Antiespecismo: seja 100% vegano

Antes de iniciar a transição, eu nunca tinha ouvido falar de antiespecismo, relativo ao especismo, um termo “criado por Richard Ryder, um psicólogo defensor do direito dos animais, nos anos 50, cuja popularização aconteceu através da obra Animal Liberation, lançada em 1975 pelo filósofo Peter Singer.” 

Semana 30: Seja 100% vegano, mas apenas 98% antiespecista

Geralmente, o especismo é usado para explicar de um jeito simples como devemos considerar moralmente os animais. Usa-se muito comparando com racismo, machismo etc. Pessoas brancas não são superiores nem devem ter privilégios sobre pessoas negras. Homens não são superiores nem devem ter privilégios sobre mulheres. Busca-se igualdade (e equidade) quando se fala de racismo, machismo, xenofobismo, capacitismo, etarismo etc. 

O especismo entra nessa linha: Se é errado você discriminar ou justificar a exploração de um ser vivo com base em sua cor ou seu gênero, também seria errado explorar/violentar/acorrentar/matar um ser vivo com base em sua espécie.

Hoje, a maioria da população justifica acorrentar vacas, engravidá-las à força, matar seu filho e roubar o leite que iria para ele. E justifica isso simplesmente por prazer e, principalmente, por elas serem vacas. Se fossem humanas, achariam uma violência absurda. Aquela vida feminina, com seu útero, teve o azar de nascer na espécie errada. Como são vacas, nosso especismo diz que o útero dela é nossa propriedade para fazermos o que quisermos, até sua produtividade ser esgotada e ela levar uma martelada na cabeça e virar hambúrguer.

Uma pessoa 100% especista justifica suas ações em relação aos animais com base em sua espécie: sou superior e espécies inferiores estão sob meu domínio. Assim como racistas e machistas acreditam que podem mandar/governar/explorar outros que não são de seu gênero ou cor.

Ótimo. Um conceito útil até aqui. Como uma metáfora, o especismo nos coloca “no lugar” correto. Não ficamos acima das outras espécies, somos parte de um todo igualmente importante com elas (e inclusive com o restante do meio ambiente). Não temos direito de torturar e ser cruel e dominar outras espécies assim como não temos direito de torturar e ser cruel e dominar outros seres humanos.

O “problema” do antiespecismo

O problema (gravíssimo) começa quando saímos da metáfora e tomamos o antiespecismo como um sistema ético a ser seguido e governar radicalmente (100%) nossas escolhas. Racismo, sexismo, homofobia, etarismo (et al.) são imorais e errados em qualquer situação. O especismo, não. Ou não deveria ser.

Antes de explicar o problema (gravíssimo), preciso deixar claro: sou leigo em filosofia, apenas debato por prazer e busca de conhecimento. O único “tijolo” filosófico que já li foi a Ética de Espinosa (e ainda tive de fazer um curso grande pra entender o livro quase indecifrável). 

Se sou leigo em filosofia, sou ainda mais leigo em especismo.

Meu conhecimento do termo vem de algumas conversas descompromissadas com dois amigos antiespecistas, pesquisas rápidas na internet e dois vídeos que eles me enviaram para dar uma geral no conceito. E foi, num desses vídeos, que me “revoltei” com o problema de este termo ser igualado a racismo e sexismo (e outros). 

Então, deixando claro: esse texto é apenas exploratório e sem academicismo algum. Não tome como um ataque individual a ninguém, apenas uma provocação filosófica de um leigo que, se tivesse lido o suficiente, talvez nem achasse esse problema gravíssimo e, talvez, nem achasse realmente um problema. O movimento antiespecista é muito importante, leva a leis positivas em defesa dos animais, o conceito é super útil e deve ser disseminado, mas…

Vamos ao vídeo polêmico.

