Confissões de um Cavalo do Jockey Club – Parte 1

Semana 34

Prezados animais humanos, venho por meio desta carta confessar que detesto correr. Confesso que até finjo, recebo carinho e mimos, mas odeio correr. Não sou esportista, não gosto de viajar, não sonho com Olimpíadas, nem sei o que é isso, fora desconfiar ser uma viagem horrível e barulhos e cheiros estranhos.

Assim, venho por meio desta pedir que vocês, tão importantes e cultos, usem de sua inteligência para entender que não quero correr com vocês nas minhas costas. Sei que meus irmãos cavalos compartilham da mesma opinião. Não queremos chicotadas violentas em nossos traseiros. Não queremos seus berros e xingamentos em nossas orelhas. Não queremos nossas bocas machucadas por freios e cabrestos movimentados para os lados que vocês decidem. 

Nós queremos decidir nosso destino, soltem-nos! Parem de nos reproduzir e nos encarcerar a vida inteira para servirmos ao prazer de vocês. Um esporte só existe quando todos os esportistas querem participar. Nós, cavalos, não queremos!

Prezados animais humanos, não queremos ser tratados como objetos. Somos indivíduos e, como vocês, também sonhamos. Sonhamos com a liberdade. Vocês já fizeram coisas parecidas com outros humanos no passado, lembram? As mesmas justificativas que usam conosco: “ah, é a lei natural…”, “ah, é tão divertido…, “ah, é para o desenvolvimento econômico, olha quanta riqueza a atividade gera…”, “ah, são seres inferiores, até gostam disso…”, “ah, nasceram pra isso…”

Prezados animais humanos, há dois séculos, vocês começaram a usar de seus neurônios para entender que nada disso justificava a escravização de outros seres humanos. Ótimo, agora deem o passo seguinte. Usem da mesma inteligência para nos libertar. Não nascemos para sermos acorrentados e servirmos ao conforto e diversão e desenvolvimento econômico de vocês. Somos indivíduos! Temos nossos próprios desejos e sonhos e estilos de vida. Nenhum deles combina com ser acorrentado e enclausurado e esquartejado por vocês, como alguns dos meus primos são. Eu vivo na área nobre, eu não receberei uma faca no pescoço nem levarei uma martelada na cabeça, não serei comido e digerido por vocês. Sou tratado diferente. 

Mas, nem por isso, estou feliz. Nem por isso concordo em ser obrigado a correr sem sentido para dar showzinho. Nem por isso concordo em vocês me chicotearem, me xingarem, fingirem que me amam, mas nunca me darem a liberdade. Eu nasci pra viver livre no campo, não pra esse esporte absurdo. Nenhum dos outros cavalos aqui do Jockey nasceu pra isso, perguntem a eles! 

Não adianta nos darem carinho, perfumarem nossas crinas, nos enfeitarem, darem nomes bonitos… Nós não queremos correr! Saiam das nossas costas! Vão disputar corridas entre vocês, montem uns nos ombros dos outros se gostam tanto desse esporte. Eu não gosto, eu nunca gostei. 

Eu me demito! E aí, estão prontos para me dar a liberdade? 

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Não tenho a capacidade intelectual dos animais humanos, mas sei reconhecer que tenho o mesmo direito de lutar para ser livre. Faço minhas as palavras de dois grandes abolicionistas de dois séculos atrás. 

Tudo que eles falaram sobre libertar animais humanos está corretíssimo e que bom que vocês passaram leis proibindo a escravidão. Sou menos inteligente que vocês, mas tenho o direito de fazer o mesmo pedido: proíbam as corridas de cavalo! Queremos a liberdade! Aproveitem e façam leis que proíbam todas as outras violências com meus primos animais que são esquartejados e comidos, ou que viram casacos de pele, ou que são sequestrados de suas casas para ficarem presos em zoológicos, ou que viram bolsas ou sofás ou cosméticos.

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Os trechos do primeiro livro (“O Abolicionismo”) que selecionei são de um deputado fundamental na luta pela abolição. Joaquim Nabuco publicou este livro em 1883 (a Lei Áurea viria 5 anos depois) e é uma leitura essencial, pois mostra um animal humano inconformado com o absurdo da Escravidão, mostra um animal humano no calor das discussões com outros animais humanos que eram contra. 

É esse momento que vejo estarmos no mundo hoje. Uma minoria de vocês (uns 3%) tem se dedicado agora a dar um passo à frente para o fim da violência no mundo, têm lutado para nos libertar, dessa vez nós, animais não-humanos. 

Somos menos sofisticados intelectualmente que vocês animais humanos, mas sentimos tanta dor quanto vocês. Então, faço minhas as palavras de Joaquim Nabuco. Leiam estes trechos pensando que sou eu, um cavalo encarcerado no Jockey Club, lutando pela liberdade de todos os animais acorrentados, presos, esquartejados pelo prazer de vocês, animais humanos. 

