Alguém recentemente postou isto no grupo principal do AE no Facebook, onde recebeu muita atenção de pessoas que chegaram ao AE vindo de fontes fora do LessWrong. Acho que o ensaio é um clássico; então, estou postando-o no Fórum, onde espero que o vejam pelo menos algumas pessoas que ainda não o viram.
Ontem:
Há um muito, muito antigo enigma/observação na economia sobre o advogado que passa uma hora como voluntário no restaurante comunitário, em vez de fazer hora extra no trabalho e doar o dinheiro para contratar alguém…
Se o advogado precisa trabalhar uma hora no restaurante comunitário para se manter motivado e lembrar a si mesmo de por que razão ele está fazendo o que está fazendo, tudo bem. Mas ele também deveria estar doando parte dos honorários ganhos no escritório, pois esse é o poder da especialização profissional e é assim que adultos realmente fazem as coisas acontecerem. Poderíamos considerar o cheque como algo que compra o direito de voluntariar-se no restaurante comunitário, ou algo que valida o tempo gasto no restaurante comunitário.
Eu seguro portas para velhinhas passarem. Não consigo me lembrar da última vez que isso literalmente aconteceu (embora eu tenha certeza de que aconteceu, em algum momento um ano atrás, mais ou menos). Mas em algum momento, digamos, um mês atrás, estava eu caminhando e encontrei uma perua estacionada na entrada de uma garagem com o porta-malas completamente aberto, dando pleno acesso ao interior do carro. Olhei para dentro para ver se pacotes estavam sendo carregados, mas não era o caso. Olhei em volta para ver se alguém estava fazendo algo com o carro. E acabei subindo até a casa e batendo na porta, e então apertando a campainha. E sim, deixaram o porta-malas aberto por acidente.
Noutras circunstâncias, isso seria um simples ato de altruísmo, que poderia significar uma genuína preocupação com o bem-estar dos outros, ou um medo da culpa pela omissão, ou um desejo de sinalizar confiabilidade para si mesmo e para os outros, ou o fato de que acho o altruísmo prazeroso. Acho todas essas motivações perfeitamente legítimas, aliás; daria talvez pontos-bônus à primeira, mas não descontaria ponto-penalidade algum das outras. O importante é que se ajudem as pessoas.
Mas, no meu próprio caso, visto que já trabalho no terceiro setor, surge a questão adicional sobre se eu poderia ter empregado melhor os mesmos sessenta segundos de um modo mais especializado, para levar um maior benefício aos outros. Ou seja: será que posso realmente defender isso como o melhor uso do meu tempo, dadas as outras coisas em que afirmo crer?
A defesa — ou talvez a racionalização— óbvia é que um ato de altruísmo como esse serve para restaurar a força de vontade, de um modo bem mais eficiente que, digamos, ouvir música. Também não confio na minha capacidade de ser altruísta só na teoria; suspeito que, se eu der as costas para os problemas, meu altruísmo vá começar a esvanecer. Nunca insisti nisso o bastante para testar; não parece valer a pena o risco.
Mas se essa é a defesa, então meu ato não pode ser defendido como uma boa ação, pode? Pois são benefícios autodirecionados que estou listando.
Bem, quem disse que eu estava defendendo o ato como uma boa ação abnegada? É uma boa ação egoísta. Se restaura a minha força de vontade, ou me mantém altruísta, então há benefícios indiretos direcionados a outrem advindos disso (ou assim creio). Claro que você poderia responder que não confia em atos egoístas que supostamente beneficiam os outros como um “motivo ulterior”; mas, então, eu poderia com igual facilidade responder que, com base no mesmo princípio, você deveria apenas olhar diretamente para a boa ação original, em vez do suposto motivo ulterior dela.
Posso fazer isso e sair ileso? Ou seja, posso sair ileso ao chamar o ato de “boa ação egoísta”, e ainda derivar disso uma restauração da minha força de vontade, em vez de me sentir culpado por ser egoísta? Aparentemente, sim. Estou surpreso que funcione assim, mas funciona. Contanto que eu bata na porta para lhes contar sobre o porta-malas aberto, e contanto que me digam “Obrigado!”, meu cérebro sente que fez a sua maravilhosa boa ação do dia.
Claro que a vantagem que você tira disso pode variar. O problema em tentar descobrir uma arte da restauração da força de vontade é que coisas diferentes parecem funcionar com pessoas diferentes. (Ou seja: estamos esquadrinhando em torno do nível dos fenômenos superficiais sem compreender as regras mais profundas que também nos possibilitariam prever as variações.)
