Semana 24
Vou a uma psicóloga buscar ajuda. No fundo, eu queria muito “desver” as cenas dos matadouros. Meu projeto de vida nunca foi esse, sempre busquei comer mais e mais carne, rodízios de pizza, pudins. Ainda me lembro de quem eu era poucos meses atrás. Será que eu poderia voltar a ser aquela pessoa tranquila, que não via a tortura e o sofrimento animal como algo ruim e desnecessário? Será que, com ajuda de uma especialista, eu conseguiria me “desvirar” vegano?
Marco minha consulta enquanto leio uma psicóloga americana (Melanie Joy) me contar como eu era. Eu conseguia dar prioridade ao sofrimento de cães e gatos (absurdo maltratá-los!), mas ficava indiferente aos animais da indústria da carne: “O fato é que o modo como nos sentimos em relação a um animal e a maneira como o tratamos depende muito menos do tipo de animal que ele é que da percepção que temos dele. Como acreditamos que é adequado comer vacas mas não cachorros, encaramos as vacas como animais comestíveis, os cachorros como não comestíveis e agimos de acordo com isso. E esse processo é cíclico; não somente nossas crenças acabam levando a nossas ações, mas nossas ações também reforçam nossas crenças. Quanto mais comemos vacas e deixamos de comer cachorros, mais reforçamos a crença de que cachorros não são comestíveis e vacas são.”
Entro no metrô. Estou ansioso para falar com a psicóloga, desabafar minhas ansiedades, eu quero voltar para aquele mundo em que eu não achava errado o holocausto animal, o encarceramento, a tortura e morte de 70 bilhões (se contarmos só os terrestres) de animais inocentes, ingênuos, com olhar de desespero. Queria voltar para aquele tempo, em que eu não ligava. Faz parte do ciclo da vida toda essa tortura e crueldade que somos responsáveis, né? Era assim que eu me justificava.
Retomo a leitura da Melanie Joy (no livro “Por que amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas”), ela continua: “O entorpecimento psíquico é constituído de um complexo conjunto de defesas e outros mecanismos, que são onipresentes, poderosos, invisíveis e operam simultaneamente nos níveis social e psicológico. Esses mecanismos distorcem nossa percepção e nos distanciam de nossos sentimentos, convertendo a empatia em apatia – na verdade, o processo pelo qual aprendemos a não sentir é o tema central deste livro. Os mecanismos de entorpecimento psíquico incluem: o ato de negar, o ato de evitar, a rotinização, a justificação, a objetivação, a desindividualização, a dicotomização, a racionalização e a dissociação.”
Será que minha psicóloga teria uma solução pro meu veganismo? Eu quero voltar a negar, evitar, justificar, objetificar e desindividualizar cada animal que vem parar no meu prato após extremo sofrimento. Se a psicóloga entrar bem na minha mente, consegue me “desconverter”? Consegue com que eu pare de me importar com a dor de bois, porcos, galinhas e outros?
Penso que a revolução vegana não seria possível sem os vídeos. As redes sociais, cada vez mais centradas em vídeos e fotos (e daqui a pouco em realidade virtual) vão nos escancarar a violência dos abatedouros, escandalizar cada vez mais, impulsionar e encorajar mais pessoas a abandonar essa crueldade.
Comer carne é cringe. Postar foto de churrasco é cringe. E, a cada ano que passa, será mais. Imagina se os nazistas tivessem TikTok durante o Holocausto? Que absurdo eu comparar com o Holocausto essa tortura e o extermínio que fazemos com animais. Será que a psicóloga me ajuda a parar com essa comparação estúpida? Preciso sair das redes sociais e parar de ver tantos stories de animais sofrendo na indústria da carne e do leite e do ovo…
Li outro dia, de uma psicóloga australiana, Clare Mann, que os veganos vivem em uma vistopia. Uma utopia é quando descrevemos o melhor dos mundos. Uma distopia, o pior dos mundos. A vistopia se dá quando só alguns poucos acham que existe algo de muito errado no mundo.
