ensinamento de que devemos nos preocupar tanto em relação ao conteúdo quanto à forma que passamos a mensagem).
O último dia do festival coincidiu com o Dia Internacional dos Direitos dos Animais. E fomos para a Avenida Paulista realizar um protesto. Em uma união de forças entre ONGs (vi representantes do Fórum Animal, Mercy for Animals, Sinergia Animal, Altruísmo Eficaz, sob coordenação da Animal Equality), éramos 50 ativistas marchando pela rua com fotos de diversas espécies e repetindo uma palavra única: sentem. Os animais sentem. Todos os animais, não apenas cães e gatos. Éramos 50 ativistas tentando explicar isso para o mundo daqueles que chutam focinhos. Passamos por quase mil pessoas durante a marcha, poucas apoiavam, mas ouvi apenas dois: “vou comer um churrasco”.
Foi apenas o nono VegFest organizado pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), mas aprendi muito da história do movimento. Esse foi o tema da palestra da fundadora da SVB (Marly Winckler), que traduziu o livro de Peter Singer e realizou o primeiro encontro em 2003 em Florianópolis. Aprendi, entre outras coisas, que: Anna Kingsford é a mãe do vegetarianismo no ocidente, com seu livro “Alimentação vegetal do homem” (de 1880); em 1908 foi criada a união vegetariana internacional (IVU); Machado de Assis criticava o consumo de carne e detestava touradas por pena do boi (publicou em jornal um artigo “carnívoros e vegetarianos” em 1893); a revista “o vegetariano” foi lançada no Porto, Portugal (publicada de 1909 a 1934, tinha 4 mil assinantes por lá e muitos leitores no Brasil); Fernando pessoa era vegetariano (fez prefácio falando disso no livro “Alma Errante” de Eliezer Kamenezky); diversas filosofias criaram comunidades que buscavam o veganismo, como a Monte Verita (que abrigou vários escritores famosos, até Tolstói passou por lá); a Igreja Adventista foi bastante responsável pela popularização da alimentação sem carne nem queijo, abriram diversos restaurantes pelo Brasil (são quase 2 milhões de membros); a Sociedade Teosófica também (inclusive cedendo espaços em seu prédio), o movimento budista e muitos outros. Marly lançou no VegFest uma nova versão do Guia de Nutrição Vegetariana, uma bíblia de 600 páginas escrita pelo Dr. Eric Slywitch e disponibilizada gratuitamente para quebrar mitos e disseminar conhecimento entre profissionais de saúde.
Trouxe destaque para as palestras da Marly (a primeira presidente da SVB) e do Ricardo Laurino (o atual presidente), mas queria falar de todas. Os palestrantes podem ser consultados no site do evento (https://vegfest.com.br/congresso/), sigam todos, vão de psicólogos a cientistas, chefs e influencers, sempre compartilhando muito conhecimento em suas redes.
Aqui vai um apanhado para mostrar a riqueza de tudo que era possível aprender: governo chinês decretou redução de 50% no consumo da carne nas próximas décadas, e isso vai influenciar o mundo inteiro; o consumo de feijão no Brasil é de 14 kg per capita por ano, mas o país só produz 12 kg e as plantações de soja e milho (para ração) estão invadindo essas áreas; os veganos podem ser responsáveis por aprox. 20% do consumo de feijão no país e isso nos torna um grupo forte para movimentar o setor; o feijão pode ser armazenado por até 10 anos, é super eficiente na produção de proteínas (de 100% das calorias que um porco consome, apenas 4% vira comida, a produção de carne além de cruel é ineficiente e poluidora); em média, a cada 10 calorias que alimentam os animais, só 1 caloria vira alimento para humanos; um caminho para escalar o veganismo é ganhar destaque no PNAE (programa nacional alimentação escolar) e no guia alimentar; preciso ler o documento completo da Declaração de Cambridge (atestando a senciência dos animais); “a principal função da emoção: gerar respostas e comportamentos adequados a sua vida, seja para proteger ou impulsionar a realizar algo”, e a emoção vem antes do comportamento, proporciona decisões rápidas, é uma vantagem evolutiva dos animais, todos eles sentem emoções; Darwin lançou um livro no tema (“a expressão das emoções nos humanos e animais”); o consumo de carne só tende a crescer, mas uma projeção da Kearney coloca que, em 2040, 60% do consumo virá de proteínas alternativas (fermentadas, cultivadas ou de plantas); não havia refeição vegana na COP27, os participantes veganos dependiam de ativistas que davam marmitas na porta do evento; 89% dos produtos plant based são consumidos por onívoros e flexitarianos; as carnes cultivadas podem ser a saída principalmente para quem nunca diz que vai mudar, as células podem ser congeladas por anos e só a primeira precisa vir de uma biopsia em um animal (do tamanho de um grão de gergelim – para aves, pode vir de uma pena); preciso comer 4g de Ômega 3 por dia (1 colher de sopa de óleo de linhaça já é o suficiente); suplementar vitamina b12 é obrigatório (um bom nível de segurança é em torno de 800), ela é importante não só para o cérebro, mas para a produção de células vermelhas também; na indústria, as vacas são suplementadas com cálcio (só o suplemento para 1 vaca daria para 28 pessoas terem suas necessidades supridas); precisamos de 1,000 g de cálcio por dia, não é tão difícil: 1 colher sopa tahine (125g), 2 colheres de sopa de chia (126g), 10g tofu (200g), 2 folhas couve (50g), 200ml Ades (400g), 1 xícara de amaranto ou punhado de brócolis (100g), e pronto; se reduzíssemos em 50% o consumo de carne, aumentaríamos em 25% a disponibilidade de calorias (podendo alimentar 2 bilhões de pessoas a mais); os jogadores veganos do time Laguna voaram e tinham o melhor condicionamento físico, um deles disse que vai tentar veganizar em casa; uma palestrante que trabalhou em abatedouros disse que muitos dos funcionários não conseguem comer a carne que eles próprios abatem, não engolem a violência.
