O altruísmo eficaz como uma torre de pressuposições

Escrevi um artigo que meus amigos não vão me deixar publicar por ser muito radical. O título seria algo semelhante a Como responder às críticas mais comuns ao altruísmo eficaz (na sua cabeça apenas, jamais tente fazer isso na vida real), e ele começa assim:

P: Não gosto de ver altruístas eficazes continuando a fazer doações para instituições de caridade estranhas, cheias de ideias mirabolantes.
R: Você está doando 10% da sua renda para instituições normais e realistas?

P: Longotermismo  é apenas uma desculpa para não ajudar as pessoas hoje!
R: Você está ajudando alguém hoje?

P: Acho que a caridade nos distrai do trabalho árduo em relação a mudanças sistêmicas.
R: Você está trabalhando arduamente em mudanças sistêmicas?

P: Estes são alguns cenários filosóficos exóticos em que o utilitarismo dá a resposta errada.
R: Você está doando 10% da sua renda para pessoas pobres que não pertencem a esses cenários filosóficos exóticos?

Muitas pessoas responderão “sim” a todas! Nesse caso, tudo bem! Mas… Bem, digamos que você seja cristão. Um ateu chega até você e diz “Cristianismo é burrice porque a nova versão internacional da Bíblia tem sérios erros de tradução”.

Você pode imediatamente fazer perguntas como “Você não pode simplesmente usar outra versão da Bíblia?” ou “Não seria possível simplesmente adorar Jesus e amar o próximo ao mesmo tempo em que entende que possa estar interpretando erroneamente partes da Bíblia?”.

Mas, além disso, você pode se perguntar por que o ateu não pensou nisso. Será que os erros de tradução são o verdadeiro motivo de sua recusa do cristianismo ou ele só os está usando como desculpa? E se ele está usando como desculpa, qual o motivo verdadeiro? E por que ele não tenta convencê-lo usando esse motivo?

É assim que me sinto em relação a esse tipo de crítica ao altruísmo eficaz.

Para mim, o argumento principal do altruísmo eficaz é o Cenário da criança se afogando. O mundo está repleto de morte e sofrimento. Seu dinheiro (ou tempo, seja o que for que você prefira dispor) pode ajudar muito mais do que você pensa – uma análise controversa estima que custa US$ 5.000 para salvar uma vida. Você pode enlouquecer se tentar usar 100% do seu tempo ou dinheiro para ajudar outras pessoas. Mas se decidir ajudar apenas quando achar que deve ou quando surgir uma oportunidade, você provavelmente vai esquecer. Existe uma forma mais sistemática de se comprometer com algum valor entre 0% e 100% de suas possibilidades (geralmente 10%)? E, após ter feito isso, como tirar o máximo de proveito desses recursos? Isso é o altruísmo eficaz, o resto é só discussão adjacente.

E tem muita discussão. O altruísmo eficaz agora se tornou um movimento semiorganizado, com líderes como Will MacAskill e Toby Ord e instituições como o Open Philanthropy Project. Ele produziu muita literatura sobre organizações eficazes, desde qual a melhor forma de prevenir a malária, passando por como promover o bem-estar dos animais, até cenários especulativos sobre o apocalipse da IA. Isso não está acima das críticas e, de fato, muitas pessoas têm criticado. Mas se você tiver sucesso em sua crítica, e tiver a sensação de que aquela está desacreditada, então você retornará novamente aos princípios básicos do movimento.

Pense nisso como uma torre de pressuposições. Se destruir a base, toda a torre cai. Mas se você destrói o andar superior, os outros andares continuam de pé.

Projetos específicos
– O projeto ABC específico é benéfico e deve ser ajudado.
– O projeto XYZ específico é benéfico e deve ser ajudado.
Credibilidade institucional   – Líderes do AE, como Will MacAskill e instituições de AE, como a 80,000 Hours e o Open Philanthropy Project são competentes, bem-intencionadas (os), e vale a pena seguir ou ajudá-las (os).
Priorização de causas   – As causas mais eficazes provavelmente são saúde global, bem-estar dos animais e a prevenção de riscos à existência
– As formas de riscos à existência mais preocupantes são guerras nucleares, pandemias e a IA.
Pressuposições menos simples   – Nós devemos doar 10% da nossa renda ou buscar uma ocupação altruísta.
– Cálculo utilitário (por ex., QALYa)
– Ajudar o 3º mundo é mais importante que o 1º (por ex., mosquiteiros ou doações para universitários).
Pressuposições fundamentais   – Nós devemos ajudar os outros.
– Nós devemos pensar bastante sobre quanto esforço daremos à questão
– Alguns métodos de ajuda são mais eficazes que outros.