Em 98% dos casos, concordo com o antiespecismo. Mas, no vídeo, um antiespecista chega ao exemplo extremo (esses 2% que me incomodaram): se você estivesse no meio do nada, sem outras escolhas, poderia matar um animal para comer? O antiespecista diz que seria um ato imoral você matar um animal, a resposta ética seria morrer de fome. Aliás, esse é exatamente o título do vídeo: “Por que é imoral matar e comer animais para sobreviver”.

Até ouvir essa lógica, eu achava que o conceito só trazia coisas boas para a “veganização” do mundo. Após esse vídeo e algumas das conversas que tive, mudei de opinião. Em 98% dos casos, sim. Em 2%, não.

Em situações-limite, o especismo não pode ser comparado com sexismo, racismo e afins. Como caminho ético para guiar suas escolhas na vida, o veganismo é melhor e mais correto que o antiespecismo. Este último vai taxar você de imoral em algumas situações-limite; o primeiro, não.

Então, novamente, e pela última vez, o aviso: este texto não busca (nem vai tentar tecnicamente) refutar o antiespecismo. Concordo com ele em 98% dos casos. Busco apenas criticar os últimos 2%, pois entendo que aí o sinal deveria inverter: não consigo afirmar ser imoral comer um animal, e não um humano, para sobreviver. Essa ação é especista, sim, mas aqui o sinal moral precisa ser invertido, precisa ser moralmente aceitável. Senão é uma ética que não ajuda a guiar escolhas nesses momentos, é impraticável como dizer que “você é imoral por não conseguir voar ou por não conseguir voltar no tempo e consertar erros do passado, como você vive assim com essa consciência?”.

Exemplificando minha crítica aos 2% do antiespecismo

Imagine um esquimó isolado que não tem condições de se mudar para uma região com abundância de vegetais e suplementos. Ele só pode comer os peixes que caça e algumas poucas opções de planta do mercadinho da vila.

O antiespecismo vai chamá-lo de imoral. O veganismo, não.

Um morador de rua que só consegue comida com doações. Se ele comer uma carne doada…

O antiespecismo vai chamá-lo de imoral. O veganismo, não.

Uma comunidade isolada que não tem acesso a suplementação de B12 e mata animais para comer (mesmo que o mínimo possível).

O antiespecismo vai chamá-lo de imoral. O veganismo, não.

Mesmo uma pessoa morando em São Paulo, por exemplo, com fácil acesso a alimentos diversificados e suplementações. Imagine que o suplemento de vitamina B12, o único obrigatório em uma alimentação vegana, não fosse baratíssimo (centavos por dia) como é hoje.

Imagine que custasse R$ 20 mil por mês e o salário dela fosse R$ 2 mil.. Se ela se dedicasse ao máximo em reduzir o consumo e exploração de animais e comesse, sei lá, um mínimo de carne ou queijo possível só pra garantir a B12 diária necessária…

O antiespecismo iria chamá-la de imoral. O veganismo, não.

Por que o veganismo funciona em 100% dos casos e não te condena como um ser imoral nessas situações? Porque está ancorado na realidade. Relembremos a definição (pinte ela na porta de casa para ler todo dia):

“O veganismo, segundo definição da Vegan Society, é um modo de viver (ou poderíamos chamar apenas de “escolha”) que busca excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais – seja na alimentação, no vestuário ou em outras esferas do consumo.”

O antiespecismo, se fosse light e tivesse uma definição parecida (“na medida do possível ou praticável”), seria tão correto e praticável e não radical quanto o veganismo. Sem isso, em situações-limite, perde toda a qualidade de “te apoiar ao decidir o que é o certo” e se torna até perigoso ordenando que o correto, sem outra alternativa, seria você morrer de fome/desnutrição. O “100% antiespecista” pode dizer que você é imoral até por deitar no sofá e matar os ácaros (“que imoral, você não sufocaria um humano para tirar um cochilo, como faz isso com ácaros?”).

