Nota do Revisor: “baseada em acertos” (no original, hits-based) remete a imagem de um jogo em que deveríamos tentar jogar o maior número de bolas possível (iniciativas de filantropia), na expectativa de que ao menos algumas poucas delas acertem o alvo. A imagem também remete às áreas de investimento de alto-risco e alta recompensa: por exemplo, a maioria das novas empresas de tecnologia que existem hoje terão falido daqui uns poucos anos. Ainda assim, elas recebem recursos de investidores que sabem que, mesmo que a maioria dessas empresas não dê certo, as poucas que tiverem sucesso compensarão com folga o que foi investido nas demais.
Um dos nossos principais valores é nossa tolerância para o “risco” filantrópico. Nosso objetivo mais amplo é fazer o maior bem possível e, como parte disso, estamos abertos para apoiar o trabalho que corre um alto risco de não atingir seus objetivos. Estamos até mesmo abertos para apoiar o trabalho que tem mais de 90% de chance de falhar, contanto que o valor esperado total seja alto o suficiente.
E entendemos que, na verdade, grande parte da melhor filantropia está fadada a fracassar. Suspeitamos que a filantropia de alto risco e alta recompensa pode ser descrita como um “negócio de acertos”, no qual um pequeno número de enormes sucessos responda por uma grande parte do impacto total — e compense um grande número de projetos que fracassam.
Se isso for verdade, acredito que ele exija que abordemos nossas doações com princípios contraintuitivos — princípios que são muito diferentes daqueles subjacentes ao nosso trabalho na GiveWell. Principalmente, se seguimos uma abordagem “baseada em acertos”, algumas vezes apostaremos em ideias que contradizem a sabedoria convencional, contradizem algumas opiniões de especialistas e têm pouco apoio claro nas evidências. Ao apoiar tal trabalho, correríamos o risco de parecer para alguns como defensores de pontos de vista excessivamente confiantes baseados em investigação e reflexão insuficientes.
Na verdade, temos motivos para pensar que algumas das melhores formas de filantropia provavelmente sempre terão essas propriedades. Dito isso, pensamos que ser verdadeiramente superconfiantes e subinformados seria nocivo demais para o nosso trabalho; ser bem-informado e reflexivo sobre as formas como podemos estar errados está no âmago do que fazemos, e acreditamos piamente que alguns projetos filantrópicos de “alto risco” são muito mais promissores do que outros.
Este post irá:
- Destacar por que pensamos que a abordagem “baseada em acertos” é adequada.
- Listar alguns princípios que consideramos sólidos para muitas tomadas de decisão, mas — talvez contra-intuitivamente — não são adequados para a doação baseada em acertos.
- Listar princípios que pensamos serem úteis para nos certificar que focamos nas melhores oportunidades de alto risco possíveis.
Existe uma analogia natural aqui para certos tipos de investimento com fins lucrativos, e alguma sobreposição entre nosso pensamento e as ideias que Paul Graham relatou em um artigo de 2012, Black Swan Farming.
Índice
1.O argumento básico para a doação baseada em acertos
Conceitualmente, focamos na maximização do valor esperado de quanto bem alcançamos. Em geral não é possível chegar a uma estimativa precisa ou mesmo quantificada do valor esperado, mas o conceito é útil para ilustrar o que estamos tentando fazer. Hipoteticamente, e simplificando bastante, poderíamos ver as seguintes oportunidades como igualmente promissoras: (1) um auxílio de US$1 milhão que certamente evitaria exatamente 500 mortes prematuras; (2) um auxílio de US$1 milhão que teria uma chance de 90% de não realizar nada e 10% de chance de evitar 5000 mortes prematuras. Ambos teriam um valor esperado de evitar 500 mortes prematuras. Como ilustra esse exemplo, um foco no “valor esperado” significa que não temos uma preferência básica por filantropia de baixo risco ou de alto risco, possivelmente preferimos uma filantropia transformadora. Podemos optar por qualquer uma delas, dependendo dos detalhes. Em paralelo, a maioria dos outros financiadores que conhecemos têm opiniões fortes sobre se é melhor assumir grandes riscos ou financiar o que é confiável e comprovado; podemos ser incomumente agnósticos a esse respeito.
Dito isso, vejo alguns motivos básicos para esperar que uma abordagem de “valor esperado” favoreça doações de alto risco e potencialmente transformadoras.
1.1. História da filantropia. Fizemos um panorama prévio de alto nível de alguns dos grandes sucessos que são reivindicados pela filantropia. Desde então, investigamos esse assunto ainda mais por meio do nosso projeto da História da Filantropia, e, até o final de 2016, esperamos publicar um resumo atualizado do que aprendemos. Uma das nossas conclusões é que existem alguns casos em que um filantropo assumiu um grande risco — financiando algo que não havia motivos para esperar que tivesse sucesso — e acabou tendo um impacto enorme, grande o suficiente para potencialmente compensar outros projetos fracassados.
