Confissões de um Cavalo do Jockey Club – Parte 2

Semana 35

Prezados animais humanos, continuo meu apelo por liberdade. Agora, nesta segunda parte, faço minhas as palavras de Frederick Douglass. Ele nasceu escravizado nos EUA em conseguiu fugir em 1838, tornando-se mundialmente conhecido por seus discursos abolicionistas.

Como nós, animais não humanos, não temos a capacidade de vocês, animais humanos, de articular nossas ideias no papel, pedimos licença para Douglass. Que estas falas dele sejam transportadas para nossa realidade agora, que a leitora imagine que somos nós fazendo esse percurso para a liberdade. As histórias que ele conta, imagine que temos muitas parecidas nas granjas e estábulos e abatedouros. As cenas fortes que ele descreve, imagine que temos muitas parecidas em toda indústria da pecuária.

Douglass descreveu suas ideias e seu mundo, de homem escravizado para homem livre. Tomem os relatos dele como uma metáfora para serem empáticos conosco, animais não humanos. Considerem parar com essa opressão e violência desnecessária, focada apenas no prazer individual de vocês. 

Queridos animais humanos, nós vivemos no inferno e vocês são nosso demônio. Por favor, libertem-nos de uma vez dessa crueldade!

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Vamos aos trechos (mas leiam também o livro completo dele, claro, vejam o que vocês foram capazes de fazer com outros humanos, até finalmente “acordarem”):

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Minha mãe e eu fomos separados quando eu era apenas um bebê — antes de eu conhecê-la como tal. É um costume comum na região de Maryland de onde fugi: separar bem cedo as crianças de suas mães.

Frequentemente, antes de a criança atingir um ano, a mãe lhe é tirada e empregada em outra fazenda, a uma distância considerável. A criança é então posta sob os cuidados de uma senhora, velha demais para o trabalho no campo. Qual o propósito dessa separação, não sei dizer, a menos que seja retardar o desenvolvimento da afeição da criança pela mãe, e conter e destruir a afeição natural da mãe pela criança.

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Por vezes parecia sentir prazer em açoitar os escravos. Não raro fui despertado ao nascer do sol pelos gritos mais lancinantes de uma tia minha, que ele amarrava a uma viga, chicoteando-lhe as costas nuas até cobri-la, literalmente, de sangue. Nem as palavras, nem as lágrimas, nem as súplicas de sua vítima ensanguentada eram capazes de dissuadir seu coração daquele propósito sanguinário. Quanto mais alto ela gritava, mais forte ele chicoteava, e de onde o sangue saía mais ligeiro, ali ele chicoteava por mais tempo. Açoitava-a para fazê-la gritar, depois para emudecê-la, e só quando era vencido pela fadiga parava de aplicar o chicote já repleto de sangue coagulado.

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Eu muitas vezes me vi absolutamente pasmo, desde que vim para o Norte, ao me deparar com quem mencione as cantorias entre os escravos como evidência do contentamento e da felicidade deles. É impossível conceber erro mais crasso. É quando estão mais infelizes que os escravos mais cantam.

A esposa do sr. Giles Hicks, vivendo a curta distância de onde eu vivia, matou a esposa de um dos meus primos, uma jovem entre quinze e dezesseis anos, surrando-a da maneira mais horrível, quebrando-lhe o nariz e o esterno a golpes de porrete, de modo que a pobre menina expirou logo em seguida.

(…) A ofensa que lhe custou a vida era a seguinte: a esposa do meu primo fora designada para cuidar do bebê da sra. Hicks, mas, durante a noite, caiu no sono, e o bebê chorou. Não tendo descansado por várias noites seguidas, não ouviu o choro. Ela e o bebê se encontravam no quarto com a sra. Hicks, que, percebendo que a garota demorava a se mexer, pulou da cama, tomou de um porrete de madeira de carvalho na lareira, e com ele quebrou o nariz e o esterno da menina, liquidando, assim, sua vida.