Aliás, todos os exemplos citados abaixo se referem mais aos meus irmãos (vacas, porcos, galinhas), com vidas mais tenebrosas e condenadas a abatedouros e frigoríficos, do que a mim, que tenho o privilégio de viver como bobo da corte perfumado de uma elite insensível ao meu sonho de liberdade.

A seguir, os trechos (mas leiam o livro completo um dia, façam o favor, né):

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Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional – em formação, é certo – que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte.

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Quanto a mim, julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade, direito e justiça, que estas páginas contêm, derem uma boa colheita no solo ainda virgem da nova geração; e se este livro concorrer, unindo em uma só legião os abolicionistas brasileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em vejamos a independência completada pela abolição, e o Brasil elevado à dignidade de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana, perante a América e o mundo (Joaquim Nabuco Londres, 8 de abril de 1863)

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A opinião, em 1845, julgava legítima e honesta a compra de africanos, transportados traiçoeiramente da África e introduzidos por contrabando no Brasil. A opinião, em 1875, condenava as transações dos traficantes, mas julgava legítimas e honestas a matrícula depois de 30 anos de cativeiro ilegal das vítimas do tráfico. O abolicionismo é a opinião que deve substituir, por sua vez, esta última, e para a qual todas as transações de domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de crueldade.

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Em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso, pregado do púlpito, sustentando com fervor pelas diferentes igrejas e comunhões religiosas. Entre nós, o movimento abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja do Estado; pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular desmoralizou inteiramente o sentimento religiosos de senhores e escravos. No sacerdote, estes não viam senão um homem que os podia comprar, e aqueles a última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção, pelo nosso clero, do posto que o Evangelho lhe marcou foi a mais vergonhosa possível: ninguém o viu tomar a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas. A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação.

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A propaganda abolicionista é dirigida contra uma instituição e não contra pessoas. Não atacamos os proprietários como indivíduos, atacamos o domínio que exercem e o estado de atraso em que a instituição que representam mantém o país todo.

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Sir Walter Scott: “Não acordeis o escravo que dorme, ele sonha talvez que é livre”.

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O que eu digo porém é que se Dom Pedro II, desde que subiu ao trono, tivesse como Norte invariável do seu reinado o realizar a abolição como seu pai realizou a Independência, sem exercer mais poder pessoal do que exerceu, por exemplo, para levar a guerra do Paraguai até a destruição total do governo de Lopez, a escravidão já teria a esta hora desaparecido do Brasil. É verdade que se não fosse o imperador, os piores traficantes de escravos teriam sido feitos condes e marqueses do Império, e que Sua Majestade sempre mostrou repugnância pelo tráfico, e interesse pelo trabalho livre; mas comparado à soma de poder que ele exerce ou possui, o que se tem feito em favor dos escravos no seu reinado já de quarenta e três anos, é muito pouco. Basta dizer que ainda hoje a capital do Império é um mercado de escravos!

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A história não oferece no seu longo decurso um crime geral que, pela perversidade, horror e infinidade dos crimes particulares que o compõem, pela sua duração, pelos seus motivos sórdidos, pela desumanidade do seu sistema complexo de medidas, pelos proventos dele tirados, pelo número das suas vítimas, e por todas as suas consequências, possa de longe ser comparado à colonização africana na América.

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Ouvia este cálculo: “Compra-se um negro por 300$000: colhe no ano 100 arrobas de café que produzem líquido pelo menos o seu custo; daí em diante tudo é lucro. Não vale a pena aturar as crias que só depois de dezesseis anos darão igual serviço”. E em consequência as negras pejadas e as que amamentavam não eram dispensadas da enxada: duras fadigas impediram em umas o regular desenvolvimento do feto, em quase todas geravam o desmazelo pelo tratamento dos filhos e daí as doenças e morte às pobres crianças. Quantos cresciam?

Não há estatísticas que o digam, mas, se dos expostos da Corte só vingavam 9 a 10%, como então provou no Senado o visconde de Abaeté, dos nascidos na escravidão não escapavam certamente mais de 5%.

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“Bárbara na origem; bárbara na lei; bárbara em todas as suas pretensões, bárbara nos instrumentos de que se serve; bárbara em suas consequências; bárbara de espírito; bárbara onde quer que se mostre; ao passo que cria bárbaros e desenvolve em toda a parte, tanto no indivíduo como na sociedade a que ele pertence os elementos essenciais dos bárbaros”. Charles Sumner

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A escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha ao que se obrigou certo número de deveres definido para com o locatário. É a posse, o domínio, o sequestro de um homem, corpo, inteligência, forças, movimentos, atividades – e só acaba com a morte. Como se há de definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou que este não pode contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. Se quiser ter o escravo fechado perpetuamente dentro de casa, pode fazê-lo; se, tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode fazê-lo.

Imaginem-se todas as mais extraordinárias perseguições que um homem pode exercer contra outro, sem o matar, sem separá-lo por venda de sua mulher e filhos menores de quinze anos – e ter-se-á o que legalmente é a escravidão ente nós.