Mais alguns exemplos um pouco diferentes agora:

Em um incêndio, se você só pode salvar uma vida e a escolha se dá entre um ser humano e um cão, e você escolhe o ser humano…

O antiespecismo vai chamá-lo de imoral. O veganismo, não.

(aqui, o antiespecismo talvez dissesse pra você “jogar na sorte”, ficar cego para as diferenças entre as espécies, e, se o ser humano tiver azar no cara ou coroa, vai morrer queimado enquanto vê o cão sendo salvo).

Imagina se o bombeiro do seu bairro segue 100% do conceito antiespecista?

Em um incêndio, de novo, se você só pode salvar uma vida e a escolha se dá entre um cão ou 42 grilos, e você escolhe o cão…

O antiespecismo vai chamá-lo de imoral se priorizar o cão e não dar a mesma chance de salvamento aos 42 grilos. Afinal, não é a espécie que deveria te guiar na escolha.

Nesses cenários de incêndio, entre salvar um gato ou um porco ou uma vaca ou 300 mil vespas ou 2 milhões de baratas, você não é livre para decidir pelo animal que mais tem afinidade (ou pelo animal mais complexo ou mais próximo de nós, animais humanos). Você precisa ficar indiferente entre as espécies, tirar na sorte. Talvez salvar as 2 milhões de baratas e deixar morrerem o gato, o porco, a vaca e as 300 mil vespas.

Percebem como o especismo é ótimo em 98% dos casos, mas, nesses 2% de situações-limite, deixa de ser uma metáfora para racismo, machismo e outras formas de opressão? Vira uma viagem teórica absurda (opa, me exacerbei), impraticável e, se praticada, até perigosa.

A maioria dos comentários no vídeo aplaude a lógica “100% antiespecista”, mas achei um comentário bem interessante. Ele compara à matemática. Você pode realizar infinitas divisões entre infinitos números, mas nunca pode dividir por zero. Está aí, na própria matemática, a explicação de que uma regra não precisa ser a mesma para 100% dos casos (obrigado comentarista anônimo!), podemos aceitá-la só em 98%.

“Corrigir” o conceito de especismo seria uma pretensão ridícula sendo leigo no método filosófico, então nem vou tentar. O que eu busco mostrar é essa diferença em relação ao veganismo, que, como um caminho de escolhas éticas com animais não humanos, respeita as diferenças e os contextos de vida de cada um.

Como colocado no início, o objetivo desse texto não é atacar ninguém nem se opor ao antiespecismo, que é muito útil como movimento e importante como metáfora para nos tirar do conforto de nos acharmos superiores, para nos impulsionar a respeitar as diferenças e particularidades de cada espécie, para deixar claro quão imoral é aprisioná-las, explorá-las, esquartejá-las, por mais que seja uma borboleta, um grilo, um polvo, uma lagosta, um cão, um porco, uma vespa, uma vaca ou um animal humano. 

Este texto busca apenas trazer uma provocação sobre não nos comportarmos como extremistas em alguns conceitos teóricos. Isso pode, principalmente em debates públicos, afastar ainda mais as pessoas do veganismo. 

O que o especismo chama de imoral em alguns casos deve ficar somente em discussões filosóficas puramente teóricas, exercícios livres de debates e aprendizados comuns. A ética antiespecista “ao pé da letra” talvez não deva mesmo vir às ruas e aos debates públicos, pois só vai atrasar mais o grande objetivo que é a libertação animal, que é acabar com a nossa exploração, toda nossa crueldade desnecessária com os animais.

Para o debate público, fiquemos apenas com o “100% veganismo” como um guia para escolhas éticas. 

Podemos ser radicalmente veganos nas nossas discussões. Sem medo. 

Afinal, o “radicalismo” vegano sempre vai respeitar o conceito de “na medida do possível e praticável para cada um”. O radicalismo vegano nunca vai chamar de imoral algumas escolhas de pessoas que, naquele momento, não tenham outra escolha a fazer.

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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