A intenção não é dar a forma definitiva; pensando de forma realista, seria mais uma árvore ou fluxograma do que uma torre.

Quando as pessoas dizem coisas do tipo “Acho que o risco da IA é burrice, portanto sou contra o altruísmo eficaz”, as duas metades da oração podem ser verdadeiras, mas o “portanto” que as une não é.

Freddie deBoer escreveu que:

As ideias corretas do AE são ótimas, mas algumas delas são tão óbvias que nem deveriam ser associadas ao movimento e as ideias interessantes e polêmicas são malucas e ruins. Na primeira vez em que pesquisei “altruísmo eficaz” no Google, em menos de 10 minutos estava lendo uma discussão que dizia que deveríamos cometer genocídio contra todas as espécies predadores, pois elas matam herbívoros, vejam só, e isso constitui utilidade negativa ou sei lá o quê.

Eu não acho que “matar animais predadores” seja uma crença geral do AE, mas mesmo que fosse, bastaria voltar para o andar de baixo na torre. Gastar 10% da sua renda em causas de bem-estar animal como o fim das fazendas industriais. Acha que bem-estar animal também é loucura? Então, doe 10% da sua renda para ajudar pessoas pobres em países em desenvolvimento. Essas coisas são “tão óbvias que nem deveriam estar associadas ao movimento”? Então, por que tão pouca gente faz?

Acha que 10% é o número errado e você deveria estar ajudando pessoas mais próximas a você? Ótimo, desça mais um pouco na torre, e faça sua doação. . . um pouco do seu tempo, dinheiro, qualquer coisa, para os pobres do seu país. Se não estiver fazendo isso, o seu problema com o altruísmo eficaz não é o fato da “cultura ao redor da Open Philanthrophy Foundation desvalorizar essa ou aquela forma de mudança”, o seu problema é o que o impede de fazer isso. Você pode também ter um ponto de vista inteligente sobre a cultura ao redor da Open Phil, assim como pode ter opiniões inteligentes sobre a sua tradução predileta da Bíblia caso fosse cristão, mas não encare como um argumento sério.

Quase no fim do meu artigo “radical demais para ser publicado”:

P: Sem levar em conta quaisquer questões sobre minhas obrigações pessoais, eu acho importante apontar os erros do altruísmo eficaz enquanto movimento.
R: Sem levar em conta quaisquer críticas ao altruísmo eficaz enquanto movimento, eu acho importante colocar a questão se você deve ou não doar 10% da sua renda às pessoas mais pobres do mundo.

Para mim, qualquer outra questão relacionada ao altruísmo eficaz é menos interessante do que esta, que trata da obrigação moral. É divertido debater se determinadas pessoas/instituições devem ganhar ou perder status, e eu também debato essas coisas, mas elas parecem ser menos importantes que questões básicas sobre a forma que vivemos e como devemos agir eticamente.

P: Deixa disso,o altruísmo eficaz já nem anda falando muito em “doar 10% da sua renda para instituições eficazes”! Agora fala na procura por ocupações altruístas!
R: Você está procurando uma ocupação altruísta?

P: Não, porque acho que todas as ocupações altruístas na lista são bobas e não ajudam ninguém!
R: Então você está doando 10% da sua renda para caridade?

P: Você está querendo me induzir ao erro ao comparar o “altruísmo eficaz”, uma comunidade específica cheia de falhas, com a própria ideia de altruísmo, tentando se esquivar das críticas!
R: Você me pegou. Você está doando 10% da sua renda para as pessoas mais pobres do mundo? Por que não?

P: OK. VOCÊ VENCEU. Vou doar 10% da minha renda para caridade.
R: Você deve doar de maneira mais eficaz.

Tradução: Ramiro Peres

Revisão: Fernando Moreno

Autor: Scott Alexander

Publicado originalmente em 24 de agosto de 2022 aqui.


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