O mundo invertido e a meta-senciência

Semana 32

Algumas semanas atrás, participei de um protesto na Avenida Paulista contra a exportação de animais vivos para o abate. Trata-se da campanha Exportação Vergonha, da Mercy for Animals. Mesmo carnistas desaprovam essa “tortura extra” de 4 semanas em navios superlotados antes do esquartejamento, muitos carnistas concordam que o correto seria esquartejar antes dessa tortura extra. Então, antes de prosseguir no texto, clique no link acima e assine a petição. 

Clicou? Obrigado. Agora, vamos ao mundo invertido.

Imagine que o mundo já fosse 100% vegano e, algumas semanas atrás, passeando pela Avenida Paulista, eu visse um grupo protestando exatamente o contrário: “queremos poder torturar, esfaquear e esquartejar animais para comer!”. Placas e cartazes mostrando carnes penduradas em açougues, caras pintadas de sangue, “é nosso direito! é nosso paladar! bacon é vida!”. Seria estranho, não? Você faria parte dessa manifestação de uma minoria violenta?

Pois o mundo ainda é só 3% vegano. Por que você ainda faz parte da maioria violenta?

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O Brasil já é 100% vegano em relação a comer cães e gatos. Então, para a leitora se conectar, imagine esse protesto, hoje, com placas pedindo o direito de reproduzir em cativeiro e esquartejar cães e gatos para virarem churrasco. 

Como se sentiu? Imagine cães e gatos em celas escuras, hiperlotadas, levando choques, pontapés, sendo separados das famílias, vivendo com doenças, levando injeção de hormônios para engordarem mais rápido, levando marteladas na cabeça ainda crianças, amassando seu crânio até morrerem. Horrível, né?

É assim que nós, os 3% veganos, nos sentimos quando você fala que bacon é vida.

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Muita gente traz o exemplo da ilha deserta, para ver se o vegano comeria carne. Ok, depois de comer todas as plantas possíveis, eu talvez matasse o porco ou o cão ou o gato para comer e suportar mais uns dias de vida até o resgate chegar. Mas a pergunta é inversa: e se você NÃO vivesse numa ilha deserta? 

Olha a boa notícia: você não vive! A questão da ilha deserta é totalmente ficção. A questão de você NÃO viver lá é pura realidade. Os mercados e as feiras estão cheios de opções variadas e saudáveis (e junks também se quiser).

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Mas, ok, tem sempre a situação-limite, e se não tivesse opção, seria imoral comer um animal? Em um texto anterior, chamei atenção para a diferença do veganismo (que evita a violência com animais “na medida do possível e praticável”) para o antiespecismo que, em sua forma mais pura, diz que você deveria morrer de fome nessa situação-limite.

Não tenho solução filosófica, mas gostaria de propor uma metáfora poética. 

O grande ponto do respeito ético com os animais é a senciência, não a vida. Vida, até plantas têm. A senciência é a capacidade do animal sentir (seja dor, medo, felicidade, apego etc.). Eles têm consciência desse sentimento e, por isso, devem ser tratados como “alguém”, não como “algo”.

Essa senciência pode ter alguma gradação. Segundo Darwin, a consciência do sofrimento dependeria da complexidade do cérebro, não de termos um cérebro mais especial que o dos animais: “Não existe nenhuma diferença fundamental entre o ser humano e os animais superiores em termos de faculdades mentais. A diferença entre a mente de um ser humano e de um animal superior é certamente em grau e não em tipo”.

Mas não vou entrar na polêmica de existir uma escala de senciência, deixo isso para os filósofos acadêmicos. Só quero buscar uma metáfora para como vejo, hoje, o que difere os animais humanos e não-humanos: vou chamar de meta-senciência. 

Por não possuírem sistema nervoso central, há uma polêmica se ostras, mariscos e outros bivalves são sencientes. Alguns veganos comem, outros, não. Assumindo que não sejam, o grande fator para a conduta ética seria essa capacidade de sentir dor.

Todos os demais animais são sencientes. Então, o que seria a meta-senciência dos animais humanos? Seria a capacidade de sentir dor com a dor alheia. Ora, mas isso os animais também sentem. Sim, mas não com um sistema nervoso central que conecta espaço e tempo. Temos empatia com a dor alheia seja aqui, seja no outro lado do mundo, seja num passado longínquo, seja num futuro próximo.