Mas se você acha que é como eu nesse aspecto — que boas ações egoístas ainda funcionam —, recomendo então que você adquira sentimentos calorosos e útilons [NT: unidade econômica hipotética que mede a satisfação de preferências] separadamente; não ao mesmo tempo. Tentar fazer ambos ao mesmo tempo só significa que nenhum dos dois acaba sendo feito direito. Se o status lhe importa, adquira o status separadamente também!
Se tivesse que dar conselhos a algum milionário recém-cunhado entrando no mundo da caridade, meu conselho seria mais ou menos assim:
- Para adquirir sentimentos calorosos, encontre alguma mulher trabalhadora, porém assolada pela pobreza, que está prestes a largar a faculdade pública depois que reduziram o salário do seu marido; e em pessoa, porém mantendo o anonimato, dê a ela um cheque administrativo de US$ 10.000. Repita conforme desejar.
- Para adquirir status entre os seus amigos, doe US$ 100.000 para o Prêmio X mais badalado atualmente, ou para qualquer outra instituição de caridade que parecer oferecer o máximo de estilo pelo menor preço. Faça um alarde disso, apareça em seus eventos de imprensa e gabe-se disso durante os próximos cinco anos.
- Então, com calculação a absoluto sangue frio — sem insensibilidade ao escopo ou aversão à ambiguidade, sem preocupação com status ou sentimentos calorosos, descobrindo algum mecanismo comum para converter resultados em útilons e tentando expressar incertezas em termos de probabilidades percentuais —, encontre a instituição de caridade que oferecer os maiores útilons esperados por dólar. Doe até quanto for de dinheiro que você quiser doar para a caridade, até que a sua eficiência marginal caia para abaixo daquela da próxima instituição de caridade na lista.
Além disso, eu aconselharia ao bilionário que o que ele gastasse em útilons devesse ser no mínimo, digamos, 20 vezes o que ele gasta em sentimentos calorosos — 5% de despesas gerais para manter-se altruísta parece razoável, e eu, seu juiz imparcial, não teria problema algum em validar os sentimentos calorosos diante de um multiplicador assim tão grande; salvo que aquele ato caloroso original deveria ser de ajuda, em vez de ativamente nocivo.
(A aquisição de status me parece algo essencialmente desvinculado do altruísmo. Se doar dinheiro ao Prêmio X lhe consegue mais admiração dos seus amigos do que uma lancha com o mesmo preço, então não há realmente razão alguma para comprar a lancha. Simplesmente coloque o dinheiro sob a coluna “impressionar os amigos” e tome consciência de que essa não é a coluna “altruísmo”.)
Mas a principal lição é que todas as três coisas — sentimentos calorosos, status e útilons esperados — podem ser compradas de modo muito mais eficiente ao serem compradas separadamente, otimizando-se para apenas uma coisa de cada vez. Passar um cheque de US$ 10.000.000 para uma instituição de caridade focada no câncer de mama — embora seja muito mais louvável que gastar os mesmos US$ 10.000.000 em, sei lá, festas ou algo assim — não irá lhe proporcionar a euforia concentrada de estar presente em pessoa ao virar do avesso uma vida humana única; provavelmente nem chegará perto disso. Não irá lhe proporcionar tanto sobre o que falar em festas quanto doar para algo badalado como um Prêmio X — talvez um pequeno aceno dos outros ricos. E se você puser de lado toda a sua preocupação com sentimentos calorosos e status, deve haver pelo menos mil instituições de caridade existentes que estão carentes de financiamento e, com dez milhões de dólares, poderiam produzir ordens de grandeza de útilons a mais. Tentar otimizar para todos os três critérios de uma vez só garante que nenhum deles acabe sendo otimizado muito bem — apenas vagos empurrões ao longo de todas as três dimensões.
Claro que, se você não é milionário, ou até bilionário, você não pode então ser tão eficiente com as coisas, não pode adquirir facilmente coisas a granel. Mas eu ainda diria: para sentimentos calorosos, ache uma instituição de caridade barata com beneficiários radiantes, vívidos e, idealmente, em contato pessoal e direto. Seja voluntário num restaurante comunitário; ou simplesmente consiga seus sentimentos calorosos segurando portas para velhinhas. Que isso seja validado pelos seus outros esforços de aquisição de útilons, mas não confunda isso com a aquisição de útilons. O status deve ser mais barato de adquirir comprando roupas bacanas.
E, quando o assunto é adquirir útilons esperados, então, claro, cale a boca e multiplique.
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Autor: EliezerYudkowsky
Tradução: Luan Marques
Revisão: Leo Arruda
Publicado originalmente em 1 de abril de 2009 aqui.