Fiz um ótimo curso do Al Gore sobre mudanças climáticas nas últimas semanas, mas há uma verdade inconveniente que ficou esquecida nas aulas: nosso cardápio. Entendo que ele – Nobel da Paz em 2007 e que já foi vegano – prefira não entrar nessa área que mexe com tantas paixões por bacon e milk shake, mas não se faz omeletes sem quebrar alguns ovos (obs: com omeletes veganos, é possível, sim!).
Este “ovo sagrado” da alimentação baseada em animais também não foi muito citado na COP 26 do ano passado e virou alvo de tantos protestos que este ano, na COP 27, pela primeira vez as proteínas alternativas terão destaque com um pavilhão exclusivo.
Sendo sincero, Al Gore até cita aqui e ali a pecuária, mas sempre de passagem, com pressa, sem ênfase. Quando cita a soja, não fala que mais de 70% da produção global é direcionada para ração animal. Quando fala do metano, nem lembra do protagonismo do gado, apenas coloca o gráfico solto sem as principais fontes. Quando fala do aquecimento dos oceanos e perda de biodiversidade, não cita a pesca industrial e redes de arrasto que destroem os corais e todo o solo marítimo, e que a maior poluição de plástico é causada por redes de pesca (50% do plástico nos oceanos). Nem quando fala do consumo de água na indústria, ele lembra de citar que o leite de vaca consome mais de 20 vezes o que o leite de aveia consome (Our World in Data).
A importância alimentação plant based
Se estamos em uma emergência climática, não pode existir esse tabu na discussão só porque mexe com nosso vício em picanha e muçarela e comidas afetivas da infância. É possível adaptar globalmente o prazer do paladar com a alimentação plant based que, sem nem falar do tratamento ético com animais, ainda ajuda a regenerar o planeta. Precisamos colocar o elefante na sala (para quem não conhece a expressão: “refere-se a uma questão difícil que é perfeitamente óbvia, presente, inescapável, mas de que um grupo de pessoas evita falar”).
Sobre a gravidade da emergência climática, o curso do Al Gore é impecável, um banho de loja completo sobre tudo que deveríamos saber mas estamos ocupados demais com a Netflix. Aqui vão alguns pontos:
- Inundações e chuvas extremas ocorrem globalmente com frequência 4 vezes maior hoje do que em 1980.
- Em 2021, rios do Amazonas atingiram nível recorde alagando o entorno.
- Só nos últimos 12 anos, foram 26 eventos de chuva extrema nos EUA (tão extrema que são chamados de eventos que deveriam ocorrer apenas a cada mil anos).
- No Chile e Argentina os últimos 12 anos foram os mais secos desde o ano 1.400. Em regiões dos EUA, esse mesmo período foi o mais seco do milênio. Na Europa, as secas recentes são as piores em 2 mil anos.
- Esses eventos extremos estão gerando refugiados climáticos em números assustadores e geram tensões/guerras/xenofobia. A seca de 2006 a 2010 na Síria transformou 60% das terras férteis em desertos, gerando 1,5 milhão de migrantes para as cidades (nesta última semana, um terço do Paquistão, país de 220 milhões de pessoas, ficou alagado com chuvas extremas).
- Entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021 (seis meses apenas!), 10 milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas por eventos climáticos no mundo. Isso é quatro vezes o número de refugiados gerado por guerras no mesmo período.
- Esses eventos também geram novas doenças epidêmicas transmitidas por mosquitos e água contaminada.
- O Polo Sul está aquecendo 3 vezes mais rápido que o resto do planeta. Em março agora de 2022, a temperatura na Antártica estava 50 graus acima do normal.
- O Ártico está aquecendo 4 vezes mais rápido que o resto do planeta.
- O nível do mar pode subir até 40cm no Brasil até 2050. No mundo, bilhões de pessoas que vivem no litoral estão com suas cidades ameaçadas.
- A basílica de Veneza inundou 5 vezes nos últimos 20 anos. Nos últimos mil anos, tinham sido só 2 vezes.
- Todos esses eventos também geram risco na produção de alimentos. O IPCC diz que há risco cada vez mais frequente de desabastecimento por quebras de safra.
- Nos últimos 60 anos, a concentração de metano dobrou na atmosfera (esse gás tem 82 vezes o poder de retenção de calor do que o CO2).
- Nos últimos 20 anos, a área de plantação de soja na Amazônia aumentou 10 vezes. Brasil foi o líder na perda de florestas no mundo em 2021, com o triplo de hectares perdidos do segundo colocado (Congo).
E a má notícia: a tendência é vermos as catástrofes aumentarem nas próximas décadas.
Al Gore coloca suas esperanças na energia eólica e solar. E na educação sobre o meio ambiente. E só. Claro, é bastante coisa, mas não o suficiente. Nas próximas décadas, a população global vai crescer, aumentaremos de 8 para 10 bilhões de pessoas, e elas terão o que para comer? Onde vamos desmatar mais para aumentar a soja e milho para ração de porcos, bovinos e galinhas poedeiras? Vamos continuar ampliando o rebanho bovino, emissor de metano, para nosso vício em leite ou encontraremos opções plant based mais sustentáveis e que consumam menos água? Vamos continuar destruindo a biodiversidade dos oceanos?