Aqui estão alguns exemplos bastante fortes (observe que eles focam na magnitude do impacto, e não se o impacto foi positivo):
- A Fundação Rockefeller investiu em pesquisa sobre a melhoria da produtividade agrícola no mundo em desenvolvimento, o que agora se acredita ter sido o catalisador para uma “Revolução Verde” que a Wikipedia afirma levar o “crédito por salvar mais de um bilhão de pessoas da inanição.” (O artigo da Wikipedia discute o papel da Fundação Rockefeller, como faz este post sobre o blog HistPhil, apoiado pelo Projeto da Open Philanthropy.)
- Em The Birth of the Pill, Jonathan Eig credita à filantropa e feminista Katharine McCormick — aconselhada por Margaret Sanger — como sendo a única fundadora de pesquisa crucial em fase inicial que levou ao desenvolvimento da pílula contraceptiva oral combinada, atualmente um dos métodos de controle de natalidade mais comuns e convenientes.
- Em The Rise of the Conservative Legal Movement, o Prof. Steve Teles argumenta que os conservadores colocam uma grande quantidade de financiamento em objetivos de longo prazo e alto risco sem uma maneira de prever seu sucesso. Ele argumenta que seu principal impacto foi mudar profundamente a forma como a profissão de advogado funciona e a estatura intelectual geral do conservadorismo político.
Se corretas, essas histórias implicariam que a filantropia — e mais especificamente, a filantropia que apoia pesquisas na fase inicial e projetos de alto risco — desempenharam um papel importante em alguns dos avanços mais significativos do último século.1 Um “portfólio” filantrópico que contenha um desses projetos, e um grande número de projetos fracassados similares, provavelmente teria um desempenho geral muito forte, em termos de impacto por dólar.
1.2. Vantagem comparativa. Ao tentar descobrir como doar da melhor forma possível, uma heurística a ser considerada é “o que os filantropos estão estruturalmente mais bem (e mal) preparados para fazer em comparação com outras instituições?” Mesmo grandes filantropos tendem a ter relativamente menos financiamento disponível do que os governos e os investidores com finalidade de lucro, mas os filantropos são muito menos pressionados pela necessidade de gerar lucro ou justificar seu trabalho para um grande público. Eles podem apoiar trabalhos que sejam muito “iniciais”, tais como ideias novas e não comprovadas ou trabalhos que possam levar muitas décadas para provocar impacto. Podem apoiar inúmeros projetos que fracassam até encontrar um que seja bem sucedido. Podem apoiar obras que requeiram um conhecimento muito aprofundado para que sejam reconhecidas como sendo importantes e, por isso, difíceis de justificar para um público amplo. Todas essas coisas parecem sugerir que, quando os filantropos estão financiando projetos de baixa probabilidade de sucesso mas com chances de alto retorno, estão fazendo o que fazem de melhor em relação a outras instituições.
1.3. Analogia para investimento com fins lucrativos. Muitas formas de investimento que visam lucro, tais como investimento em capital de risco, são “negócios de acertos.” Para obter alguma descrição sobre isso, veja o artigo que mencionei anteriormente. A filantropia parece ser similar de algumas formas relevantes ao investimento com fins lucrativos: principalmente porque ela chega a compreender como alocar um conjunto específico de recursos entre projetos que podem ter resultados muito diferentes. E muitas dessas diferenças entre investimento com fins lucrativos e filantropia (como discutido acima) parecem implicar que a doação baseada em acertos pode ser ainda mais adequada do que o investimento baseado em acertos.
2.“Anti-princípios” para a doação baseada em acertos
Esta seção discute os princípios que pensamos ser sólidos para a tomada de decisão, mas não adequados para doação baseada em acertos. Para maior clareza, eles são expressos como “Nós não _____” onde _____ é o princípio que pensamos não servir bem a essa abordagem.
Um tema comum nos itens abaixo é que, para um princípio ser uma boa opção, ele precisa ser compatível com as melhores oportunidades de doação imagináveis — aquelas que podem parecer com os casos listados na seção anterior, tais como a Revolução Verde. Qualquer princípio que sistematicamente desencoraje os maiores sucessos imagináveis é provavelmente inadequado para a doação baseada em acertos, mesmo se for um bom princípio em outros contextos.