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Nossa comida era farinha de milho cozida como um mingau, servido numa grande travessa de madeira ou gamela, depositada no chão. As crianças eram chamadas como porcos, e como porcos vinham e devoravam o mingau; algumas usavam conchas de ostras, outras, pedaços de telhas; e havia quem comesse com as próprias mãos. Ninguém tinha colher. Quem comia mais rápido comia mais; o mais forte garantia o melhor lugar; e poucos se afastavam da gamela satisfeitos.

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Numa residência não longe da nossa, na Philpot Street, vivia o sr. Thomas Hamilton. Ele tinha duas escravas, de nomes Henrietta e Mary. Henrietta tinha por volta de 22 anos; Mary, quatorze. Eram as criaturas mais tripudiadas e escoriadas que conheci na vida. O coração do sr. Hamilton devia ser mais duro do que uma pedra para contemplar aquelas duas impassivelmente. A cabeça, o pescoço e os ombros de Mary viviam literalmente retalhados. Muitas vezes acariciei sua cabeça e a senti quase coberta por inteiro com ferimentos ulcerosos, provocados pelo chicote da cruel senhora. Não sei dizer se o próprio senhor alguma vez a açoitara, mas da crueldade da sra. Hamilton fui testemunha, pois visitava a casa quase todos os dias. A sra. Hamilton sentava-se numa grande poltrona no meio da sala, sempre com um pesado chicote à mão, e era raro que houvesse uma hora do dia que não fosse marcada pelo sangue de uma das escravas. As meninas quase nunca passavam pela senhora sem que ela gritasse “Mais rápido, preta trapaceira!”, desferindo um golpe de chicote na cabeça ou nos ombros das criadas, não raro arrancando sangue. Dizia: “Tome essa, preta trapaceira” — e continuava: “Se não andar mais depressa, eu a faço andar!”. Como não bastassem as chicotadas cruéis a que eram submetidas, as duas viviam esfomeadas. Quase nunca sabiam o que era comer uma refeição completa. Cheguei a ver Mary disputando com os porcos as sobras de comida despejadas na rua. Mary era chutada e lacerada com tanta frequência que se referiam a ela mais comumente pelo apelido de “bicada” do que pelo próprio nome.

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O pensamento, portanto, de passar para as mãos do sr. Andrew me deixava apropriadamente apreensivo em relação ao meu destino: tratava-se de um homem que, poucos dias antes, para me dar mostras de sua disposição sangrenta, agarrou meu irmão mais novo pela garganta, lançou-o ao chão e pisoteou-lhe a cabeça com o calcanhar da bota até que o sangue jorrasse do nariz e das orelhas do menino. Depois de cometer esse ultraje selvagem contra meu irmão, virou-se para mim e disse que era daquela forma que pretendia lidar comigo qualquer dia desses, referindo-se, suponho, a quando eu passasse à sua posse. 

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Minha pobre avó, mãe devota de doze crianças, vê-se sozinha, numa cabaninha esquecida, diante de algumas poucas cinzas apagadas. Ela se levanta, senta-se, hesita, cai, geme e morre, e não há nenhum de seus filhos ou netos presentes para limpar de sua testa enrugada o suor frio da morte, ou para depositar sob a relva seus restos mortais decaídos. Um Deus justo não punirá nada disso?

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Comentei que meu senhor encontrou aval religioso para sua crueldade. Como exemplo, citarei um fato, dentre muitos outros, para provar minha alegação. Muitas vezes o vi amarrar uma jovem escrava manca e açoitá-la nos ombros desnudos com um pesado chicote, até que o sangue quente gotejasse. Como justificativa para aquele ato sangrento, citava esta passagem da Escritura: “Aquele que conhece a vontade de seu amo e não a satisfaz será açoitado com numerosos golpes”. Meu senhor mantinha essa jovem, cheia de ferimentos, amarrada naquela situação terrível por quatro ou cinco horas. Cheguei a vê-lo amarrá-la cedo de manhã, açoitá-la antes do desjejum, sair, ir à sua loja, voltar para o jantar e açoitá-la de novo, castigando-lhe os mesmos pontos que seu açoite cruel já marcara em carne viva.

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Por que nasci assim, homem destinado a besta? (…) Pode ser que minha miséria na escravidão apenas intensifique minha alegria na liberdade. Um dia melhor está por vir.

