Churrascaria.
Sábado ensolarado.
Peço caipirinha e carne sangrando enquanto leio sobre uma tragédia na Espanha. Durante uma tourada, o touro chifrou o peito de um senhor e o matou na frente de centenas de pessoas.
Minha carne sangrando chega. É ele, o touro, completamente coberto de lanças fincadas pelo corpo, seu sangue escorre pelo chão, suas patas deslizam na viscosidade.
- Que triste, né?, me pergunta o touro.
- Trágico mesmo… Por que você matou o senhorzinho?
- Por que não mataria?
Fico sem palavras, mas sou um ser humano, sou racional, tenho minha cultura para defender. Explico que a tourada é uma tradição milenar da sociedade. Um esporte. Uma arte!
- E existe esporte em que um dos participantes é forçado a participar?
- Hum…
- Existe arte com essa poça de sangue toda aqui no chão?
- …
O bicho aponta para a TV da churrascaria, que mostra imagens de outra festa cultural na Espanha. Por acaso, é dia do “Toro de Jubilo”, celebrado desde o Séc. XVI: um touro se debate amordaçado, segurado por diversas pessoas, está amarrado, se desespera quando colocam fogo em seu chifre. Sim, a festa se resume em dar risadas ao soltá-lo e vê-lo se debater com o chifre em chamas.
Bato os punhos na mesa, meu adversário está mudando de assunto, parto para a ofensiva.
- Você matou um inocente, seu assassino!
- Ele iria me matar também. Por que não o chama de assassino?
- A vítima era uma pessoa honesta, tinha família, estão todos tristes.
- Eu também sou honesto. Tenho família.
- Você não é pessoa, é um animal, não tem inteligência. Não tem cultura.
- Já leu Svevo?
- …
- Ele fala que “a imoralidade preconizada é mais recriminável que a ação imoral. Pode-se chegar ao assassinato por ódio ou por amor; mas à instigação do assassinato só se chega por crueldade”.
- Você leu Svevo?
- Como ele diz, matei por ódio, matei por legítima defesa. Mas seria morto por crueldade. Vocês instigam o assassinato de touros com esse esporte-cultura-arte. Por essa definição, são mais imorais que eu.
A poça de sangue já alaga metade da churrascaria. Dois garçons escorregam espatifando caipirinhas pelo chão. Eu tento me concentrar na minha carne sangrando. Ainda viva. Bastante viva, enquanto morre.
- Eu só vim comer um churrasco, nem devia ter lido essa notícia.
- Churrasco também é imoral e cruel.
- Ah, lá vem o papinho militante, vai dizer que…
- Vocês humanos matam 800 mil bois, 1,6 milhões de ovelhas, 4 milhões de porcos, 200 milhões de frangos e 300 milhões de peixes por dia.
- Vai dizer que é imoral isso agora? Nós precisamos nos alimentar!
- Se toda nutrição que precisam está nas plantas, por que ainda matam animais para comer?
- Precisa ser assim.
- Precisa continuar sendo? Voltaire dizia que “é proibido matar, todos os assassinos devem ser punidos, a menos que eles matem grandes números e ao som de trompetes”.
- Você leu Voltaire? Me empresta?
- Não é proibido todo esse assassinato só porque são 800 mil bois por dia? E ao som de trompetes? Para nós, animais, vocês são todos nazistas. Só se importam com o sofrimento da raça de vocês. O resto mandam para o forno.
Churrascaria. Sábado ensolarado. E eu discutindo com um touro… Vejo que ele está morrendo, perde forças. Tento explicar que os animais não são seres racionais, então…Ele me interrompe.
- “Se uma menor inteligência não justifica que um ser humano seja explorado por outro mais inteligente, por que justifica que animais sejam explorados?”
- Outra citação…
- Peter Singer… Sim, te empresto.
- Agradecido.
- A questão nem é sobre inteligência. Veja o que diz o filósofo Jeremy Bentham: “Chegará o dia em que o resto dos animais poderá adquirir os direitos que nunca poderiam ter sido negados. Os franceses já descobriram que a negritude da pele não é razão para que um ser humano seja abandonado sem reparação ao capricho de um abusador. Pode um dia vir a ser reconhecido que o número das pernas, o tipo de pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deve ser motivo para traçar a linha? É a faculdade da razão, ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou cachorro adulto é incomparavelmente mais racional, bem como um animal, do que uma criança de um dia, ou uma semana, ou mesmo um mês de idade. Mas suponha que eles fossem de outra forma, o que seria o traço definitivo? A questão não é: eles podem raciocinar? nem eles podem falar? mas… eles podem sofrer?”
O touro já se deitou no chão a essa hora, treme e se contorce com as lanças. Honrado, ele fingiu saúde até o último momento. Os garçons se aproximam e começam a cortar sua garganta. Ele está ofegante, mas continua algumas últimas palavras.
- Eu só queria ser dispensado desse esporte. Tourada, rodeio, por que vocês nos obrigam a esse sofrimento?
- Faz parte da nossa cultura. Rodeios, por exemplo, são muito divertidos. Aliás, poucos meses atrás, um touro pisoteou um peão de 18 anos e o matou. O que diz disso, agora? O jovem tinha a vida toda pela frente! Vocês são bestas violentas. A gente só está fazendo uma festa cultural, rodeio é uma baita diversão.
- Para vocês, né, bando de psicopatas! Para uma descarga de serotonina no cérebro de vocês, não se importam com a descarga de dor no nosso cérebro. Vocês precisam consertar suas amígdalas, é a região responsável pelos dilemas éticos. Psicopatas não têm essa área muito ativa. O problema é que praticamente todos vocês são, né? Para os psicopatas, o sofrimento das vítimas não comove. Por isso me chamou de assassino quando eu simplesmente me defendi de um carrasco que tinha prazer em me torturar.
Os garçons terminam de serrar as pernas e a costela do touro. Ele me olha uma última vez.
- Eu não sou assassino. Você também não é nazista. Mude.
A faca termina de cortar sua garganta. Não há mais cordas vocais para me recriminar. Os garçons levantam a cabeça do touro como um troféu. O sangue já bate em nossa cintura, estamos em uma piscina de crueldade.
Eles finalmente colocam minha picanha na mesa. Chegou minha carne ensanguentada.
Churrascaria. Sábado ensolarado.
Eu recuso as fatias do meu novo amigo. Eu como só batata frita.
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(Atenção, este post é uma obra de ficção apenas por 2 detalhes: touros não falam nossa língua e o autor não vai mais a churrascarias. De resto, os fatos são reais.