Nós não: exigimos uma forte base de evidências antes de financiar algo. Evidências de qualidade são difíceis de serem obtidas e, em geral, exigem um esforço bem embasado e aparelhado. Exigir uma evidência de qualidade, portanto, estaria em desacordo com nosso interesses em negligência (N.R.: Leia aqui sobre a Metodologia ITN). Isso significaria que, em geral, estariamos apoiando ideias que outros já exploraram e amplamente financiaram — o que parece reduzir a probabilidade de provocar um impacto do tamanho de um “acerto” com nossa participação. E algumas das atividades, tais como financiamento de trabalho tendo em vista influenciar a política ou a pesquisa científica, são inerentemente difíceis de “testar” de maneira previsivelmente válida. Parece que a maioria dos casos anteriores de “acertos” na filantropia não estavam embasados em evidências, no sentido de ter uma forte evidência que previsse diretamente seu sucesso, embora a evidência provavelmente tenha tido seu papel de formas menos diretas.
Nós não: buscamos uma alta probabilidade de sucesso. No meu ponto de vista, fortes evidências são necessárias para destinar justificadamente uma alta probabilidade para se obter um impacto positivo razoavelmente grande. Como ocorre com o capital de risco, precisamos estar dispostos a apoiar muitos fracassos para cada sucesso — e os sucessos precisam ser grandes o suficiente para justificar isso.
Nós não: cedemos à opinião de especialistas ou à sabedoria convencional, embora procuremos nos informar sobre elas. Da mesma forma como o ponto acima, seguir a opinião de especialistas e a sabedoria convencional pode ir contra nosso objetivo de apoiar causas negligenciadas. Se financiamos um trabalho de base inicial para mudar a opinião do especialista e/ou a sabedoria convencional sobre um assunto importante, isso pode ser um forte candidato a ser um “acerto”. Realmente pensamos que seria um mau sinal se nenhum especialista (usando o termo de forma ampla significando “pessoas que têm uma enorme experiência em determinado assunto”) concordar com nossa posição a respeito de um assunto, mas, quando houver desacordo entre os especialistas, precisamos estar dispostos a adotar o entendimento de algum deles. No meu ponto de vista, em geral, é possível fazer isso de forma produtiva aprendendo o suficiente sobre os assuntos chave para determinar quais argumentos se adequam melhor aos nossos valores e à epistemologia básica.
Nós não: evitamos posições controversas ou situações contraditórias. Tudo o mais mantendo-se igual, preferimos não chegar a tais situações, mas fazer um grande esforço para evitá-las parece incompatível com a abordagem baseada em acertos. Somos solidários a argumentos do tipo, “Você deveria ser menos confiante na sua posição quando pessoas inteligentes e bem intencionadas assumem uma posição contrária à sua” e “É lamentável quando dois grupos de pessoas gastam recursos um contra o outro, o que não leva a uma mudança básica, quando poderiam direcionar todos os seus recursos para algo com o que concordam, como ajudar diretamente pessoas com necessidades”. Entendemos que esses argumentos nos dão algum motivo para preferir as principais organizações da Givewell. Mas sentimos que elas precisam ser ignoradas quando buscam um “acerto”.
Entendemos que muitos “acertos” envolverão conseguir um multiplicador do nosso impacto que mude as normas sociais ou as opiniões dos tomadores de decisões. E nosso interesse na negligência em geral levará a questões em que as normas sociais, ou grupos bem organizados, são fortemente contrários a nós. Nenhum dos “acertos” listados acima eram incontroversos. Observe que o contraceptivo oral combinado é um exemplo de algo que foi altamente controverso na época (o que levou, no meu ponto de vista, a uma pesquisa necessária ser negligenciada pelo governo e por outros financiadores) e agora ele é aceito de modo muito mais amplo. Para mim, isso é uma parte chave do motivo de existirem momentos de avanços.
Nós não: esperamos poder nos justificar totalmente por escrito. Explicar nossas opiniões por escrito é fundamental para o DNA do Projeto da Open Philanthropy, mas precisamos ser cuidadosos para não deixar que isso deturpe nossa tomada de decisão. Temo que, ao considerar um financiamento, nossa equipe pense em como justificá-lo publicamente em nosso relatório e evitar financiá-lo se a coisa parecer muito estranha de se justificar — principalmente quando o caso parecer muito complexo e depender de informações difusas e difíceis de resumir. Esse é um viés que não queremos ter. Se nos concentrássemos em questões fáceis de explicar para pessoas de fora com pouco conhecimento prévio, estaríamos focando em questões que provavelmente têm grande apelo e teríamos mais problemas em enfatizar áreas negligenciadas.
Um bom exemplo é nosso trabalho em política de estabilização macroeconômica: as questões aqui são muito complexas e formamos nossas opiniões ao longo de anos de discussão e engajamento com especialistas importantes e um grande grupo de discussão pública. A dificuldade de compreender e resumir a questão relaciona-se, a meu ver, ao motivo pelo qual ela é uma causa tão atraente do nosso ponto de vista: a política de estabilização macroeconômica é extremamente importante, mas bastante esotérica, o que creio explicar por que certas abordagens sobre ela (principalmente aquelas que se concentram no ambiente político em oposição à pesquisa econômica) continuam negligenciadas.
