Carta da Utopia

Autor: Nick Bostrom

Tradução: Luan Rafael Marques

[Este é um breve escrito de Nick Bostrom sobre um futuro possível da humanidade, traduzido e publicado aqui com a autorização do autor. Em meio a tantas reflexões relativas a riscos e catástrofes, é válido como uma âncora manter uma visão do que temos para aspirar.]


Caro Humano,

Saudações, e que esta carta o encontre em paz e prosperidade. Perdoe-me por escrever assim do nada. Não nos conhecemos, apesar de não sermos estranhos. Somos, em certo sentido, os parentes mais próximos!

Sou um dos seus possíveis futuros. Espero que você se torne eu. Caso este desejo se concretize, não sou, então, um mero futuro possível, mas o seu futuro real: uma fase vindoura sua, como a flor que sucede a semente. Escrevo para contar-lhe da minha vida – para que você a possa escolher por si próprio.

Na realidade, escrevo  em nome de todos os meus contemporâneos, e dirigimo-nos a todos os seus contemporâneos. Entre nós, encontram-se muitos que são possíveis futuros da sua gente. Alguns de nós são possíveis futuros de crianças que ainda não se deram à luz. Ainda outros são possíveis pessoas artificiais que vocês podem um dia criar. Todos nós dependemos de vocês para tornarem-nos reais.

Chamamos a nossas vidas “Utopia”.

Como posso contar-lhe sobre Utopia sem deixá-lo perplexo? Com quais palavras poderia comunicar a maravilha? Minha pena, temo eu, está à altura da tarefa tanto quanto se tentasse usá-la contra o ataque de um elefante de guerra.

Mas talvez você se disponha a ignorar a debilidade da minha exposição.


Já viveu um momento de alegria? Nas corredeiras da inspiração, talvez, sua mente a traçar as formas da verdade e da beleza? Ou no êxtase palpitante do amor? Ou num glorioso triunfo alcançado com amigos verdadeiros? Ou numa conversa num terraço com videiras suspensas numa noite escolhida pelas estrelas? Ou talvez uma melodia contrabandeou-se para dentro do seu coração, cativando-o e acendendo-o com emoções caleidoscópicas? Ou quando você orou e sentiu-se ouvido?

Se você já viveu tal momento – vivenciou a melhor sorte de tal momento –, então deve ter descoberto no seu interior certo pensamento ocioso, porém sincero: “Sim, o céu! Não sabia que podia ser assim. Isto é tão certo, num nível totalmente diferente de certo; tão real, num nível totalmente diferente de real. Por que não pode ser sempre assim? Antes estava a dormir; agora estou desperto.”

Ainda assim, um pouco depois, uma hora mal passou, e a fuligem sempre cadente da vida ordinária já está a cobrir a coisa toda. O ouro e prata da exuberância perde o seu brilho, e o mármore torna-se imundo.

Sempre assim: fuligem, jogando seu manto sobre esplendores e devaneios, despojando você da sua epifania, maculando o seu colarinho mais fino. E, novamente, aquele ritmo entorpecente familiar da rotina a rodar sobre seus trilhos familiares. Trens metropolitanos carregando e descarregando passageiros… sonâmbulos, compradores, solicitadores, os ambiciosos e os desesperados, os contentes e os desgraçados… elétrons humanos arrastando-se pelos circuitos da civilização, promulgando planilhas corporativas e outras coisas tais.

Esquecemo-nos de quão boa a vida pode ser no seu melhor, e quão má no seu pior. A ocasião mais excepcional – mal chega ela antes que entrem os faxineiros para varrer o arroz e o confete. “Vida que segue.” E para ser honesto, depois que nossas poças foram agitadas e chapinhadas um bocado, é um alívio quando retorna a normalidade. Pois não fomos feitos para a alegria duradoura.

E, assim, a porta que estava entreaberta começa a fechar-se, e, assim, o fio de esperança míngua, até nada permanecer além de uma possibilidade remota. E daí, nem sequer uma possibilidade. Nem mesmo uma concebibilidade.

Rápido, impeça aquela porta de fechar! Enfie o pé para que não bata.

E que a débil corrente de ar lá de fora continue a sussurrar a respeito de um estado superior. Sinta na cara as palavras ternas do que poderia ser!


