É sempre bom nos lembrar que, no grande movimento da história, nós somos os afortunados. A descrição de Thomas Hobbes da vida como “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta” foi adequada durante a maior parte da história humana. Não mais. A fome e a escassez tornaram-se mais raras, o padrão de vida da maior parte das pessoas aumentou e a pobreza extrema foi reduzida substancialmente nas últimas décadas. A esperança média de vida ao nascer, mesmo nas partes menos saudáveis do mundo, é superior a 60 anos, ao passo que um britânico nascido na década de 1820 teria uma expectativa de vida de cerca de 40 anos.
Mas, essas melhorias fantásticas foram acompanhadas por riscos catastróficos. Mesmo que a Covid-19 tenha nos sacudido de nossa complacência, ainda temos que lidar com os perigos que enfrentamos.
As melhorias dos últimos 200 anos são frutos da industrialização, possibilitada pela aquisição de conhecimento e domínio da tecnologia. Mas esse processo envolveu trade-offs. Impulsionados pelo desejo de riqueza, empresas e governos buscaram reduzir custos e aumentar a produtividade e os lucros, o que levou a rupturas que às vezes deixavam centenas de milhões de pessoas empobrecidas e desempregadas.
Durante décadas, os trabalhadores em minas e fábricas foram brutalmente coagidos a aumentar cada vez mais a produção, até que conseguissem se organizar e assegurar algum poder político para si próprios. E, claro, o início da era industrial encorajou a escravidão e a busca pelo acesso aos recursos naturais, o que levou a guerras massivas e imperialismo brutal.
Esses excessos não eram nem anomalias e nem inevitáveis. Muitos já foram corrigidos por meio da economia de mercado, reformas das relações de trabalho, regulamentação estatal e novas instituições (muitas vezes democráticas). Mas outras consequências não intencionais significativas da industrialização ainda precisam ser abordadas, porque nenhum grupo político organizado surgiu para enfrentá-las.
A preocupação mais urgente são os riscos globais catastróficos, sendo o mais óbvio a mudança climática antropogênica – um excelente exemplo de como um processo de enriquecimento pode criar uma ameaça existencial.
Um segundo problema, um tanto relacionado, é a perda de biodiversidade. A taxa estimada de extinção de espécies hoje é de 100 a 1.000 vezes maior do que a da era pré-industrial, mas ainda há muito pouco reconhecimento dos riscos criados por tal desestabilização radical da natureza.
O terceiro risco global é a guerra nuclear. Dividir o átomo exemplifica tanto nosso domínio sobre a natureza quanto o potencial para o uso indevido da ciência e da tecnologia. Embora a tecnologia nuclear tenha muitas aplicações pacíficas (e pode ter um papel de curto prazo a desempenhar no tratamento da mudança climática), sua consequência mais importante foi inaugurar uma era de destruição mutuamente garantida. Tal como acontece com as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, ainda não avaliamos os riscos que a tecnologia nuclear representa para a humanidade; na verdade, os países que possuem arsenais nucleares estão agora os reconstruindo e expandindo.
Um quarto grande risco é a inteligência artificial, que pode levar a tecnologias que não podemos controlar. Além do risco de que algoritmos superinteligentes acabem com a humanidade, a IA também tem potencial para ser implantada como um instrumento de vigilância e repressão, abrindo caminho para um novo tipo de servidão. E os governos já estão desenvolvendo IA e armas autônomas que poderiam ter todos os tipos de usos nefastos, especialmente se acabassem nas mãos erradas.
Embora ninguém possa negar esses riscos, o primeiro instinto da maioria das pessoas é descontar drasticamente a probabilidade de um cenário catastrófico. Mas isso está errado. Durante o século 20, o mundo esteve perto de uma guerra nuclear em várias ocasiões. Como tivemos sorte, agora presumimos retrospectivamente que o risco não era tão alto quanto parecia.
Mas considere o cenário contrafactual. Onde estaríamos hoje se uma guerra nuclear total não tivesse sido evitada pelas ações de Vasili Alexandrovich Arkhipov, um segundo-capitão que, no auge da crise dos mísseis cubanos, pediu moderação quando os outros comandantes a bordo do seu submarino nuclear soviético B-59 acreditavam erroneamente que estavam sob ataque dos Estados Unidos? Certamente não estaríamos lendo livros sobre o suposto declínio da violência ao longo do tempo.
Por outro lado, aqueles que reconhecem os perigos representados pelas mudanças climáticas e pela IA muitas vezes concluem que o problema é o próprio crescimento econômico. Eles argumentam que reduzir emissões, preservar a natureza e prevenir o uso indevido de tecnologia requer uma desaceleração ou reversão da produção, investimento e inovação.
Mas recuar no crescimento e no progresso tecnológico não é realista e nem aconselhável. O mundo ainda está longe de acabar com a pobreza, e o que as pessoas nos países ricos e pobres mais precisam agora são bons empregos que alavanquem a tecnologia pelo interesse dos próprios trabalhadores. Sem empregos assegurados e crescimento de renda, o presidente Donald Trump e o primeiro-ministro britânico Boris Johnson não serão os últimos demagogos de direita a ameaçar as democracias estabelecidas.
A única opção responsável é criar uma nova estratégia de crescimento que enfatize o tipo de inovação tecnológica necessária para enfrentar as ameaças globais. O objetivo deve ser criar um ambiente regulatório que incentive as empresas e empreendedores a desenvolver as tecnologias de que realmente precisamos, em vez daquelas que simplesmente aumentam os lucros e a participação no mercado de poucos. E, é claro, precisamos de um foco muito maior na prosperidade compartilhada, para não repetir os erros das últimas quatro décadas, quando o crescimento se desvinculou da experiência vivida pela maioria das pessoas (pelo menos no mundo anglo-saxão).
Embora nosso histórico de combate às mudanças climáticas seja ruim, podemos abraçar o fato de que formas outrora muito caras de energia renovável agora são competitivas em relação aos combustíveis fósseis. Isso não aconteceu porque viramos as costas à tecnologia. Em vez disso, é o resultado de avanços tecnológicos trazidos por uma economia de mercado regulada, na qual as empresas responderam à precificação do carbono (especialmente na Europa), aos subsídios e à demanda do consumidor.
A mesma receita pode funcionar contra outros riscos catastróficos. O primeiro passo é reconhecer que esses riscos são reais. Só então poderemos prosseguir com a construção de instituições melhores e capacitar novamente o Estado para moldar os resultados do mercado com os interesses da humanidade em mente.
Autor: Daron Acemoglu
Tradução: Lucas Eduardo Barbeiro
Revisão: Fernando Moreno
Publicado originalmente em 11 de agosto de 2020 em:
https://www.japantimes.co.jp/opinion/2020/08/11/commentary/world-commentary/minding-perils-progress/