Em termos de processo, tentamos separar nosso processo de tomada de decisão do nosso processo de divulgação pública. Geralmente, as equipes recomendam concessões por meio de textos internos. Mais tarde em nosso processo, depois que os tomadores de decisão aprovaram as ideias básicas por trás da doação, outros funcionários assumem a tarefa e “traduzem” os artigos internos em artigos adequados para um post público. Um dos motivos pelos quais estou feliz em configurar nosso processo dessa maneira é por acreditar que isso permite às pessoas se concentrarem em fazer as melhores doações possíveis, sem se preocupar ao mesmo tempo em como as doações serão explicadas.
Um valor fundamental nosso é sermos abertos em relação ao nosso trabalho. Mas “aberto” é diferente de “documentar tudo exaustivamente” ou “defender tudo com convicção”. Mais sobre isso abaixo.
Nós não: colocamos um peso muito alto em evitar conflitos de interesses, “bolhas” intelectuais ou “câmaras de eco”. Em alguns momentos veremos determinado problema de forma muito diferente da maioria das pessoas no mundo, e nos quais as pessoas que consideramos mais úteis nesse assunto serão (não por coincidência) aquelas que veem o problema de maneira semelhante. Isso pode levar ao risco de nos colocarmos em uma “bolha” ou “câmara de eco” intelectual, um conjunto de pessoas intelectualmente isoladas que reforçam as opiniões umas das outras, sem trazer perspectivas alternativas e contra-argumentos necessários.2
Em alguns casos, o risco pode ser agravado por conexões sociais. Ao contratar especialistas em causas específicas, buscamos explicitamente pessoas com larga experiência e fortes conexões em uma área. Às vezes, isso significa que nossos agentes de programa são amigos de muitas das pessoas mais adequadas para serem nossos consultores e beneficiários.
Outros membros da equipe, inclusive eu, são especializados em escolher entre causas em vez de focar em uma causa específica. A missão de “escolher entre causas para fazer o maior bem possível” é por si só um espaço intelectual que tem uma comunidade ao seu redor. Mais especificamente, muitas pessoas da nossa equipe — inclusive eu — são parte da comunidade do altruísmo eficaz, e têm muitas ligações sociais nessa comunidade.
Como resultado disso, por vezes é difícil desvincular o argumento favorável a um financiamento das relações ao seu redor. Quando ocorrem essas situações, há um risco muito elevado de que não estejamos sendo objetivos, e não estejamos pesando as evidências e os argumentos disponíveis de forma razoável. Se nosso objetivo fosse encontrar oportunidades de doação mais fortemente apoiadas por evidências, isso seria um problema maior. Mas as desvantagens de uma abordagem “baseada em acertos” são menos claras, e as desvantagens de evitar muito fortemente essas situações seriam, no meu ponto de vista, inaceitáveis.
Usando a mim mesmo como exemplo:
- Meu grande interesse em altruísmo eficaz e doação focado em impacto me levou a fazer amizades — e viver na mesma casa — com pessoas com interesses semelhantes.
- Eu passo muito tempo com as pessoas que mais fortemente compartilham dos meus valores e da minha epistemologia básica, e que são pares intelectuais muito interessantes e valiosos.
- Se eu seguisse uma política de pedir aos meus amigos que se recusassem a me aconselhar ou buscar apoio do Open Philanthropy, isso significaria proibir a contribuição de algumas das pessoas cujas opiniões eu mais valorizo.
- Sob uma abordagem “baseada em acertos”, podemos esperar que muito poucos projetos respondam por grande parte (ou a maior parte) do nosso impacto. Portanto, proibir as ideias de algumas das pessoas que mais compartilham nossos valores pode reduzir drasticamente o valor esperado de nosso trabalho.
Esse assunto é ainda mais marcante para alguns de nossos outros membros da equipe, uma vez que os funcionários responsáveis por investigar oportunidades de financiamento em determinada área tendem a ser aqueles com conexões sociais mais profundas nas comunidades relevantes.
Para deixar claro, não acredito que devamos ignorar os riscos de “bolhas” intelectuais ou conflitos de interesse. Para mitigar esses riscos, buscamos (a) sempre divulgar as conexões relevantes para os tomadores de decisão; (b) sempre fazer um grande esforço ativo para encontrar pontos de vista alternativos antes de tomar decisões, inclusive considerando os melhores contra-argumentos que possamos identificar; (c) fazer com que os próprios funcionários-chave entendam os assuntos mais importantes, em vez de confiar no julgamento de amigos e conselheiros, na medida em que isso seja prático; (d) sempre nos perguntar como nossos relacionamentos podem estar distorcendo nossa percepção de uma situação; (e) procurar buscar informações de funcionários que não tenham conflitos de interesse ou relações sociais relevantes.