Invoco a memória do seu melhor momento – por quê? Na esperança de acender em você um desejo de partilhar da minha felicidade.

E, ainda assim, o que você teve no seu melhor momento é apenas uma centelha convidativa, no máximo. Nem perto do que eu tenho. Não mais perto do que a palavra “Sol” escrita em tinta amarela está do Sol real. Pois estou além das palavras e da imaginação.

Minha mente é ampla e profunda. Li todas as suas bibliotecas, num piscar de olhos. Vivenciei a vida humana em muitas formas e lugares. Selva, e deserto, e gelo ártico crepitante; favela, e palácio, e escritório, e arroio suburbano; projeto, fabriqueta, e chácara, e chácara, e chácara, e um chão de fábrica com apito, e o lar vazio com longas tardes. Naveguei nos mares da alta cultura, e nadei, e mergulhei, e submergi. Um bom número de maravilhosos edifícios são construídos em milhares de anos pelos esforços de homúnculos, assim como humildes pólipos acumulam-se com o tempo num recife de corais. E vi os cardumes de peixes biográficos, cada um uma história de vida, cintilarem sob as águas arfantes de oceanos.

O todo excede a soma das partes ou as partes excedem o todo? O que tenho é mais que o que você tem. Não só as particularidades, as pinturas e desenhos de tubos de pasta de dentes, as capas de livros, as épocas, os amores, as folhas oxidadas, os rios e os encontros ao acaso; as fotos de satélite e os dados do colisor de hádrons. Também as relações complexas entre estas particularidades. Há ideias que só podem ser formadas por cima de uma base de experiências tão ampla, e há profundezas que só podem ser sondadas com tais ideias. E os jogos. E as coisas luxuriosas. E as coisas que nem posso mencionar.

Você poderia dizer que sou feliz, que me sinto bem. Que sinto insuperável gozo e deleite. Sim, mas essas são palavras para descrever a experiência humana. São como flechas atiradas para a Lua. O que sinto encontra-se tão além dos sentimentos quanto o que penso encontra-se além dos pensamentos. Oh, quem me dera poder mostrar-lhe o que tenho em mente! Se pudesse apenas partilhar um segundo com você!

Mas você não precisa entender o que penso e sinto. Se somente mantiver em mente o que é possível dentro do domínio humano, terá o bastante para começar na direção certa, um passo de cada vez. Em ponto nenhum encontrará uma parede de luz deslumbrante. Em ponto nenhum terá de descartar a si mesmo sobre um precipício. Conforme avançar, o horizonte irá retroceder. A transformação é profunda, sim; mas pode ser tão gradual quanto o processo que fez crescer o bebê que você era para virar o adulto que você pensa ser.

Você não pode chegar aqui por meio de truques de mágica ou sandices, ou pelo poder do pensamento desejoso, ou pela acrobacia semântica, meditação, afirmação, encantamento, ou por um ato do parlamento. Não me atrevo a dar-lhe conselhos sobre questões teológicas ou políticas (por mais decisivas que possam ser). O que lhe insto é uma reconfiguração da sua situação física através da tecnologia.


O desafio diante de você: tornar-se plenamente o que agora você é somente em esperança e potencial. Para isto, são necessárias novas capacidades. 

Para alcançar Utopia, é preciso descobrir os meios para três transformações fundamentais.

Primeira Transformação: garanta a vida.

Seu corpo é uma armadilha mortal. Essa máquina, a não ser que trave ou quebre antes, decerto já irá enferrujar. Terá sorte se tiver sete décadas. Isto não basta para começar a sério, muito menos completar, a jornada. O caminho para a maturidade da alma leva mais tempo. Ora, até a vida de uma árvore leva mais tempo!

A morte não é um assassino, mas uma multidão deles. Não os enxerga? Estão a atacar você de todo ângulo. Mire nas causas da morte prematura: infecção, violência, desnutrição, insuficiência cardíaca, câncer. Prepare a sua maior arma para alvejar o envelhecimento, e fogo! É preciso assumir o controle dos processos biológicos no seu corpo a fim de aniquilar, pouco a pouco, a doença e a senescência. Com o tempo, descobrirá maneiras de transportar sua mente para veículos mais duráveis. Continue, então, a melhorar o sistema, para que os riscos da morte e da doença continuem a recuar. Qualquer morte antes da morte térmica do universo é prematura, se a sua vida é boa.