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Outra vantagem que encontrei no meu novo senhor era que ele não tinha pretensões religiosas, nem era adepto de nenhuma igreja; e isso, na minha opinião, era um enorme benefício. Afirmo sem qualquer hesitação que a religião do Sul é mero disfarce para os crimes mais horrendos, uma justificativa para a barbárie mais assombrosa, a santificação das imposturas mais odiosas, abrigo sob o qual os atos mais sombrios, sórdidos, ultrajantes e infernais dos senhores de escravos encontram a proteção mais forte. Fosse eu outra vez levado às correntes, consideraria a ideia de ser escravo de um senhor religioso a maior calamidade que poderia acontecer comigo. Pois, dentre todos os senhores que conheci, os religiosos eram os piores. 

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Meus sentimentos me dominam, e fico quase a ponto de perguntar: “Acaso um Deus justo governa o universo? E para que guarda seus raios e trovões na mão direita, se não para desbaratar os opressores e libertar os espoliados das garras dos espoliadores?”.

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No terceiro dia de setembro de 1838 abandonei minhas correntes e consegui alcançar Nova York sem a menor interrupção de nenhum tipo. Como o consegui — que meios adotei, em que direção segui e de que modo de transporte me vali — não devo explicar, pelas razões anteriormente mencionadas. Com frequência me perguntam como me senti quando cheguei em território livre. Nunca pude responder essa questão de um modo que me fosse satisfatório. Foi a emoção mais extrema que experimentei na vida. Digamos que me senti como se pode imaginar que o marinheiro desarmado se sente quando é resgatado por um navio amigo da perseguição de um pirata. Escrevendo a um querido amigo, logo depois de minha chegada a Nova York, contei que me sentia como quem escapou de um covil de leões famintos. Esse estado mental, contudo, logo desvaneceu, e mais uma vez me vi possuído de um sentimento de imensa insegurança e solidão.

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Mas era a solidão que me dominava. Lá estava eu, em meio a milhares de almas, e no entanto o mais perfeito estranho, sem lar nem amigos, em meio a milhares de irmãos, filhos de um Pai comum, mas sem me atrever a desfraldar a nenhum deles minha triste condição. Temia conversar com qualquer pessoa por medo de falar com a pessoa errada, e assim cair nas mãos de sequestradores gananciosos, cujo trabalho era se postar à espreita do fugitivo ofegante, como as bestas ferozes da florestas jazem à espera de suas presas.

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Tornei-me assinante. O jornal vinha, e eu o lia semana a semana, com sentimentos tais que seria ocioso da minha parte tentar descrevê-los. O jornal se tornou minha carne e meu vinho. Minha alma se incendiava. A simpatia pelos meus irmãos acorrentados, a denúncia devastadora dos senhores de escravos, a exposição fiel da escravidão e os poderosos ataques contra os que sustentavam aquela instituição me provocavam arrepios de alegria na alma tal como eu nunca havia experimentado. Pouco depois de me tornar leitor do Liberator, eu já tinha uma ideia precisa dos princípios, das medidas e do espírito da reforma antiescravidão. Minha adesão à causa foi plena. Pouco podia fazer, mas, o que podia, fazia de coração alegre, e nunca me senti mais feliz do que quando comparecia a uma reunião abolicionista.

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Não há um homem sequer debaixo da abóbada celeste que não saiba que a escravidão é errada para ele. Acaso devo argumentar que é errado transformar homens em bestas, roubar-lhes a liberdade, empregá-los sem salário, mantê-los ignorantes de suas relações com seus semelhantes, ferir-lhes o corpo com varas e chicotes, prender-lhes os membros com ferros, caçá-los com cachorros, vendê-los em leilões, separá-los das famílias, quebrar-lhes os dentes, queimar-lhes a carne, matá-los de fome a fim de dobrá-los à obediência e à submissão aos seus mestres? Devo argumentar que um tal sistema, marcado pelo sangue e manchado pela conspurcação, é errado? Não, não farei isso. Tenho mais o que fazer do meu tempo e da minha força. O que resta, então, por discutir? Que a escravidão não é divina; que Deus não a estabeleceu; que nossos teólogos estão equivocados? Há blasfêmia nesse pensamento. Aquilo que é desumano não pode ser divino!