Mas, depois de fazer tudo isso, ainda haverá situações em que vamos querer recomendar uma concessão que é fortemente apoiada por muitos de nossos amigos, embora atraia pouco interesse daqueles de fora de nossos círculos intelectuais e sociais. Acho que se evitássemos recomendar tais concessões, estaríamos deixando passar algumas de nossas melhores chances de impacto — um custo inaceitável para uma abordagem “baseada em acertos”.
Nós não: evitamos a aparência superficial — acompanhada por algum risco real — de ter confiança em excesso e ser mal informados. Quando imagino o “acerto” ideal na filantropia, ele toma a forma de apoio a uma ideia extremamente importante, em que vemos um potencial que a maioria do mundo não vê. Então, ofereceríamos apoio além do que qualquer outro grande financiador poderia para ir em busca dessa ideia e, quem sabe, obter sucesso e mudança de mentalidade.
Em tais situações, é de se esperar que a ideia seja recebida com ceticismo, talvez até mesmo com forte oposição, da maioria das pessoas que a ouvirem. Eu esperaria que não houvesse evidências fortes e claras por trás disso (ou, na medida em que tivesse, essa evidência seria extremamente difícil de explicar e resumir) e, portanto, apostar nisso seria uma jogada de baixa probabilidade. Levando tudo isso em consideração, eu esperaria que pessoas de fora do nosso trabalho em geral nos vissem como se estivéssemos tomando uma decisão ruim, baseada, inicialmente, em especulação, evidências escassas e bolhas intelectuais auto-reforçadas. Portanto, pareceríamos para muitas pessoas como extremamente confiantes e mal informados. E, de fato, pela natureza de se apoiar uma ideia impopular, correríamos o risco disso ser verdade, por mais que tentássemos (e deveríamos nos esforçar) buscar e considerar perspectivas alternativas.
Acho que uma abordagem “baseada em acerto” significa que precisamos estar prontos para ir além em cada situação e aceitar os riscos que vêm com ela. Mas, conforme discutido abaixo, acho que existem formas melhores e piores de fazer isso, e diferenças importantes entre se envolver nesse tipo de tomada de risco e simplesmente ir atrás de fantasias egoístas.
3.Princípios de trabalho para fazer doações baseada em acertos
A sessão anterior argumenta contra muitos princípios que são importantes em outros contextos, e que os fãs da GiveWell pudessem esperar que os seguíssemos. É aceitável perguntar — se alguém está pronto a fazer recomendações que não estejam baseadas em evidências, consenso de especialistas ou na sabedoria convencional — se existe alguma maneira de distinguir entre doações boas e ruins? Ou se devemos simplesmente financiar aquilo com o que nos entusiasmamos.
Acho que é difícil dizer que tipo de comportamento é mais provável de levar ao “acerto”, que, por sua natureza são raros e provavelmente difíceis de prever. Não sei o suficiente sobre os filantropos que estiveram por trás dos “acertos” passados para poder dizer com muita segurança. Mas posso esboçar alguns princípios com os quais estamos trabalhando para tentar fazer doações “baseadas em acerto” da melhor maneira possível.
Avaliar a importância, negligência e tratabilidade. Esses são os critérios chave para o Projeto da Open Philanthropy. Acho que cada um deles, tudo o mais constante, torna os “acertos” mais prováveis, e cada um isoladamente pode ser avaliado de uma maneira bem direta. Grande parte do restante desta seção refere-se a como avaliar esses critérios em situações difíceis (por exemplo, quando não há consenso de especialistas ou evidências claras).
Pense na melhor e na pior causas possíveis. Preferencialmente, atribuiríamos probabilidades a cada resultado imaginável e focaríamos no valor esperado geral. Na prática, uma estimativa aproximada seria pensar no impacto que um projeto teria se atingisse completamente seus objetivos de longo prazo (melhor caso plausível), e quanto dano ele poderia provocar se estivesse mal orientado (pior caso possível). Esta última estimativa nos dá algumas indicações de quanta cautela deveríamos ter ao abordar um projeto, e quanto trabalho devemos colocar na exploração de contra-argumentos possíveis antes de seguir adiante. A primeira pode servir como um substituto para a importância, e até agora adotamos essa abordagem para avaliar essa importância. Por exemplo, veja as planilhas do Google nesse link aqui, e principalmente nossas estimativas do valor da principal política de mudança sobre diferentes assuntos.