Oh, não é bom viver numa cabana de papel autocombustível. Mantenha as chamas à distância e prepare-se com nitrogênio líquido como cópia de segurança, enquanto constrói para si uma melhor habitação. Um dia seus filhos deverão ter um lar seguro. Pesquise, construa, redobre o seu esforço!

A Segunda Transformação: expanda a cognição.

As faculdades especiais do seu cérebro: música, humor, espiritualidade, matemática, erotismo, arte, cuidado, narrativa, fofoca! Estes são licores finos para derramar no cálice da vida. Bem-aventurado é você se tiver uma garrafa de boa safra de qualquer um deles. Melhor ainda, um barril! Melhor ainda, um vinhedo!

Não tenha medo de aumentar sua coleção – as adegas da mente não têm teto.

Que outras capacidades são possíveis? Imagine um mundo desprovido de toda a música: que empobrecimento, que perda! No entanto, agradeça não à lira, mas ao seus ouvidos, pela música. E então pergunte a si mesmo: quais outras harmonias existem no ar, as quais você carece dos ouvidos para ouvir? Em que cofres de valor você está nesciamente excluído de entrar, pois carece da sensibilidade crucial?

Tivesse você a mínima noção, as suas unhas estariam a arranhar o cadeado num santo frenesi.

O seu cérebro deve crescer além dos limites de qualquer gênio da raça humana, tanto em suas faculdades especiais como em sua inteligência geral, para que você possa melhor aprender, lembrar-se e entender, e para que possa apreender a sua própria beatitude.

A mente é um meio: pois sem perspicácia você irá atolar ou perder seu caminho, e a sua jornada falhará.

A mente é também um fim: pois é no espaço-tempo da consciência que Utopia existirá. Que a medida da sua mente seja vasta e expansiva.

Oh, a estupidez é um curral asqueroso! Roa e puxe as barras, e vagarosamente irá soltá-las. Um dia, você quebrará a cerca que mantinha seus predecessores cativos. Roa e puxe; redobre o seu esforço!

A Terceira Transformação: eleve o bem-estar.

Qual é a diferença entre desespero e deleite, entre tédio dolorido e excitação gritante?

Prazer! Alguns poucos grãos deste ingrediente mágico valem mais do que o tesouro de um rei. Temos imensos silos dele aqui em Utopia. Ele permeia tudo que fazemos, tudo que vivemos. Salpicamo-lo em nosso chá.

O universo é frio. O divertimento é o fogo que derrete os blocos da adversidade e cria uma fervilhante celebração da vida.

É o direito inato de toda criatura, um direito não menos sagrado por ter sido pisoteado desde o princípio dos tempos.

Há uma beleza e júbilo aqui que você não pode sondar. É tão bom que, se a sensação fosse traduzida em lágrimas de gratidão, rios transbordariam.

Busco em vão por palavras para comunicar-lhe o significado… É como uma chuva do sentimento mais maravilhoso, em que cada gota tem seu próprio sentido único e indescritível – ou melhor, um aroma ou essência que evoca todo um mundo… E cada mundo evocado tal é mais sutil, mais profundo, mais palpável que a totalidade da realidade que você já encontrou. Uma gota justificaria ou acertaria a vida humana, e a chuva continua a cair, e há dilúvios e mares.

Não falo aqui da pior dor e desgraça de que hão de se livrar; é algo demasiadamente horrível para no qual se demorar, e você já está ciente da urgência da paliação. O que quero dizer é que, além da remoção do negativo, há também um imperativo ascendente: de possibilitar o florescimento pleno dos gozos atualmente adormecidos em seus bulbos e botões, desconhecidos pelo homem e pela mulher.

As raízes do sofrimento, todavia, estão plantadas profundamente no seu cérebro.  Extirpá-las e substituí-las por culturas de bem-estar exigirá perícias e instrumentos avançados para o cultivo do seu solo neuronal. Atenção, pois é complexo o problema! Todas as emoções têm função. Tem de podar e capinar com cautela, para não reduzir acidentalmente a fertilidade do seu lote.

Colheitas sustentáveis são possíveis. Ainda assim, tolos constroem paraísos de tolos. Recomendo-lhe que vá com calma na sua engenharia do paraíso até possuir a sabedoria para fazê-la direito.