Sentimos dor e alegria não só conhecendo histórias e experiências familiares, ou de vizinhos, somos capazes de nos entristecer com tragédias em qualquer país, sentimos dor quando uma ditadura toma o poder e aprisiona e oprime seu povo, sentimos dor quando ouvimos histórias de soldados nas guerras, sentimos alegria quando sabemos o final feliz de uma família de refugiados se encontrando em uma nova cidade. Sentimos dor e alegria até com coisas “abstratas” como saber que os direitos humanos foram retirados de alguns povos, que a democracia ruiu ou que se perdeu uma obra de arte que nunca mais será recuperada.

Nossa meta-senciência também navega pelo tempo, seja ouvindo histórias do Holocausto, da Escravidão, seja lendo sobre a descoberta da Teoria da Relatividade ou da Evolução. Ficamos tristes com a destruição de registros históricos, mas também emocionados com pinturas rupestres de milhares de anos.

Esse sistema nervoso central em rede que une todo o espaço-tempo também se chama ARTE. É como nos expressamos, como nos conectamos com expressões passadas, como registramos expressões para o futuro, contamos histórias, guardamos conhecimento, escrevemos literatura, música ou filosofia. 

Impulsos elétricos de um ser humano saltam para uma folha de papel (ou um vídeo, ou um som) que atravessa continentes e séculos gerando impulsos elétricos no cérebro de outro ser humano. E continuarão gerando impactos e modificações de ideias e comportamentos no futuro. Sejam comportamentos individuais, sejam coletivos. Quem escreveu a Bíblia ou a Declaração dos Direitos do Homem ou a Fórmula de Bhaskara (ou uma música-chiclete qualquer) que o diga! 

É justamente essa meta-senciência que criou o conceito de ética e que nos leva a ser veganos, a lutar por abolir a exploração dos animais sencientes. E nos impulsiona a fazer isso de todas as formas possíveis, seja na rua, seja num blog. 

Então, sim. Se há um salto de senciência do porco para a ostra, há outro salto de senciência do porco para o ser humano. A meta-senciência.

Todos os animais, nesse sentido, seriam como ostras, sem essa dor extra que varre séculos e continentes (e em breve planetas), nem também essa alegria extra que varre séculos e continentes (e em breve planetas).

A senciência diz respeito quase completamente ao próprio umbigo e implica em revisão da ética com que tratamos os animais não humanos. Eles têm seus umbigos, seus interesses, seus sonhos, dores e alegrias que devem ser respeitados. 

Mas a meta-senciência sai do próprio umbigo, ela nos leva a pensar como nos importamos com outros sofrimentos e alegrias, e esse é o traço que difere os animais humanos dos não-humanos, é o que nos dá agência moral para nos importarmos e sairmos do “isso é natural, instinto, bacon é vida, não preciso me preocupar”, nos dá mais responsabilidade em relação aos outros animais e, também, nos permite priorizar humanos em situações-limite em relação aos animais. 

Opaaaa, priorizar??, coooomo assim? 

Em uma situação-limite, você morre de fome, mas não come o bebê do vizinho. Em uma situação-limite, você comeria um porco antes de morrer de fome. 

E o que explica isso, o traço que define podermos moralmente comer um porco e não um bebê é nossa meta-senciência. Criamos uma ética comum de não querermos viver em um mundo canibal, em que pessoas roubam outras pessoas para comerem. E não é só a pessoa “comida” que sofreria. Em todos os cantos do mundo, essa história seria ouvida com horror. Em outros séculos também. Geraria sofrimento em um número maior de seres sencientes. 

Nosso sistema nervoso central que varre todo o espaço-tempo continuará gerando dor sobre a história de um humano que roubou um bebê para comer. Ou que gerou um para servir de alimento. Mas, mesmo que o mundo fosse 100% vegano, em um caso limite, a meta-senciência não acharia imoral alguém ter matado um porco para comer, preferindo deixar o bebê vivo.

É esse “eco de dor universal e atemporal” que justifica (na minoria absoluta dos casos! por favor!) não estarmos sendo especistas ou imorais ao matar um animal não humano para servir de alimento emergencial. Não estaríamos sendo imorais ao matar um peixe, uma galinha, um cão ou um gato, se a outra opção fosse matar uma criança ou morrer de fome.

