Globo Rural, o Vaqueiro Daniel e os trabalhadores

Semana 31

“Se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, de certo o fez mais perversamente, mais covardemente sanguinário que antes… hoje, embora considerando o derramamento de sangue uma coisa abominável, entregamo-nos a essa abominação, ainda mais frequente do que antes”. Dostoievski (Notas do Subterrâneo)

Desde que iniciei a transição, tenho assistido ao Globo Rural quase todo domingo. É interessante a diferença entre reportagens de plantas e de animais. O clima é lindo nas plantações de cenoura, abacate, feijão, maracujá, mandioca, beterraba… O clima é estranho nas monoculturas de soja, já que 80% vai para ração animal e também é exportada… 

O clima é distópico nas criações de animais. Ainda lembro do meu “eu antigo”, de não sentir nada nem achar injusto o tratamento com porcos, vacas, galinhas. Hoje, vejo a naturalidade dos repórteres e dos criadores e não consigo entender como não percebem o absurdo que estão fazendo.

Domingo passado (13mar), porém, uma cena me chamou atenção. Uma “liga” de criadores preocupados com o bem-estar animal fazia massagem em bezerros. Uma fazenda que engravida à força vacas e rouba seus filhos para vender como carne de vitela, abate ainda crianças, essa fazenda se orgulha de fazer massagem nos bezerros para acalmá-los.

Vamos fingir que carne de vaca fosse essencial na alimentação humana. Ainda assim, mesmo que isso fosse verdade (está longe de ser!), qual justificativa dar a uma indústria que mata crianças? Os bezerros não podem nem crescer e viver um pouco? Por causa de 5 minutos de prazer com carne de criança, os agricultores vêem um ótimo mercado e engravidam as vacas seguidamente, todo ano (ela fica grávida por 300 dias, aí o filho nasce e é sequestrado, aí deixam-na mais 1 mês se recuperando e já a engravidam de novo). Mesmo que a carne fosse estritamente necessária para nossa alimentação, a crueldade com as crianças das vacas não se justificaria.

Nem mesmo oferecendo massagem nas crianças para ficarem menos tensas…

Mas o texto de hoje não é sobre a criação de bezerros de corte, é sobre o Vaqueiro Daniel. Nessa fazenda preocupada com o bem-estar dos animais, eles não podem levar chutes nem xingamentos nem pauladas, como a imensa maioria das outras fazendas. Isso fica claro quando o Vaqueiro Daniel, aos 4 minutos da reportagem, dá seu depoimento: 

“Eu achei que era do mesmo jeito das outras fazendas, né. Depois de uns 6 meses é que fui pegando o jeito”. 

A repórter então questiona: “Você acha que esse jeito de tratar os animais mudou alguma coisa em você?”

Vaqueiro Daniel: “Mudou, vish! Até em casa a gente muda o jeito de conversar com a esposa… Ela falou ‘o que foi que houve? Acabou até o estresse que você tinha dentro de casa?’, falei ‘deve ser o jeito na nova fazenda de trabalhar, né… parei de xingar, não xingo mais, né, graças a deus…”

Tem muito emprego em péssimas condições no mundo, mas como será que é a mente de quem passa anos chutando animais em fazendas? E quem trabalha em abatedouros? Todo dia se sujando de sangue no meio de tortura e gritos desesperados de dor? Como esse funcionário não perde a sensibilidade até com outros humanos? O Vaqueiro Daniel nem trabalha em abatedouro, mas sua esposa já percebeu como ele melhorou no tratamento em casa com a família.

Já li depoimentos de muita gente que não aguentou e saiu desse tipo de trabalho. É muito traumático torturar vidas inocentes assim. Quem consegue se manter, ficaria totalmente perturbado se não criasse uma “casca” para ficar insensível. Essa casca seria basicamente não ver mais esses animais como vidas, como seres cheios de sentimentos, medo, apego, dor. 

Naturalmente, deve ser (e é, pode procurar) uma das indústrias que mais causa transtorno do estresse pós-traumático. Vejo, por câmeras escondidas no filme Dominion, as cenas de violência gratuita desses trabalhadores com os animais. Parece que estão descontando em algo, parece até um exercício forçado, uma tentativa de entrarem no papel de maus para não lembrarem que estão sendo maus, esquecerem de que são vidas sencientes ali, que sofrem e percebem muito a dor que sofrem.

Encontro esses bastidores também em vários romances sensacionais da premiadíssima Ana Paula Maia. Não tenho ideia se ela é vegana, mas seu protagonista é especializado em abater porcos e bois. Segue um trecho do seu livro “De Gados e Homens”, vale muito a leitura::

“[No matadouro]

— Como é matar boi o dia inteiro? O senhor não acha que isso é assassinato? O senhor não acha que sacrificar esses animais é crime?

— Acho.

Todos permanecem em silêncio.

— Então o senhor se considera um assassino?

— É.

A curta resposta cala a mulher e garante a quietude dos demais.

— A senhora já comeu um hambúrguer?

A mulher responde que sim com a cabeça.

— E como a senhora acha que ele foi parar lá?

[…] Ele entrega a marreta para a mulher.

— A senhora pode descobrir se quiser. […] Se quiser fazer o seu próprio hambúrguer, o processo começa aqui.

A mulher larga a marreta no chão e começa a chorar.”

**

Isso porque o personagem nem pediu para ela martelar a cabeça de um bezerro, que é produzido à força, à base de estupros, na fazenda onde trabalha o Vaqueiro Daniel. 

Que bom que, pelo menos em casa com a família, o Vaqueiro Daniel está menos violento. O Globo Rural, não. Continua com reportagens distópicas. Sonho com o mundo em que o programa só tenha pauta com plantas. É sonhar demais?

PS: existem também criadores mais cuidadosos com os animais. Vejam essa youtuber mostrando como matar uma galinha com carinho. Não tem ironia aqui nem é ataque à ela, que é super honesta e cuidadosa. É a prática em si que é absurda. Não existe como matar com carinho.

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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