Semana 4
Para nós, que comemos carne, é difícil ler esse título, não? Como assim alguém tem uma moral superior à minha? Não sou inferior a ninguém! Quem é você para dizer que sou inferior a um vegano? Esses chatos malucos fazem parte de uma seita!
Pois é: sou carnívoro como você, leitor. Como financiador da tortura de animais, digo que estou repensando muita coisa. É difícil. Só abandonei poucos tipos de carne até agora, foi fácil demais. E os próximos? Fizemos uma escolha inconsciente há séculos de explorar os animais, mantivemos tradições e afetos grandes com churrasco, sushi, bacon… E, de repente, nos últimos 200 anos, industrializamos e “perdemos a mão” na tortura.
São 80 bilhões de animais terrestres torturados e abatidos todo ano. Isso dá 10 animais por pessoa no mundo, acreditam? E ainda assim, o consumo é extremamente desigual, enquanto uns comem 20 animais por ano, outros comem zero. Por mais que produza muito, a indústria alimenta pouco (lembrando o último artigo, 83% das terras cultiváveis são direcionadas para alimentação dos animais, mas a carne só representa 18% das calorias que consumimos).
Embora seja interessante entender essa ineficiência, e o desastre ambiental que ela gera, o que tem me ajudado a frear a gula por carne é mesmo o tratamento de choque: diariamente, assisti a 2 minutos de vídeos de sofrimento animal nas últimas semanas (aliás, assistam Dominion, filme bem recente que mostra essa indústria na Austrália, não muito diferente do cenário brasileiro).
Mas e os valores morais? O texto não era sobre como os veganos são superiores a nós? Sim, ao menos nesse aspecto, os veganos podem se vangloriar, e nós temos de reconhecer que possuem valores muito melhores que os nossos.
O mundo se divide entre torturadores e não-torturadores. Em relação aos animais, nós formamos o segundo grupo.
O mundo não se divide entre veganos e “carnistas”. Não é um “FlaFlu” em que cada lado tem suas razões justificáveis, em que cada lado torce e se contorce em argumentos para seu time. A coisa é simples: um lado aceita a tortura como algo natural e necessário, o outro não.
O mundo se divide entre torturadores e não-torturadores. Eu também sou do primeiro grupo, porém, estou tentando migrar para o segundo.
A lógica econômica e ambiental explica como essa indústria é um mal negócio para o bem-estar amplo da sociedade. Mas é a “terapia” com os vídeos que realmente nos convence o quanto somos maus. O quanto nossos valores são baixos. Como somos perversos em fingir que essas cenas de tortura não existem e, se alguém nos lembra disso, mudamos logo o tema ou falamos que bacon-é-vida-amo-churrasco-é-a-lei-da-natureza-e-blablá…
Posso nunca virar vegano, posso falhar nessa caminhada e desistir. Até agora, parei de comer coisas fáceis. Na semana 2: porco e frango. Na semana 3: cão, gato, pato, polvo, coelho, rã, cabra, ovelha, macaco, cobra, rato, canguru.
Lista tranquila, né? Muitos desses eu já não comia mesmo. E olha que eu era daqueles que, se viajasse para um país asiático, pela “experiência cultural”, sempre afirmava que experimentaria carne de cachorro e de gato (aliás, essa semana começou o festival anual de churrasco de cachorro na China, não vejam esse vídeo, ou vejam, seria bom ver, mas tudo bem, vejam daqui a alguns anos).
Pode dar errado. Por isso, estou indo devagar, deve durar uns 2 anos essa transição. Não consigo ainda me ver sem queijo nem picanha nem cupim (caramba, como cupim bem feito é delicioso…) Mas percebem que esse meu pensamento é totalmente centrado no MEU paladar? No prazer e no costume que EU TENHO ao comer churrasco?
É impossível afirmar que esse meu valor moral, focado no MEU ego, na MINHA tradição, esse esquecimento de toda DOR e MEDO que causei a um SER VIVO até que ele chegasse ao meu prato, é impossível que esse meu valor moral chegue próximo ao de um vegano que abdicou de tamanha violência.
O mundo se divide entre torturadores e não-torturadores. E a moral do primeiro grupo é muito inferior à do segundo (nessa questão).
Podemos continuar comendo carne, tratemos como um ato político focado em uma religião, uma cultura, uma necessidade nutricional, um prazer. Mas paremos de falar que veganos são “chatos” ou que querem o “monopólio da virtude”. Nessa questão, eles estão certos. Nós é que estamos errados.
Continuemos no churrasco, mas tenhamos a mesma coragem de assistir aos vídeos da tortura que causamos com nosso vício. Evitar assisti-los, escolher a ignorância, optar pelo negacionismo, pela covardia, é só mais um dos nossos atos cruéis. É só mais um ato imoral que nos rebaixa ainda mais em relação aos veganos.
Assistir aos vídeos nos traz, ao menos, um mínimo de respeito pela vida inocente que sofreu e foi torturada até chegar ao nosso prato.
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. Seus últimos livros são “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “Por toda vida, Carolina” (e-book Amazon).