Oh, que pavoroso nó é o sofrimento! Puxe e repuxe esses laços, e gradualmente irá afrouxá-los. Um dia, os rolos cairão, e você irá estirar-se com deleite. Puxe e repuxe; e seja paciente no seu esforço!

Venha um tempo em que sóis nascentes serão saudados com júbilo pelas criaturas sobre quem eles brilham.


“Como encontro esse lugar? Quanto tempo levará para chegar aí?”

Não posso passar-lhe planta alguma para Utopia, nenhum roteiro ou itinerário. Tudo que lhe posso dar é a minha garantia de que há algo aqui, o potencial para uma vida muito melhor.

Se me pudesse visitar aqui por um único dia, dali em diante você chamaria a este lugar seu lar. O lugar de onde você é. Desde que criaturas peludas pegaram duas pederneiras e começaram a batê-las uma na outra para fazer uma ferramenta, esta tem sido a direção da sua aspiração desconhecida. Como Odisseu, você deve fazer uma jornada, e jamais parar, até chegar a esta orla.

“Chegar?”, você diz. “Mas não é a jornada o destino? Não é Utopia um lugar que não existe? E não é a busca por Utopia, como testemunhado pela história, um perigoso desvario e uma incitação à malícia?”

Meu amigo, essa não é uma maneira má de pensar nisto. Falando a verdade, Utopia não é uma localidade ou uma forma de organização social.

O corar de saúde na bochecha de um convalescente. O cintilar do olho num momento de espirituosidade. O sorrir de um pensamento amoroso… Utopia é a esperança de que os fragmentos dispersos do bem com que nos deparamos de tempos em tempos em nossas vidas sejam reunidos, um dia, para revelar a forma de um novo tipo de vida. O tipo de vida que a sua deveria ter sido.

Temo que a busca de Utopia ressalte o pior em você. Muitas mariposas foram incineradas na busca de um futuro mais brilhante. 

Busque a luz! Mas aproxime-se com cautela – e desvie se sentir o cheiro das pontas das suas asas a chamuscar-se. Luz é para ver, não para morrer.

Ao embarcar nesta busca, encontrará mares revoltos e desafios árduos. Para prevalecer, será necessária a sua melhor ciência, a sua melhor tecnologia e a sua melhor política. Não obstante, cada problema tem solução. Minha existência não viola nenhuma lei natural. Todos os materiais necessários estão dispostos na sua frente. A sua gente deve tornar-se mestres de obras, e daí devem vocês utilizar estas perícias para construírem a si mesmos, sem jamais destruírem os seus cernes.


O que é Sofrimento em Utopia? Sofrimento é o resquício salgado remanescente nas bochechas dos veteranos que antes estavam por aqui.

O que é Tragédia em Utopia? É tragédia o bastante quando o boneco de neve derrete na primavera.

O que é Imperfeição em Utopia? Imperfeição é o nosso modo de honrar as tradições e desejos do passado, e os compromissos que fizemos ao longo do caminho.

O que é Corpo em Utopia? Corpo é um par de pernas, um par de braços, um tronco e uma cabeça, todos feitos de carne. Ou não, conforme for o caso.

O que é Sociedade em Utopia? Uma tapeçaria jamais terminada, seus tecelões idênticos aos seus fios; sendo os padrões que se desdobram uma malha para a vida e a aventura, um gerador de beleza inexaurível.

O que é Morte em Utopia? Morte é a escuridão que derradeiramente circunda a vida.

O que é Culpa em Utopia? Culpa é o nosso conhecimento de que poderíamos ter criado Utopia mais cedo.


Amamos a vida aqui a todo instante. Todo segundo é tão bom que explodiria a sua mente, caso a sua amperagem não tivesse sido aumentada primeiro. Meus contemporâneos e eu damos testemunho e recorremos a você para solicitar auxílio. Por favor, junte-se a nós! Se esta insuperável possibilidade irá tornar-se realidade é algo que você pode influenciar. Se a sua empatia consegue perceber ao menos os contornos da visão que descrevo, creio, então, que a sua engenhosidade encontrará uma maneira de concretizá-la.

A vida humana, no seu melhor, é maravilhosa. Peço-lhe para criar algo maior: vida que é verdadeiramente humanizada.

Atenciosamente,

Seu Possível Eu Futuro.

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