No vídeo (com legendas em português) Matthieu Ricard fala sobre “altruísmo”. Altruísmo como objeto de quem deseja impactar o mundo positivamente. Qual a relevância do altruísmo afinal?
Ricard começa falando sobre o impacto ambiental humano, como ele é indicativo de que atingimos o que gostaria de identificar como “dissociação”. Dissociação entre gerações, entre nós e as gerações futuras no caso de nosso impacto ambiental, mas também uma dissociação entre interesses econômicos (necessários para que haja bem estar e sigamos progredindo) e receios ambientais como explica. Certo descaso com gerações futuras ,que parecem tão distantes e abstratas que mal se consegue pensar nelas, isto demonstraria uma dissociação entre gerações, um “contrato” entre gerações estaria fragilizado.
Como o altruísmo poderia ajudar numa conciliação? Para demonstrar o possível papel do altruísmo, Ricard então passa a mostrar como somos de fato mais propensos ao altruísmo que ao egoísmo, esta seria uma tendência natural (conforme vemos também neste post). Não seríamos limitados a demonstrar empatia somente a aqueles com quem interagimos diretamente, somos capazes de expandir nosso potencial empático, nosso potencial altruísta (em outro momento comentamos sobre o contraponto a nossa empatia na força da identidade, e como podemos, e devemos expandir nossos “círculos de empatia” para além de identidades. Estes posts são bons exemplos: este sobre o extremismos, seus perigos e potencial de sedução; e este post sobre o identitarismo).
O altruísmo é capaz de auxiliar na promoção de associação? Ainda que simbolicamente? Podemos fortalecer esse contrato entre gerações? Quão dissociados de fato estaríamos, tendo em vista que nossas sociedades estão cada vez mais interligadas, e seguimos progredindo em diversas aspectos, como na redução da miséria? Não podemos nos deixar levar, e crer que o mundo está prestes a regredir a um estado tribal, de divisão intensa entre pequenos grupos. Mas a medida que avançamos em direção a sociedades cada vez mais interligadas e desenvolvidas, sempre parece haver certa resistência tribalista, ou identitária. E é aqui que o palestrante parece querer situar sua fala. Somos compassivos, e temos evoluído (como sociedades) radicalmente nesse sentido nos últimos séculos, e mesmo nas últimas décadas. Mas ainda podemos melhorar, e tomarmos parte nesse avanço, mesmo enquanto indivíduos.
Uma questão icônica que podemos e precisamos avançar é exatamente nossa relação com futuras gerações. Esta é mais que uma questão social, é uma questão de relacionamento entre gerações (e no caso específico do impacto ambiental, mesmo relacionamento entre espécies diferentes). Então, como o altruísmo tão comumente entendido como um sentimento, como objeto subjetivo, teria qualquer papel aqui? Pensar num espaço para o altruísmo dentro de uma ação ampla como a preocupação de uma sociedade com sua sucessão pode parecer ingênuo, ou mesmo moralista, já que poderia parecer que o peso da responsabilidade de todo o futuro está em cada decisão consciente do indivíduo.
Aqui precisamos lembrar ao leitor que uma separação bem delimitada entre o indivíduo e a sociedade, ou entre o indivíduo e grupo(s) de pertença é historicamente localizável. A necessidade de clareza dessa separação na maior parte de nosso tempo neste planeta não foi forte enquanto fazíamos parte de pequenos grupos. Mas isto foi mudando, a medida que pequenos grupos formaram clãs, e clãs formavam povos e identidades, e essas identidades se converteram em nações, e nações passaram a conviver cada vez mais interligadas, e pensar o mundo para além de nossas fronteiras se tornou cotidiano. A distância entre o indivíduo e seu grupo de pertença aumentou, de tal modo que pareciam totalmente separados, mesmo inconciliáveis.
Esta separação (que ainda é real) nos fez pensar em certos momentos que a vida privada e a vida pública estavam dissociadas de tal modo, que a vida privada se encontrava em paralelo a vida pública. Apesar da separação entre o privado e o público ser não só real, como necessária, com as sociedades cada vez mais interligadas fomos percebendo que o que se faz em esfera privada acaba por interferir sim na esfera pública, no mundo para além de nossas fronteiras. Fato que nos fez repensar o peso ético de nossas ações, não somente como entes públicos, mas também como entes privados. Chegamos a falar um pouco sobre isso anteriormente (aqui), inclusive trazendo o conceito de de “Subpolítica” de Ulrich Beck. Nossas vidas modernas parecem ter nos colocado numa armadilha ética sobre nossas ações individuais, porém preferimos enxergar nossa situação atual, com novos desafios práticos e éticos como uma oportunidade, mais que uma armadilha.
Também devemos lembrar que o conceito de “altruísmo” também teve um início na história, começando a partir de formulações de Comte sobre perigos e possibilidades da sociedade industrial. Uma teoria do altruísmo deveria guiar moralmente a sociedade moderna, como a religião havia guiado outras sociedades no passado. Um temor do individualismo, de seu potencial de dissociação, de “anomia” parecia ser o motor para um altruísmo em oposição a um egoísmo que poderia explodir a qualquer momento. As teorias de Comte parecem datadas, e não é a elas que nos referimos numa defesa do altruísmo, mas ainda nos parece interessante que o altruísmo fora pensado numa teoria moral de preservação social, tanto ou mais que um modo de conduzir a própria vida privada.
O altruísmo que defendemos está ligado a essa oportunidade que falamos acima, e não a um receio de que a sociedade irá se perder em crises de individualismo. Sendo esta oportunidade uma sociedade onde o indivíduo tem papel no mundo para além da esfera privada.
Nossa empatia nos é natural e não forçada goela abaixo, a questão é para quem e como direcionamos nossa empatia, se o fazemos para reforçar identidades, se o fazemos do modo mais eficiente para evitar sofrimento e levar a um bem-estar geral maior. Temos responsabilidades com o outro, nossa existência é em referência ao outro, e não exclusivamente a nós mesmos. Estando esse outro a 500 metros, conhecido, com quem compartilhamos histórias e sentimentos. Ou estando a 500 km, desconhecido, com histórias que nos parecem estranhas, e com afeto direcionado a rostos que não reconhecemos. Uma moral direcionada somente aqueles com quem interagimos diretamente já não é o suficiente, já mudamos muito desde o tempo em que isto parecia bastar, e parece que mudaremos mais (pelo menos é como temos vistos as mudanças nos valores sociais mais recentes, conforme afirmamos aqui, e também neste post)
Nosso mundo cresceu e tornou fronteiras porosas, mas também num primeiro momento distanciou o indivíduo desse mundo além de sua esfera privada, e de suas interações no presente. Mas hoje este indivíduo se depara com o mundo novamente, somos capazes de impactar esse mundo,e não falamos aqui de “mudar totalmente o mundo”, mas de beneficiar o máximo possível aqueles que vivem nesse mundo. Assumir uma postura ativa nesse mundo, mas sem se deixar levar por moralismos ou objetivos irreais, essa é nossa oportunidade de exercer altruísmo. Podemos nos conectar com estes outros distantes no tempo e no espaço como pessoas de nosso interesse ético, podemos incluí-los como parte de nosso “horizonte de altruísmo”. E ao fazê-lo podemos nos guiar não só por nosso desejo empático de fazer o bem, mas também por ferramentas pra medirmos o quanto podemos de fato impactar positivamente, assim podendo estabelecer metas claras, e visar meios objetivos de atingi-las, fazendo de nosso altruísmo eficaz.
Autor: Caio Freire