Em geral, os objetivos podem ser muito mais alcançáveis do que pareciam no início (veja alguns exemplos aqui), então, acredito que seja válido almejar um objetivo merecedor mas que pareça quase impossível. Se os sucessos são raros, é muito importante escolher almejar objetivos razoavelmente valiosos ou de maior impacto. Apesar da incerteza inerente neste tipo de doação, acredito que a questão “Quanto bem pode ser gerado com o melhor caso?” terá respostas bem diferentes para oportunidades de doação distintas.
Busque uma compreensão profunda das questões-chave, literaturas, organizações e pessoas em torno de uma causa, seja trabalhando muito seja estabelecendo um relacionamento de alta confiança com alguém que possa trabalhar. Se apoiamos projetos que parecem empolgantes e com alto impacto baseado em um entendimento superficial, corremos o risco de ser redundantes com outros financiadores. Se apoiamos projetos que parecem superficialmente empolgantes e de alto impacto, mas não estão sendo apoiados por outros financiadores, então corremos o risco de ser sistematicamente tendenciosos em direção a alguns projetos que outras instituições tiveram bons motivos para não apoiar. Por outro lado, geralmente visamos apoiar projetos com base na empolgação de pessoas confiáveis que estão em um nível “classe mundial” de serem bem informadas, bem conectadas e cheias de ideias, de maneiras relevantes.
Atingir isso é um desafio. Isso significa encontrar pessoas que estão (ou podem estar) o mais bem informadas possível sobre os assuntos com os quais nunca teremos tempo de nos envolver totalmente, e encontrar uma forma de desenvolver relações de alta confiança com elas. Como ocorre com muitos outros filantropos, nossa estrutura básica para isso é escolher áreas nas quais focar e contratar pessoal relacionado a essas áreas de foco. Em alguns casos, em vez de contratar alguém para se especializar em uma causa específica, tentamos garantir que temos um generalista que dedique muito tempo e reflita muito sobre uma área. De ambas as formas, nosso pessoal procura se tornar bem-relacionado e estabelecer relações próprias de alta confiança com as pessoas mais bem informadas na área.
Acredito que a recompensa de todo esse trabalho é a capacidade de identificar ideias que são empolgantes por motivos que exigem quantidades incomuns de reflexão e conhecimento para serem realmente valorizadas. Para mim, isso é uma possível receita para se posicionar e apoiar boas ideias antes que elas sejam amplamente reconhecidas como boas, e assim, alcançar um “acerto”.
Minimizar o número de pessoas que definem estratégias e tomam decisões. Quando é tomada uma decisão como um compromisso entre um grande número de pessoas com perspectivas muito diferentes, pode haver uma grande probabilidade dela ser uma decisão defensável e justa, mas parece muito improvável que seja uma decisão extraordinariamente alta. Acho que o último caso está mais associado a ter uma perspectiva distinta sobre um problema baseado em um raciocínio e contexto profundos que seria difícil de transmitir totalmente aos outros. Outra forma de colocar isso é que eu seria mais otimista sobre um mundo de indivíduos que perseguissem ideias que os entusiasmassem, no qual as melhores ideias ganhassem força à medida que mais trabalho fosse feito e mais valor fosse demonstrado, do que a respeito de um mundo de indivíduos que chega a um consenso de antemão sobre quais ideias seguir.
Formalmente, as recomendações de concessão atualmente exigem a aprovação de Cari Tuna e minha antes de seguirem em frente. Informalmente, nosso objetivo de longo prazo é transferir à equipe que sabe mais sobre um determinado caso, de modo que a estratégia, as prioridades e os subsídios para uma causa sejam amplamente determinados pela única pessoa que está mais informada sobre ela. Isso significa, por exemplo, que objetivamos que nosso trabalho na reforma do direito penal seja determinado por Chloe Cockburn, e nosso trabalho sobre o bem-estar de animais de fazenda seja determinado por Lewis Bollard. Conforme indicado acima, esperamos que a equipe busque uma grande contribuição de outras pessoas, principalmente de especialistas de áreas, mas fica a critério dela a forma como entenderá essa contribuição.
Alcançar esse objetivo significa construir e manter a confiança da equipe, o que, por sua vez, significa fazer muitas perguntas a ela, esperar que explique uma quantidade importante do seu raciocínio e discuta os principais desacordos. Mas nunca exigimos que a equipe explique todo o seu pensamento; em vez disso, tentamos detalhar os argumentos que nos parecem mais significativos e questionáveis. Ao longo do tempo, procuramos reduzir nosso nível de engajamento e escrutínio à medida que ganhamos confiança.
Espero futuramente poder escrever mais a respeito dessa abordagem básica.