Se vivêssemos em um mundo 100% vegano, era esse tipo de discussão mais profunda e sofisticada que estaríamos tendo. Mas não. O mundo ainda é 97% injustificavelmente e imoralmente carnista. Temos tecnologia, conhecimento e recursos para viver sem explorar, torturar e esquartejar animais sencientes. Não estamos em nenhuma situação-limite. 

Aliás, se todas as terras destinadas à criação de animais (e plantação de soja/milho para ração) fossem destinadas à agricultura, poderíamos alimentar o dobro da população global com 100% da nutrição necessária, 100% com plantas como feijão, arroz, grão de bico, couve, lentilhas, tomates, batatas, mandiocas, beterrabas, mamões, bananas, abacates, amêndoas, sementes de girassol, linhaça, chia, quinoa, cacau, açaí.

A meta-senciência de muitos animais humanos ainda não “acordou” para o terrível sofrimento desnecessário dos animais sencientes. Num futuro distante, animais humanos esclarecidos vão se envergonhar do que 97% da população mundial fazia com animais indefesos até 2022, 2030, 2040… 

Quando vamos parar? Quando vamos perceber, por nossa meta-senciência, que nos envergonharemos no futuro com a violência absurda e desnecessária que fazemos no presente? 

***

Nota de rodapé para quem gosta de uma lógica mais estruturada. Um grande amigo filósofo antiespecista que leu meu texto e tentou traduzir em premissas/conclusões mais ordenadas:

Premissa 1: o que torna alguém moralmente relevante é sua capacidade de ser prejudicado ou beneficiado a partir de uma perspectiva de primeira pessoa (por ex., ter a noção de que “eu estou sofrendo por isto” ao ter uma faca empurrada contra seu corpo).

Premissa 2: animais sencientes (humanos e não-humanos) são capazes de ser prejudicados ou beneficiados por ações de terceiros.

Conclusão 1: animais sencientes (humanos e não-humanos) são moralmente relevantes.

P.3: quanto maior for a capacidade de ser prejudicado ou beneficiado, maior a relevância moral de um indivíduo.

P.4: humanos são animais sencientes com uma capacidade de empatizar com outros animais sencientes em um grau aparentemente maior que os não-humanos, por terem criado um “sistema-nervoso central global que ultrapassa a barreira espaço-tempo”: denominado de meta-senciência (que inclui todo tipo de registro artístico, histórico, filosófico, político). 

P.5: os humanos são animais sencientes não limitados ao “aqui e agora”, são capazes de empatizar com histórias de outros povos, outras espécies, outros séculos.

P.6: humanos conseguem somar em suas próprias experiências subjetivas as experiências de terceiros (a partir de neurônios espelho impulsionados pela meta-senciência), tornando ainda mais intensa a sua percepção pessoal de prejuízos e benefícios e não se limitando ao “aqui e agora”.

Ex: temos empatia pelas vítimas do Holocausto, Escravidão, Ditaduras e todo tipo de violência, tanto contra animais humanos quanto não humanos. Sofremos e lutamos pelo veganismo pensando nas vítimas ainda nem nascidas, que sofrerão toda a tortura da indústria animal.

Conclusão 2: humanos sencientes possuem maior capacidade de experimentar prejuízos e malefícios (meta-senciência) e são moralmente relevantes num nível mais elevado que outros animais.

P.7: em casos de disputa moral, em que temos de decidir entre quem vive e quem morre, devemos priorizar a vida daqueles que seriam mais capazes de ser prejudicados pela interrupção de suas vidas.

P.8: pela meta-senciência também se referir a conceitos abstratos (perda de direitos, queda de democracias, restrições sobre liberdades individuais), animais humanos também sofrem e sofrerão para sempre, por meta-senciência, ao saber de histórias que violentem esses conceitos. 

P.9: em regra, por meta-senciência, humanos têm mais a perder pelo fim de suas vidas (ou de seus conceitos abstratos em sociedade) que animais não-humanos.

Conclusão 3: em regra, salvar a vida de humanos (em qualquer estado de saúde, físico ou psicológico) ao invés de animais em situações extremas e dilemáticas, onde não há outra alternativa, pode ser a coisa certa a fazer.

Enfim, nada disso, acima, justifica como moral os casos de especismo em situações não dilemáticas.

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Fim do rodapé. 

Agora assine a petição Exportação Vergonha, da Mercy for Animals. Exportar animais vivos enclausurados por 4 semanas em celas superlotadas, só para serem esquartejados em outro continente não é uma situação dilemática. 

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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