A crise é ética, é política, é ambiental, é de saúde. Dentro do VegFest, todos nós lutamos para que nenhum focinho seja chutado. Assistimos a palestras e discutimos sobre como convencer o mundo a parar de chutar focinhos, a parar de se escandalizar apenas com focinhos de pets. Dentro do VegFest, descobrimos produtos que não precisam de chutes em focinhos para serem eficientes e saborosos. É possível transformar o mundo daqueles que chutam focinhos.
Mas, hoje, escrevo esse texto fora da VegFest, onde não tem mais para quem olhar e refletir o conforto de respeitarmos os animais, onde não somos maioria, onde as pessoas ainda não acordaram e, claro, cada um tem seu ritmo, mas que ritmo lento… (eu me coloco junto, eu mesmo era cego assim até o ano passado e me achava super progressista e defensor de minorias).
O primeiro congresso vegetariano no Brasil foi há 20 anos. O último foi ontem. E ainda morrem 70 bilhões de animais terrestres no mundo todo ano… e o número só aumenta. E só no Brasil, anualmente, são 8 milhões de bezerros mortos na indústria do leite e 84 milhões de pintinhos triturados vivos na indústria do ovo… O que esperar dos próximos 20 anos? Não consigo ficar satisfeito com a projeção de que, em 2040, 60% das proteínas consumidas serão de plantas ou de células cultivadas. Isso porque 40% ainda continuariam sendo produzidos com crueldade.
Fiquei com lágrimas nos olhos em diversas das palestras, o futuro parece estar tão longe e tão perto ao mesmo tempo. “O futuro vegano é inevitável”, mas, enquanto isso, o presente parece insuportável demais. O 9o VegFest terminou ontem e tudo o que quero é que o 10o VegFest já seja amanhã.
“O que fazemos com os animais é imperdoável”. Resta-nos buscar estratégias e evitar o esgotamento, os animais precisam disso, eles nos imploram que continuemos ativos. Não podemos ceder ao burnout que a vistopia gera. Às vezes, para continuarmos com força no mundo daqueles que chutam focinhos, precisamos fechar os olhos, baixar a cabeça e trabalhar no que for possível, no nosso canto, cada um mexendo um milímetro em direção ao futuro, fingir que não vemos focinhos sendo chutados por amigos e familiares.
Existem divergências no movimento, mas são mínimas perto do problema. Precisamos baixar a cabeça e fazer o que acreditamos ser o certo sem atrapalhar outros ativistas, o caminho já é quase impossível mesmo se um não sabotar o outro. Não dá tempo para sermos todos ativistas perfeitos, os animais não querem nossa perfeição, querem nossa ação. São eles que estão em jaulas e gaiolas no escuro, no frio, separados de suas famílias.
Para combater a vistopia de viver em um mundo que não se importa com os animais (ou que nem percebe que não se importa), aprendi no VegFest que precisamos de 4 pilares: Assertividade (capacidade de nos comunicar, sermos firme e claros), Empatia (entender a situação e com quem estamos nos comunicando, entender se o caso é de uma fala mais agressiva ou mais suave), União (criar uma rede de amigos veganos que se apoiam e se reforçam) e Ativismo (despejar energia para avançar a libertação animal, encontrar ações que se conectem com os talentos de cada um).
Relembrando o início do texto. Utopia: todos felizes. Distopia: todos em sofrimento. Vistopia: só uma parte mínima vê o sofrimento de uma imensa quantidade de vidas, o resto (a maioria) não enxerga nada de errado ou não se importa.
Assertividade, Empatia, União e Ativismo. Buscarei apoio nesses 4 pilares durante o longo ano até o próximo VegFest. Assertividade, Empatia, União e Ativismo para suportar mais meses de vistopia no mundo daqueles que chutam focinhos.
Senti no VegFest uma emoção que precisa de uma nova palavra, precisa ser batizada. Vutopia (Vegan + Utopia): um mundo em que todos, animais humanos e não humanos, são felizes e respeitados. Porque uma Utopia só para a espécie humana não é uma paz suficiente para o mundo.
Andar pelos corredores do congresso e sentir que somos maioria é uma experiência vutópica. Abraçar olhares com uma multidão que se importa com todos, independente da espécie, é uma vivência que o resto da sociedade precisa experimentar. E amanhã essa multidão vai ser maior.
Ontem, completei um ano vegano e comemorei com novos amigos. Fomos ao rodízio de pizzas PopVegan após a manifestação na Avenida Paulista. Éramos praticamente desconhecidos uns dos outros e parecia amizade de infância. Se União e Ativismo formam novas famílias, o VegFest também abre novos mundos.
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.
Demais Demais!!! Compartilho domesmo sentimento Leandro. Dificil voltar promundo real agora. Mas vamos juntos e fortes!