Rodrigo Hilbert e Clarice Lispector e sua dissonância cognitiva

Em uma crônica da década de 70, Clarice Lispector escreve: “um de meus filhos comprou um pintinho amarelo. Que pena que dá. Sente-se nele a falta da mãe. O susto de ter nascido do nada. E nenhum pensamento, apenas sensações. Será que vai vingar? Este parece que sim. E no entanto eu queria que não: como ter num apartamento um galo ou uma galinha? Matar e comer? O que se cria não se mata. É só esperar e dar de comer, e dar-lhe amor vindo do calor das mãos.”

Da wikipédia, leio que “o conceito de dissonância cognitiva remete à necessidade, do indivíduo, de procurar coerência entre suas cognições (conhecimento, opiniões ou crenças). A dissonância ocorre quando existe uma incoerência entre as atitudes ou comportamentos que acredita serem certos e o que realmente é praticado.” 

Posso listar alguns exemplos rápidos desse problema: você acha errado jogar lixo no chão, mas joga; acha errado roubar, mas rouba; acha errado matar, mas mata; acha que ama os animais, mas paga para serem esfaqueados; e assim por diante.

Vimos um grande exemplo disso em 2016, em um programa de culinária do Rodrigo Hilbert. Em um episódio famoso, ele matou um filhote de ovelha de 6 meses para fazer churrasco e mostrou todas as etapas, desde a busca do filhote que estava passeando na grama até o prato de “comida”, passando pela ovelha criança sendo amarrada, se debatendo e berrando ao ser esfaqueada (só cortou o close da facada, mas deixou o som do sangue pingando).

A dissonância cognitiva da população carnista achou um absurdo e o cancelou. A GNT inclusive tirou o episódio do ar. Ele foi obrigado a se desculpar nas redes por, simplesmente, mostrar a realidade da violência financiada por todos aqueles espectadores carnistas indignados.

Trechos de seu pedido de desculpas na época: 

“Oi, gente! (…) Venho de uma família (…) que tem como tradição plantar e criar o próprio alimento que consome. Foi com esse espírito que a nova temporada do “Tempero de família” se ergueu, com o objetivo de documentar a vida desses pequenos produtores (…). Não tínhamos a intenção de incitar qualquer violência contra animais, mas apenas de registrar o dia-a-dia desses trabalhadores. (…) No entanto, por também respeitar aqueles que se manifestaram contra as cenas exibidas no programa, retiraremos as imagens em questão do episódio. (…) Ao mostrar o abate do animal em uma pequena fazenda, eu acreditava estar chamando a atenção para se conhecer a procedência dos alimentos, para se entender como é a cadeia produtiva do que consumimos. No entanto, qual não foi a minha surpresa ao perceber que, ao invés de passar uma mensagem de conscientização sobre o que comemos, vi surgir o ódio de muitos por mim.”

Voltando mais no tempo, até a Clarice Lispector.

Ela não era vegana, mas talvez por não perceber que poderia ser. Vejam: “Quando penso na alegria voraz com que comemos galinha ao molho pardo, dou-me conta de nossa truculência. Eu, que seria incapaz de matar uma galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando minhocas. Deveríamos não comê-las e ao seu sangue? Nunca. Nós somos canibais, é preciso não esquecer. É respeitar a violência que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo, comeríamos gente com seu sangue. Minha falta de coragem de matar uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me, mas aceito. A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem com sangue. É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida. A truculência. É amor também.”

Ela não percebia que poderia ser vegana e entra em contradições por sua dissonância cognitiva. Presa em seu tempo, ao mesmo tempo oprimida e opressora, tenta justificar o injustificável. A truculência nunca é “amor também”. Nem hoje, nem 50 anos atrás.

Em sua crônica mais marcante, ela conta uma vez em que uma baleia encalhou no Leblon e a população começou a comê-la ainda viva. Clarice fica indignada com a cena:

“Não fui ver a baleia que estava a bem dizer à porta de minha casa a morrer. Morte, eu te odeio. Enquanto isso as notícias misturadas com lendas corriam pela cidade do Leme. Uns diziam que a baleia do Leblon ainda não morrera mas que sua carne retalhada em vida era vendida por quilos pois carne de baleia era ótimo de se comer, e era barato, era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei: maldito seja aquele que a comerá por curiosidade, só perdoarei quem tem fome, aquela fome antiga dos pobres. Outros, no limiar do horror, contavam que também a baleia do Leme, embora ainda viva e arfante, tinha seus quilos cortados para serem vendidos. Como acreditar que não se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação humana, e que coma vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que ainda agoniza, só porque é mais barato, só porque a fome humana é grande, só porque na verdade somos tão ferozes como um animal feroz, só porque queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia, assim como comemos a inocência cantante de um pássaro. Eu ia dizer agora com horror: a viver desse modo, prefiro a morte. E exatamente não é verdade. Sou um feroz entre os ferozes seres humanos – nós, os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a busca e o esforço serão permanentes. E quem atinge o quase impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja santificado. Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício.”