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O pior da escravidão não é todavia os seus grandes abusos e cóleras, nem as suas vinditas terríveis; não é mesmo a morte do escravo: é sim a pressão diária que ela exerce sobre este; a ansiedade de cada hora a respeito de si e dos seus; a dependência em que está da boa vontade do senhor; a espionagem e a traição que o cercam por toda a parte, e o fazem viver eternamente fechado numa prisão de Dionísio, cujas paredes repetem cada palavra, cada segredo que ele conta a outrem, ainda mais, cada pensamento que a sua expressão somente denuncia.

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Dom Pedro II será julgado pela História como o principal responsável pelo seu longo reinado; tendo sido o seu próprio valido durante quarenta e três anos, ele nunca admitiu presidentes do Conselho superiores à sua influência e, de fato, nunca deixou o leme (com relação a certos homens que ocuparam aquela posição, foi talvez melhor para eles mesmos, o serem objetos desse liberum veto). Não é assim, como soberano constitucional, que o futuro há de considerar o imperador, mas como estadista; ele é um Luís Felipe, e não uma rainha Vitória – e ao estadista hão de ser tomadas estreitas contas da existência da escravidão, ilegal e criminosa, depois de um reinado de quase meio século. O Brasil despendeu mais de seiscentos mil contos em uma guerra politicamente desastrosa, e só tem despendido, até hoje, nove mil contos em emancipar os seus escravos: tem um orçamento seis vezes apenas menor do que a Inglaterra, e desse orçamento menos de um por cento é empregado em promover a emancipação.

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Dar dez, quinze, vinte anos ao agricultor para preparar-se para o trabalho livre, isto é, condená-lo à previsão com tanta antecedência, encarregá-lo de elaborar uma mudança, é desconhecer a tendência nacional de deixar para o dia seguinte o que se deve fazer na véspera. Não é prolongando os dias da escravidão que se há de modificar essa aversão à previdência; mas sim destruindo-a, isto é, criando a necessidade, que é o verdadeiro molde do caráter.

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Que interesse ou compaixão podem inspirar ao mundo dez milhões de homens que confessam que, em faltando-lhes o trabalho forçado e gratuito de poucos centenas de milhares de escravos agrícolas, entre eles velhos, mulheres e crianças, se deixarão morrer de fome no mais belo, rico e fértil território que até hoje nação alguma possuiu?

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A opinião pública, tal qual está se formando, tem influência e ação sobre o governo. Ele representa o país perante o mundo, concentra em suas mãos a direção de um vasto todo político, que estaria pronto para receber sem abalo a notícia da emancipação, se não fossem os distritos de café nas províncias de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, e assim é sempre impedido pela consciência nacional a afastar-se cada vez mais da órbita que a escravidão lhe traçou.

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Se não existisse a pressão abolicionista, todavia ele seria ainda mais demorado. O nosso esforço consiste, pois, em estimular a opinião, em apelar para a ação que deve exercer, entre todas as classes, a crença de que a escravidão não avilta somente o nosso país: arruína-o materialmente. O agente está aí, é conhecido, é o Poder. O meio de produzi-lo é, também, conhecido: é a opinião pública. O que resta é inspirar a esta energia precisa, tirá-la do torpor que a inutiliza, mostrar-lhe como a inércia prolongada é o suicídio.

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O argumento dos proprietários de escravos é, com efeito, este: O meu escravo vale um conto de réis, empregado nele de boa fé, ou possuído legalmente, pelo princípio da acessão do fruto. Se tendes um conto de réis para dar-me por ele, tendes o direito de libertá-lo. Mas se não tendes essa quantia ele continuará a ser meu escravo. Eu admito este regulamento o qual significa isto: desde que uma geração consentiu ou tolerou um crime qualquer, seja a pirataria, seja a escravidão, outra geração não pode suprimir esse crime, sem indenizar os que cessarem de ganhar por ele; isto é, enquanto não tiver o capital que esse crime representa, não poderá, por mais que a sua consciência se revolte e ela queira viver honestamente, desprender-se da responsabilidade de cobri-lo com a sua bandeira e de prestar-lhe o auxílio das suas tropas, em caso de necessidade. À vista dessa teoria nenhum país pode subir um degrau na escada da civilização e da consciência moral se não tiver com que desapropriar a sua imoralidade e o seu atraso.

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Se o Brasil só pudesse viver pela escravidão, seria melhor que ele não existisse;

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O nosso país foi visitado e estudado por homens de ciência. O maior de todos eles, Charles Darwin (mais de uma vez tenho feito uso desse exemplo), não achou outras palavras com que se despedir de uma terra cuja admirável natureza devera ter exercido a maior atração possível sobre o seu espírito criador, senão estas: “No dia 19 de agosto deixamos por fim as praias do Brasil. Graças a Deus, nunca mais hei de visitar um país de escravos”

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Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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