Na minha mente, é como se vivêssemos em um regime de extrema violência e extermínio de vidas inocentes, mas 95% dos brasileiros apoiam essas práticas. Minha psicóloga precisa me ajudar a parar com essa comparação com nazismo, eu sinto que vivo num mundo de consenso nazista em relação aos animais (sim, os porcos, que têm a mesma capacidade cognitiva de crianças humanas, são mortos literalmente em câmaras de gás!).
Sinto esse consenso maligno no mundo em relação aos animais e, tudo isso, apenas pelos 5 minutos de prazer de esquartejá-los e comermos seus pedaços. Pela ótica das vítimas, elas vivem em um regime de extermínio nazista, nós humanos fazemos as mesmas coisas que Hitler fazia, só que nesse caso com animais, e com o adicional de serem esquartejados e comidos depois. Mas sei que estou errado nessa comparação. Humanos são humanos, não podemos comparar com a violência contra cães, gatos, vacas e porcos, eu preciso que a psicóloga reverta isso na minha mente…
Saio do metrô e ando pela calçada, são algumas quadras até minha psicóloga, ela vai me ajudar, tenho certeza. Enquanto caminho, penso em uma constatação do livro da Melanie Joy: “a característica mais notável de todas as ideologias violentas é a invisibilidade, tanto simbólica (ao não ser nomeada) quanto literal (ao manter a violência fora de vista).” É justamente isso, não quero mais chamar de tortura o que fazemos com 70 bilhões de animais esquartejados vivos por ano, também não quero mais ver essas cenas. A psicóloga vai entrar na minha mente e me fazer voltar no tempo, resgatar aquele meu “eu” antigo, que comia todo alegre seu X-Bacon em paz.
A psicóloga americana, porém, é quem entra na minha mente agora, dissecando meu sentimento: “Há uma enorme mitologia em torno da carne, mas todos os mitos estão, de um modo ou de outro, relacionados ao que me referi como os Três Ns da Justificativa: comer carne é normal, natural e necessário. Os Três Ns têm sido invocados para justificar todos os sistemas exploradores, da escravidão africana ao holocausto nazista. Quando uma ideologia está em seu início, esses mitos raramente são submetidos a exame. Contudo, quando o sistema finalmente desmorona, os Três Ns são reconhecidos como absurdos. Pense, por exemplo, nas seguintes justificativas de ser negado às mulheres o direito de voto nos Estados Unidos: o voto apenas masculino fora ‘definido por nossos antepassados’; se as mulheres passassem a votar, isso ‘causaria dano irreparável… ao Estado’ e ‘o desastre e a ruína cairiam sobre a nação’”.
Estou na sala de espera, sou o próximo. Quero logo conversar com minha psicóloga. Será que ela me poupa da angústia de saber do sofrimento desnecessário dos animais? Por uma porção de calabresa no boteco, será que ela consegue que minha ética se ajuste e eu volte a possuir os “Três Ns” da Melanie Joy? Quero tratar tudo como normal, natural e necessário.
Será que um dia consigo me justificar dizendo que toda a tortura com os animais está correta porque “bacon é vida”? Que eu preciso daqueles 5 minutos de prazer? Que necessariamente faz parte do ciclo da vida?
A psicóloga me chama, deito no divã. Ela pede desculpas, não teve tempo de almoçar, está só terminando rapidinho um sanduíche de pernil e algumas coxinhas que pediu no delivery. Até me oferece uma.
Educadamente, agradeço. Não quero mais que ela me “desconverta”. Sou eu que a entrevisto. Começo então nossa sessão com uma pergunta para ela: “por qual razão, de verdade, doutora, no fundo do seu coração, se toda nutrição está disponível nas plantas, por qual razão você ainda justifica encarcerar, eletrocutar, torturar, estuprar, espancar e esquartejar animais dóceis e inocentes como esses do seu sanduíche?”
(Obs: esse post foi uma obra de ficção, não fui a uma psicóloga. Todas as reflexões, porém, são 100% baseadas em fatos e livros e psicólogas reais)
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.
Muito bom!!!
Coerência e determinação baseadas nos transes mentais…dúvidas!
Eu percebi desde o início que seria uma ficção!!
👏👏👏👏❤