Clarice via como um sacrifício parar de violentar animais, sendo que não conseguia pensar em ser violenta com animais. Tem algo aí dissonante, não? Ela mesmo escrevera sobre defender as vítimas: “Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más”. Em um restaurante famoso de Los Angeles (e, claro, em diversos outros restaurantes pelo mundo), come-se lagosta viva. E polvo vivo. E até camarão vivo. Em alguns países, tira-se o coração de cobras vivas para tomar em uma bebida alcoólica. Clarice continuaria aterrorizada com essa animalidade? Se vivesse hoje, ainda acharia um sacrifício parar com a crueldade?

Algumas vezes ela parece amar animais, outras não. Em uma crônica, ela escreve: “em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’”. Mas em outro texto… “certas comidas requintadas demais estão no limiar do enjoo de estômago. (…) Pois também comida boa tem algo de rude nela (…) carne tem que resistir um pouco aos dentes!”.

A origem de sua dissonância cognitiva (e de todos nós também) vem desde o berço. Isso fica claro quando ela relembra sua infância, quando teve início sua lavagem cerebral carnista (carnismo é o sistema em que vivemos, que nos faz acreditar ser necessário matar animais – menos nossos pets, claro): 

“Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou-lhe: – Nós comemos Petronilha. A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe. – Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena. Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das Minas Gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido. Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina. O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico: era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma presciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo. Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens”.

Pouco tempo atrás, Rodrigo Hilbert começou a fazer receitas veganas em seu programa. Acredito mesmo que Clarice Lispector reduziria sua dissonância cognitiva se estivesse viva hoje, quero acreditar que ela inclusive lideraria o debate ético sobre nossa relação com os animais. Ela, adulta hoje, aceitaria melhor a Clarice criança e defensora deles: “Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo.”

Estamos em um momento em que a ética com animais começa a viralizar e ficar mais acessível. Como disse Victor Hugo, “Nada é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou”. E esse poder está na mão de cada um.

Imagine que você vivesse durante a Revolução Francesa, você ficaria acomodado dizendo que não dá pra mudar o mundo ou lutaria pelo ideal de liberdade?

Imagine que você vivesse durante a Abolição da Escravatura, você ficaria acomodado dizendo que o mundo precisa de pessoas escravizadas ou lutaria pelo ideal de liberdade?

Imagine que nosso momento agora, quando sabemos que não precisamos de animais em nossa nutrição (e vestuário e entretenimento etc.), imagine que você viva nesse momento em que o veganismo está finalmente ganhando força (talvez pulando de 2% para 5% da população?)… Você vai ficar acomodado dizendo que precisa do sabor do bacon ou vai lutar pela libertação animal?

Os animais tentam comunicar seu sofrimento para nós, mas fechamos os ouvidos, ou fingimos que não entendemos. Só por não falarem nosso idioma, consideramos que eles não têm voz. Apenas nós, humanos, podemos lutar, debater, mudar hábitos e passar leis a favor deles. Ou fechar os olhos e ouvidos para toda a crueldade desnecessária. Nós podemos escolher.

As crônicas de Clarice Lispector são de 50 anos atrás. Imagine que, em 50 anos, as pessoas olhem para nossa década de 2020 e vejam a mesma dissonância cognitiva que vemos em Clarice, vejam o mesmo cenário que estudamos sobre a Revolução Francesa e Abolição da Escravatura… Como você gostaria de ser visto pelas pessoas do futuro? Como uma pessoa acomodada pelo prazer do bacon, do rodeio, do queijo de cabra e do casaco de pele? Ou como uma das pessoas que lutaram definitivamente pela libertação animal?

Relembrando da wikipédia o conceito de dissonância cognitiva: “A dissonância ocorre quando existe uma incoerência entre as atitudes ou comportamentos que acredita serem certos e o que realmente é praticado.” Não repita o erro da Clarice. Aja de acordo com o que você acredita. Se você é contra a violência e crueldade, pare de financiá-la. Ou assuma-se como uma pessoa violenta e cruel. 

Não repita a dissonância cognitiva da Clarice ou dos canceladores do Rodrigo Hilbert. Ou você ama os animais e se torna vegano ou assume que só respeita seus pets mesmo, que só ama cães e gatos, que todos os demais são descartáveis e podem ser esfaqueados à vontade. E você, feliz da vida, enquanto degusta seu ovo, queijo, carne, você é quem paga por isso, você é o cruel mandante do crime.