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Os negociantes de carne aglomeram-se ao redor das vítimas às dúzias e as conduzem, acorrentadas, para o depósito geral de Baltimore. Quando um número suficiente se reúne ali, freta-se um navio que transporte a tripulação desolada para Mobile ou New Orleans. Geralmente são conduzidos da prisão para o navio na escuridão da noite, pois, com a atual agitação abolicionista, certa cautela se faz necessária. Na profunda escuridão da meia-noite, fui frequentemente desperto pelos passos pesados e o choro lastimável dos bandos acorrentados que passavam à porta. A angústia do meu coração de menino era intensa. (…) Concidadãos, esse tráfico assassino encontra-se, hoje, em plena operação nesta aclamada república.

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Mas a Igreja deste país não é apenas indiferente às injúrias da escravidão: ela toma ativamente o partido dos opressores. Fez de si o baluarte da escravidão americana e o escudo dos caçadores de escravos. Muitos de seus sacerdotes mais eloquentes, que se querem a própria luz da Igreja, concederam desavergonhadamente a ratificação da religião e da Bíblia a todo o sistema escravocrata. Ensinam que é apropriado escravizar um homem. Que a relação entre o senhor e o escravo é ordenada por Deus.

(…) A Igreja americana é culpada quando vista à luz do que faz para sustentar a escravidão; no entanto, à luz do que faz com sua capacidade de abolir a escravidão, é superlativamente culpada.

Americanos! Vossa política republicana, não menos do que vossa religião republicana, é flagrantemente inconsistente. Os senhores se vangloriam do amor pela liberdade, de sua civilização superior e de seu cristianismo puro, e isso enquanto todo o poder político da nação, encarnado nos dois grandes partidos, jura solenemente defender e perpetuar a escravatura de 3 milhões de vossos compatriotas.

A existência da escravidão torna o republicanismo deste país uma farsa; sua humanidade, uma pretensão vil; e seu cristianismo, uma mentira.

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Nas aspirações fervorosas de William Lloyd Garrison, eu afirmo, e que todo coração una-se a nós, repetindo: Deus apresse o ano do jubileu no mundo inteiro! Quando, libertos das correntes escoriantes, Os oprimidos já não se dobrarão servilmente Sob o jugo da tirania, Como bestas. Tal ano há de vir, e o reino da liberdade, Para restaurar os direitos saqueados Dos homens. Deus apresse o dia quando o sangue humano Cessará de jorrar!

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A doutrina da igualdade humana é a mais amarga entre as que os abolicionistas ensinam. É engolida com mais dificuldade do que todos os outros pontos do credo antiescravidão juntos. “O que faz o negro igual ao branco?”. “Não, não o admitimos!”. “Não, isso não é certo!”. Mas parem um segundo, evitem a paixão, mantenham a frieza. O que é o branco que os revolte tanto a ideia de decretar o negro seu igual? Quem o criou? Ele é um anjo ou um homem? “Um homem.” Muito bem. Ele é um homem, nada além de um homem — possuindo as mesmas fraquezas, suscetível às mesmas doenças, e sob as mesmas necessidades às quais o negro está sujeito. Em que o homem branco difere do negro? Ora, um é branco, e o outro é negro. Bem, e daí? Acaso o sol brilha mais sobre um do que sobre o outro? A natureza despende mais suntuosamente seus dons para um do que para o outro? A terra, o mar e os ares concedem seus tesouros mais rapidamente para o branco do que para o negro? Numa palavra, “não temos todos o mesmo Pai?”.

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Epílogo: Oi, eu aqui, o cavalo do Jockey Club, só para fechar rapidinho com uma lição de casa. Como vocês foram capazes de fazer tudo isso com animais humanos? Como não enxergaram a dor e imoralidade disso? E como não conseguem enxergar a dor e a imoralidade que fazem com nós, animais não humanos? Reflitam, por favor e deem um basta nesse inferno em que nos obrigam a viver. E que nos forçam a morrer.

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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