Semana 3
Uma breve pausa na questão da tortura animal (abordada na última semana) para analisar outro ângulo dessa indústria.
Comer carne é caro, é para poucos. Em 2020, o consumo médio no Brasil foi de 30 kg por habitante segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Em uma conta grosseira, se pensarmos que os 50% mais pobres comem no máximo metade dessa quantia, daria pouco mais de 1 kg por mês (uns dois hambúrgueres por semana).
A imensa maioria da população já não come carne com frequência. Portanto, não podemos dizer que essa seja a indústria responsável pela alimentação do país. No mundo, 83% das terras são direcionadas para alimentação animal e 36% das calorias produzidas pela agricultura são direcionadas para fazer ração. Destas calorias, apenas 12% chegam ao consumidor final em forma de carne. Ou seja, em 3 passos:
- essa indústria ocupa terra demais (que poderia estar produzindo calorias para baratear os alimentos vegetais);
- essa indústria não rende (colhemos uma abundância de alimento no campo que poderia ir direto para a mesa, mas direcionamos para ração);
- essa indústria não alimenta nem nos nutre de proteína (atende apenas uma parcela que pode pagar o alto custo de ter carne diariamente na mesa)
- Aqui vale citar o Alysson Augusto (vejam o canal dele no youtube!), que me explicou um ponto interessante: “as fontes primárias de proteína não são fontes animais, mas vegetais, especialmente leguminosas. As rações que damos aos animais, por exemplo, só damos porque contém proteínas (i.e., a cadeia de aminoácidos essenciais que os animais de criação precisam). Focalizar o cultivo de proteínas vegetais não apenas reduz o desperdício energético da cadeia produtiva, como nos nutre com as fontes primárias de proteína. Ao contrário do que a indústria pecuária insiste, a carne animal não é fonte primária de proteína”.
Um estudo da Universidade do Minnesota estima que, se toda a produção da agricultura global fosse para a mesa das pessoas, sem esse desvio para virar ração ou biodiesel, a fome praticamente seria eliminada. Veríamos um aumento de 70% nas calorias disponíveis para alimentação humana. O estudo pode até ser otimista demais, mas passa a mensagem: é como a cena de um balde furado. Tiramos água do poço e ela vaza do balde durante todo o caminho. Quando chega na mesa, sobra muito pouco.
Conclusão: essa mesma indústria consegue ser, além de principal responsável pelo desmatamento e pela emissão de CO2 no mundo, uma das mais improdutivas formas de se colocar comida na mesa das pessoas. Isso sem falar no absurdo consumo de água, uso de antibióticos e risco de pandemias que traz.
Relembrando: estamos fazendo uma pausa na questão ética da tortura animal. Vamos assumir que ela não exista. Então, o cenário é: para manter um estilo de vida intensamente carnívoro para metade da população mundial, a outra metade em parte passa fome e em parte não se nutre adequadamente de proteínas. Não precisava ser assim. Se os incentivos governamentais fossem retirados dessa indústria e direcionados para alimentação vegetariana, a disponibilidade de calorias (e proteínas!) vegetais nos mercados aumentaria, inclusive com redução no preço.
Não industrializamos apenas a tortura animal, mas também a fome. Se a escolha da sociedade tivesse sido por uma alimentação com menos ênfase em carne, talvez o cenário da fome global pudesse ser bastante diferente. Não foi possível no passado, ok, compreendemos, mas será que não é possível para o futuro?
Pensando nos próximos 50 anos, nós, da elite de torturadores de animais, que consumimos mais de 2 kg desse sofrimento animal por mês, precisamos mesmo continuar nesse ritmo? E nós, de maneira mais ampla, como sociedade, não temos maneira mais produtiva de levar nutrição para a mesa das pessoas que não seja esse balde furado da indústria da carne?
Não são pessoas malignas que trabalham e lideram essa indústria, não é nada pessoal. É similar à indústria do petróleo. Pode ter sido uma etapa, uma transição, mas o foco global hoje é de mudar a matriz energética por fontes renováveis. Temos metas ousadas para esse tema. Por exemplo: os EUA anunciaram que, para 2030, pretendem reduzir 50% da emissão de gases poluentes.
Será que, além da tortura animal (não é nosso tema hoje), quando pensamos nessa indústria como geradora de fome, poderíamos também ter metas e incentivos governamentais ousados? Precisamos de um Acordo de Paris para a carne! Ou melhor, por sermos os maiores exportadores, poderia ser um Acordo de Manaus.
Que tal essa indústria se comprometer em, nos próximos 20 anos, reduzir em 50% seus produtos de origem animal, compensando pela venda de carne de laboratório (essa do “futuro”) ou mesmo produtos acessíveis de proteína vegetal?
Por fim, indo um pouco mais além, que tal se também as grandes redes de fast food e varejo se comprometessem nesse sentido, talvez em 2050 ter menos de 50% de suas vendas globais ligadas a produtos de origem animal? E, nessa transição, já se comprometerem a comprar 100% dos ovos de fornecedores que criam as galinhas livres de gaiolas? Ou mesmo garantir todas as compras só de fornecedores com os mais baixos índices de tortura animal?
Nesse último caso, poderíamos ter vídeos “ao vivo” dos galpões onde os animais vivem (sem câmera na parte do abate ou onde há sangue, claro). Temos cozinhas abertas para o cliente ver a limpeza e o processo de produção, não? Então por que evitamos baixar as paredes dos galpões de frangos e suínos? A tecnologia é barata e os clientes poderiam ver como os animais vivem, brincam, passam o dia e se alimentam felizes da vida. Não temos nada a esconder se os fornecedores são certificados, certo?
Várias ideias estão aí. Não é um cenário utópico quando se analisa o tema sem a paixão pelo bacon. E os problemas do início desse texto (sem nem citar tortura animal) não vão mudar sem a parceria e a liderança da própria indústria alimentícia. Fica o desafio para o “first mover takes all” desse mercado. Quem se habilita?
Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. Seus últimos livros são “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “Por toda vida, Carolina” (e-book Amazon).