Quando possível, apoie uma liderança forte sem restrições (ou com poucas restrições), em vez de apoiar pessoas/organizações comuns para realizar planos que nos atraem. A defesa desse princípio é uma extensão da defesa do princípio anterior e se encaixa na mesma abordagem básica sobre a qual espero escrever futuramente. Trata-se principalmente de transferir o poder de tomada de decisão para as pessoas que têm um contexto e uma compreensão mais profundos.
Entender os outros financiadores em um espaço, e hesitar em financiar coisas que pareçam adequadas para eles. Esse é um aspecto de “Apontar para uma compreensão mais profunda…” que parece valer a pena ser mencionado explicitamente. Quando financiamos algo que é conceitualmente adequado para outro financiador, há uma boa chance de que estejamos (a) avançando apenas um pouco mais rápido do que o outro financiador e, portanto, tendo relativamente pouco impacto; ou (b) financiando algo que outro financiador teve boas razões para se recusar a financiar. Ter um bom entendimento dos outros financiadores em certa área e, preferencialmente, ter um bom relacionamento com eles, parece ser muito importante.
Desconfie de opções de doações que parecem improváveis (pela heurística) de estarem sendo negligenciadas. Em grande parte, isso é uma extensão do princípio anterior. Quando parece que uma ideia combina muito bem com a sabedoria convencional ou o consenso de especialistas, ou atende a um interesse específico com bons recursos, isso levanta questões sobre por que ela ainda não captou o apoio de outros financiadores e se permanecerá subfinanciada por muito tempo.
Conclusão: A oportunidade de doação ideal, a partir da minha perspectiva, é mais ou menos assim: “Um membro confiável da equipe com profundo conhecimento da causa X está muito entusiasmado para apoiar — com pouca ou nenhuma restrição— o trabalho da pessoa Y, que tem uma perspectiva e abordagem incomuns e que poucos apreciam. O membro da equipe poderia facilmente imaginar esta abordagem recebendo um impacto enorme, mesmo se não parece provável que isso ocorra. Quando ouço uma ideia pela primeira vez, ela me parece surpreendente e talvez estranha, contra-intuitiva ou pouco atraente, mas quando questiono o membro da equipe sobre possíveis modos de falha, preocupações e lacunas aparentes no caso dessa ideia, parece que ele já está bem informado e ponderou bastante sobre as perguntas que eu faço.” Essa configuração básica parece maximizar as chances de apoiar um trabalho importante que outros não apoiariam e ter uma chance de mudar de ideia e obter um “acerto”.
4.Conciliar uma abordagem baseada em acertos com sermos abertos sobre o nosso trabalho
Um valor fundamental nosso é sermos abertos (transparentes) sobre o nosso trabalho. Alguns motivos para isso:
- Gostaríamos que outras pessoas pudessem tirar vantagem do que aprendemos, para ficarem mais bem informadas.
- Gostaríamos que outras pessoas pudessem entender, questionar e criticar nosso raciocínio.
- Gostaríamos que houvesse um diálogo público mais elaborado sobre como doar bem.
Existe uma tensão entre esses objetivos e o fato de que, conforme discutido acima, esperamos fazer muitas coisas que são difíceis de justificar de forma convincente para outras pessoas. Esperamos que nossos artigos não sejam muito exaustivos ou altamente persuasivos e, muitas vezes, deixem os leitores inseguros sobre se tomamos uma boa decisão.
Entretanto, pensamos que há espaço para atingir ambos os objetivos — estar aberto e ter uma abordagem “baseada em acertos” — em um grau significativo. Para determinada decisão, buscamos compartilhar nosso raciocínio de forma que o leitor possa entender:
- Os principais prós e contras que identificamos.
- As principais premissas no nosso ponto de vista.
- O processo que seguimos.
- Que tipo de coisa o leitor pode fazer a fim de chegar ao ponto de, com confiança, concordar ou discordar do nosso raciocínio, mesmo se el não estiver seguro sobre o que pensar, tendo por base apenas o artigo.
Alguns exemplos:
- Nosso artigo sobre o risco potencial da inteligência artificial avançada discute um tópico sobre o qual pensamos bastante, de modo que não podemos documentar exaustivamente nossos pontos de vista. A seção “histórico e processo” procura dar uma ideia sobre como chegamos nesse ponto e como alguém poderia fazer mais pesquisas para entender e avaliar nossa posição.
- Nosso trabalho sobre reforma do direito penal baseia-se nos pontos de vista que Chloe mantém com base em anos de conversas (muitas dessas notas não seriam viáveis de se compartilhar), relacionamentos e leitura de material relevante na área. Em vez de tentar documentar todo esse material fonte, fomos explícitos sobre o papel que Chloe está desempenhando e por que a escolhemos para ele.
Acreditamos que este tipo de abertura pode alcançar muito em termos dos objetivos acima, mesmo que nem sempre sejam exaustivos ou convincentes por si sós.