Sim, ele chega a citar rapidamente a necessidade de agricultura regenerativa, mas não dá nem um pio sobre nosso consumo de bacon, omeletes e milk shake. Parece não ter um plano amplo de como zerar nossas emissões. E aí entra o livro “Speed and Scale” (de John Doerr), lançado no ano passado por um amigo dele e que, acredito, deveria assumir o protagonismo da discussão. Aliás, eu soube do curso do Al Gore por esse livro.
Vejamos o cenário que John Doerr nos coloca. Atualmente, o mundo emite 59 gigatoneladas (ou 59 milhões de toneladas) de gases de efeito estufa por ano. Para combatê-las, o plano elenca seis objetivos e 55 resultados-chave (OKRs) que, se alcançados, garantem que a temperatura global não suba mais de 1,5 grau. As seis metas são: eletrificar o transporte, descarbonizar o sistema energético, consertar nossa alimentação, proteger a natureza, limpar a indústria e remover o carbono.
Objetivos claros, mas nada simples. Complementando o mapa de OKRs, o autor lista quatro alavancas essenciais para acelerar a conclusão dos objetivos: vencer a política com planejamento, transformar movimentos em ação, inovar e investir. Com cada um dos objetivos, Doerr visa eliminar uma certa quantidade de emissões. O setor de transporte, por exemplo, é responsável hoje por 8 gigatoneladas de gases por ano. Até 2050, esse número precisa cair para 2 gigatoneladas anuais. A indústria alimentícia, com o metano gerado na pecuária, é uma fonte poluidora ainda maior, com 9 gigatoneladas. E, claro, o setor mais crítico (e foco do Al Gore) é a matriz energética, responsável por quase 50% das emissões
A lista de resultados-chave também busca apoio dos consumidores. O KR 1.2, por exemplo, diz que os veículos elétricos devem responder por metade das vendas do mercado até 2030. Já o KR 1.3 propõe que todos os novos ônibus vendidos sejam elétricos até 2025.
No caso do objetivo 3 (consertar nossa alimentação), o KR 3.5 aponta a necessidade de reduzir o desperdício de comida (hoje em 33%) para 10%, e o KR 3.3 demanda que a humanidade reduza em 50% a ingestão de leite e proteína animal até 2050, devendo focar proteínas alternativas menos poluentes.
O objetivo 4, de proteger a natureza, está muito ligado à alimentação. O KR 4.2, por exemplo, sugere proibir grandes redes de pesca, pois elas varrem os mares e destroem a biodiversidade. E também traz um KR focado em reflorestamento que ficará muito difícil de se alcançar se não mudarmos nosso cardápio e continuarmos desmatando para plantar a soja e milho para ração animal.
Além de falar do “elefante na sala”, John Doerr também é muito mais enfático no tema regeneração. Por isso, o ESG precisa ter uma letra nova. A letra R, de regeneração, é talvez um dos maiores insights do livro Speed and Scale. Buscar sustentabilidade ambiental não é mais suficiente; a urgência climática demanda regeneração ambiental, o que depende diretamente de uma mudança em nossa alimentação.
Segundo um estudo de Oxford publicado na revista Science, seguir uma dieta à base de plantas pode reduzir em mais de 70% a emissão de carbono de nossa alimentação. É algo que podemos fazer já. Além disso, a migração para uma dieta baseada em vegetais consegue manter a mesma quantidade de alimentos produzida e “liberar espaço” para reflorestar até 76% das atuais terras agricultáveis.
A mudança na alimentação já é necessária para que o planeta consiga sustentar os atuais 8 bilhões de habitantes. Segundo o Banco Mundial, com o crescimento populacional de mais 2 bilhões até 2050, a demanda por comida aumentará em 50%, e a por proteína animal, em 70%. Não há terras agricultáveis suficientes para esse aumento sem destruir mais florestas (ou muskianamente colonizar outros planetas).
O modelo atual tem causado desmatamentos, desequilíbrios e perda de biodiversidade. A alimentação do futuro, focada em plantas e não na pecuária, gera um ciclo virtuoso de proteção da natureza. O plano do Al Gore é pesadamente dependente de governos. O plano de John Doerr traz também grande parte da responsabilidade para nós, do setor privado. Existe um amplo espaço já de imediato para atuarmos, seja no papel de consumidores, seja no trabalho em empresas e organizações.
As corporações já podem repensar o ESG-R no dia a dia, incluindo até o que é servido em seus refeitórios, workshops e o que é reembolsado nos almoços executivos. Um passo inicial é incluir a regeneração na pauta principal. Regenerar a rotina das corporações e começar a conectá-las ao mapa de OKRs de John Doerr pode ser tão simples quanto trocar o pão de queijo do escritório por uma receita com queijo feito de plantas.
Como disse Barack Obama: “Somos a primeira geração a sentir os efeitos das mudanças climáticas e a última que pode fazer algo a respeito”. Talvez sejamos a última que pode lutar por uma mudança em nosso cardápio focando na sustentabilidade, sem nem tocar no tema da ética para com os animais.
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.