***

Bônus: para registro no livro, durante a pesquisa das crônicas da Clarice, um longo texto sobre o ovo e galinhas e a condição das fêmeas no mundo se destaca (também por mostrar sua luta interna ao amar animais e ainda assim comê-los). O texto todo é maravilhoso, mas vou colar alguns trechos para quem é fã da escritora:

“‘Uma galinha’ foi escrito em cerca de meia hora. Haviam me encomendado uma crônica, eu estava tentando sem tentar propriamente, e terminei não entregando; até que um dia notei que aquela era uma história inteiramente redonda, e senti com que amor a escrevera. Vi também que escrevera um conto, e que ali estava o gosto que sempre tivera por bichos, uma das formas acessíveis de gente.”

“De manhã na cozinha sobre a mesa está o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo apenas: ver o ovo é sempre hoje: mal vejo o ovo e já se torna ter visto um ovo, o mesmo, há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. (…) O amor pelo ovo também não se sente, o amor pelo ovo me é supersensível, não dá para chegar a saber que se sente. A gente não sabe que ama o ovo. (…) Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior tentativa de prova de que o ovo não existe. Pois basta olhar para a galinha para parecer óbvio que o ovo é impossível de existir. E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível pela galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe realmente ovo. Se soubesse que tem em si mesma um ovo, ela se salvaria? (…) É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é nada garantido, mas perderia o ovo em parto prematuro para se livrar de um ideal tão alto. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para cumprir sua missão, mas gostou. (…) A galinha vive como em sonhos. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo. (…) A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de galinha. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso no fundo para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro da galinha é como sangue. (..) e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa. Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. E de repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. (…) A galinha não queria sacrificar sua vida. A que optou por ser feliz. (…) As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um eu sem trégua. (…) Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebrado na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz de meu prazer e de minha dor o meu destino disfarçado. (…) Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. (…) Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-los. Somos os que se abstêm e o renegam. (…) Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. (…) Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em casa um pinto. Veio trazido por mão que queria ter o gosto de me dar coisa nascida. Ao desengradarmos o pinto, sua graça pegou-nos em flagrante. Amanhã é Natal, mas o momento de silêncio que espero o ano inteiro veio um dia antes de Cristo nascer.(…) O pinto, esse piava. Mas Natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorríamos desamparados, curiosos. (…) tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o coração pesado de um amor que já não era mais livre. Também nos desajeitava o medo que o pinto tinha de nós; ali estávamos, e nenhum merecia comparecer a um pinto; a cada piar, ele nos espargia para fora. A cada piar, reduzia-nos a não fazer nada. A constância de seu pavor acusava-nos de uma alegria leviana que a essa hora nem alegria mais era, era amolação. (…) Nós, os adultos, já teríamos encerrado o sentimento. Mas nos meninos havia uma indignação silenciosa, e a acusação deles é que nada fazíamos pelo pinto ou pela humanidade. A nós, pai e mãe, o piar cada vez mais ininterrupto já nos levava a uma resignação constrangida: as coisas são assim mesmo. Só que nunca tínhamos contado isso aos meninos, tínhamos vergonha; e adiávamos indefinidamente o momento de chamá-los e falar claro que as coisas são assim. Cada vez ficava mais difícil, o silêncio crescia, e eles empurravam um pouco o afã com que queríamos lhes dar, em troca, amor. (…) O pinto, esse piava. Sobre a mesa envernizada ele não ousava um passo, um movimento, ele piava para dentro. Eu não sabia sequer onde cabia tanto terror numa coisa que era só penas. Penas encobrindo o quê? Meia dúzia de ossos que se haviam reunido fracos para o quê? Para o piar de um terror. Em silêncio, em respeito à impossibilidade de nos compreendermos, em respeito à revolta dos meninos contra nós, em silêncio olhávamos sem muita paciência. Era impossível dar-lhe a palavra asseguradora que o fizesse não ter medo, consolar coisa que por ter nascido se espanta. Como prometer-lhe o hábito? Pai e mãe, sabíamos quão breve seria a vida do pinto. Também este sabia, do modo como as coisas vivas sabem: através do susto profundo. E enquanto isso, o pinto cheio de graça, coisa breve e amarela. Eu queria que também ele sentisse a graça de sua vida, assim como já pediram de nós, ele que era a alegria dos outros, não a própria. (…) Mas era amar o nosso amor querer que o pinto fosse feliz somente porque o amávamos. Eu sabia também que só mãe resolve o nascimento, e o nosso era amor de quem se compraz em amar: eu me revolvia na graça de me ser dado amar, sinos, sinos repicavam porque sei adorar. Mas o pinto tremia, coisa de terror, não de beleza. O menino menor não suportou mais: – Você quer ser a mãe dele? Eu disse que sim, em sobressalto.”

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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