Em geral, esta discussão pode ajudar a esclarecer por que o Projeto Open Phianthropy destina-se principalmente a grandes filantropos — pessoas que têm tempo para se envolver profundamente com a questão de onde doar — em vez de doadores individuais. É claro que doadores individuais podem confiar em nós e nos apoiar mesmo quando nossos pontos de vista parecem incomuns e difíceis de justificar. Mas para aqueles que ainda não confiam em nós, nossos artigos (ao contrário dos artigos da GiveWell) nem sempre fornecerão motivos suficientes para acreditar em nossas palavras.
5.“Mentalidade baseada em acertos” versus “arrogância”
Conforme discutido acima, acredito que “doar com base em acertos” muitas vezes acarretará uma aparência superficial – e um risco real de – ter pontos de vista excessivamente confiantes com base em investigação e reflexão insuficientes. Uso a palavra “arrogância” como uma forma abreviada para essas últimas qualidades.
Entretanto, acho que existem diferenças importantes e observáveis entre as duas. Acho que uma “mentalidade baseada em acertos” pode ser uma justificativa razoável para alguns comportamentos comumente associados a arrogância — principalmente, colocar recursos significativos em uma ideia controversa e não apoiada por fortes evidências ou consenso de especialistas — mas não para outros comportamentos.
Algumas diferenças específicas que me parecem importantes:
Informar sobre a incerteza. Associo a arrogância a ter certeza de que se está certo, e se expressar da mesma forma. Acho arrogante quando as pessoas insinuam que suas causas ou projetos favoritos são claramente os melhores, e principalmente quando insinuam que o trabalho que está sendo feito por outras pessoas, em outras causas, não é importante. Uma mentalidade baseada em acertos, por outro lado, é consistente tanto com estar entusiasmado com uma ideia e não ter certeza sobre ela. Procuramos transmitir claramente nossas dúvidas e incertezas sobre nosso trabalho, e reconhecer que podemos estar fazendo algo errado, mesmo enquanto investimos recursos em nossas ideias.
Tentar estar bem informado. Associo a arrogância a tirar conclusões com base em informações limitadas. Acredito que uma “mentalidade baseada em acertos” bem executada envolve empenhar-se fortemente para alcançar um entendimento sólido do caso tanto a favor quanto contra a ideia de alguém. Pretendemos pensar seriamente sobre questões e objeções ao nosso trabalho, embora não possamos responder a todas de forma convincente para todos os públicos.
Respeitar aqueles que interagem conosco e evitar engano, coerção e outro comportamento que viole a ética do senso comum. No meu ponto de vista, a arrogância é muito danosa quando envolve o pensamento de que “os fins justificam os meios”. Acredito que muitos danos foram causados por pessoas que estavam tão convencidas das suas ideias heterodoxas (N.R.: no original, contrarian) que estavam até dispostas a violar a ética do senso comum por elas (nos piores casos, até mesmo com o uso da violência).
Como dito acima, prefiro viver em um mundo de pessoas que buscam ideias que os entusiasmam, em que as melhores ideias ganham força à medida que mais trabalho é feito e mais valor é demonstrado, do que em um mundo de pessoas que chegam a um consenso sobre quais ideias defender. Essa é uma justificativa para a abordagem baseada em acertos. Dito isso, também prefiro viver em um mundo em que as pessoas defendem suas próprias ideias ao mesmo tempo em que aderem a uma linha básica de bom comportamento e ética cotidiana do que em um mundo de pessoas que mentem umas para as outras, coagem umas às outras e interferem ativamente umas com as outras.
Nesse aspecto, considero importante nosso compromisso de sermos honestos em nossas comunicações. Isso quer dizer que não achamos que temos todas as respostas e não estamos interessados em ser manipuladores na defesa de nossos pontos de vista. Em vez disso, queremos que os outros decidam livremente, com base nos méritos, se e como querem nos ajudar na busca de nossa missão. Pretendemos, simultaneamente, defender ideias audaciosas e nos lembrar de quão fácil para nós é estarmos errados.
Notas:
1. Existe alguma possibilidade de haver um viés de sobrevivência, e uma questão de quantos projetos fracassaram para cada um desses sucessos. Entretanto, vejo que os exemplos acima não são retirados de um enorme espaço de possibilidades. (Todos os filantropos mencionados acima provavelmente — antes de suas doações — teriam feito listas bastante curtas dos filantropos mais proeminentes interessados em suas questões.)
2. Desde agosto de 2017, não escrevemos mais publicamente sobre relações pessoais com organizações parceiras. Este blog foi atualizado para mostrar esta mudança nesta prática.
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Publicada originalmente aqui.
Autor: Holden Karnofsky
Tradução: Satia Marini
Revisão: Fernando Moreno