O Veganismo é uma seita?

Semana 5

O culto “Peoples Temple”, no final da década de 70, talvez seja um dos mais famosos da história. O líder Jim Jones convidou em torno de mil seguidores a se mudarem da Califórnia para a Guiana para construir uma sociedade utópica e autossuficiente. A situação evoluiu para um absurdo do líder convencer todos a se suicidarem juntos. Os mais de 900 cadáveres espalhados pela grama representam o maior suicídio em massa da história.

É perigoso entrar em um culto, não? Desde que comecei a falar de virar vegano, amigos e familiares já me pediram para ter cuidado, porque os veganos são fanáticos e o veganismo seria uma espécie de seita (vou usar como sinônimo de culto nesse texto).

Então, fui buscar entender o que caracteriza uma seita. Não quero virar “vegano” e ficar preso a algo tão perigoso e depois nunca mais conseguir sair e acabar com minhas relações sociais, minha autonomia etc. Assisti ao capítulo “Cultos” da série “Explicando” da Netflix para entender do que se trata.

Após o suicídio em massa dos seguidores do Peoples Temple, diversos cientistas sociais estudaram o evento, além dezenas de outros grupos parecidos, e chegaram a 3 principais características. Um culto…

  1. … Possui um líder carismático e autoritário, muitas vezes conectado a supostos poderes religiosos (ou alguma energia abstrata);
  2. … Possui algum programa de doutrinação e controle da mente para segurar os “fiéis”;
  3. … Possui algum tipo de exploração financeira e até sexual de seus membros.

Baseado nesses três pilares e em outras informações contidas no episódio da Netflix, comparo abaixo os dois grupos nesse pseudo Fla-Flu que vivemos quando se trata de consumir ou não produtos de origem animal. (importante: este artigo é endereçado apenas a seitas/cultos. Esta metodologia de análise não se aplica para religiões como cristianismo, islamismo, religiões de matrizes africanas, indígenas, asiáticas etc. O próprio episódio da Netflix citado aqui deixa isso claro).

  • Em seitas, as pessoas justificam o uso da violência em seus rituais como algo natural. Carnismo 1 x 0 Veganismo.
    • Toda a luta do veganismo é justamente para eliminarmos essa violência do ritual carnista.
  • Indo além, em muitos cultos são admitidos sacrifícios de vidas de animais e, nos mais radicais, até de humanos. Carnismo 2 x 0 Veganismo.
    • Essa foi a mais óbvia pelo exemplo do Peoples Temple. Próxima.
  • Há geralmente um líder ou símbolo de “adoração” que leva seus seguidores a uma relação apaixonada. Carnismo 3 x 1 Veganismo.
    • Nesse caso, ambos marcam pontos. Os líderes apaixonantes dos carnistas são bife, bacon, nuggets etc. Os líderes carismáticos dos veganos são os animais que foram executados para virar esses alimentos.
  • Os seguidores sofrem lavagem cerebral para acreditar e se portar como os líderes do culto desejam. Carnismo 4 x 1 Veganismo.
    • Os veganos insistem para os carnistas assistirem a vídeos reais da tortura e do processo de abate dos animais que eles consomem. Essa insistência geralmente é o que leva os veganos a serem tidos como “chatos”. Mas esse acesso a vídeos sem edição e informação real não pode nunca ser visto como lavagem cerebral. Então, veganos não marcam ponto aqui.
    • Do lado da carne-queijo, temos talvez os maiores investimentos de marketing e propaganda do que em qualquer outra indústria. E pior, 100% dessas peças publicitárias escondem como os animais são tratados e abatidos, escondem como vivem e são torturados, passam apenas imagens paradisíacas de vaquinhas felizes no pasto, de frangos cantando, de porcos “sorrindo” para a câmera. Aqui, temos claramente a busca por influência de comportamentos por meio da edição de imagens e informações. Ponto claro para a lavagem cerebral do carnismo.
  • Há exploração financeira de seus membros. Carnismo 5 x 1 Veganismo.
    • A indústria da carne possui muito maior força de lobby para garantir incentivos tributários e empréstimos subsidiados do governo que a indústria de produtos veganos. Também conseguem fugir de pagar multas e de se responsabilizar pelas péssimas externalidades negativas que geram (desmatamento, poluição, contaminação de rios, riscos de pandemias e, claro, muito sofrimento animal).
    • Aqui, a exploração “financeira” se dá para a sociedade como um todo, que não vê a reparação dessas externalidades e ainda precisa subsidiar essas indústrias com impostos.
  • O comportamento dos seguidores por vezes é violento contra pessoas externas. Carnismo 6 x 2 Veganismo.
    • Ambos os lados pontuam, é comum vermos os dois lados trocando farpas e xingamentos. 
  • O comportamento dos seguidores por vezes é violento até mesmo contra pessoas internas. Uma vez dentro, é difícil sair. Carnismo 7 x 2 Veganismo.
    • Por todo histórico, relações sociais, amizades, tradições, vícios, acesso aos produtos, é muito mais difícil sair do carnismo do que sair do veganismo. Se fosse o oposto, já teríamos uma maioria vegana no mundo.
    • Claro, quem “sai” do veganismo, também pode acabar perdendo algumas amizades que não apoiam essa desistência. Mas o “desertor” volta para o mundo de bilhões de carnistas e recebe todo apoio e acolhimento necessário para comer costelas.

Não foi 7 a 1, mas foi uma baita goleada. 

O carnismo é uma seita. O veganismo, não.

***

Bônus:

Por fim, para a pessoa perceber se está perigosamente “entrando em uma seita”, se está começando a sofrer técnicas de lavagem cerebral, o episódio cria um guia. Lista 7 elementos que, de acordo com as ciências sociais, podem deixar alguém frágil para ser cooptado por um culto.

  1. A pessoa está passando por uma transição em sua vida, o que a torna vulnerável para…
  2. Aceitar um convite para uma palestra, um encontro, uma conversa filosófica (o episódio chama de soft sell)…
  3. Ao encontrar pessoas acolhedoras nesses encontros, a pessoa mergulha em uma “nova realidade” sem perceber (muitas vezes por meio de informações editadas, fake news completas, distanciamento de estudos acadêmicos e de métodos científicos). Com o tempo, essa nova realidade fica mais isolada e distanciada do mundo real…
  4. E ganha mais impulso com a proximidade que a pessoa começa a ter com o líder carismático (ou com os círculos mais altos de influência em torno desse líder). Com isso, a pessoa reforça sua crença de que esse é o caminho correto e todo o resto do mundo está errado…
  5. Inclusive pelas mensagens do líder que criam “inimigos” externos. Isso aumenta a dissonância cognitiva em seus seguidores, que se fecham ainda mais em seus grupos, intensificando o isolamento com a realidade.
  6. E essa “pressão dos pares” reforça e impulsiona o poder do líder, gerando novas crenças alienadas em relação ao caminho que o culto segue, novas certezas e vulnerabilidades nos seguidores…
  7. Que se tornam reféns da própria seita e do líder, geralmente um Sociopata Narcisista (segundo dezenas de casos estudados).

Com a internet, os líderes virtuais de seitas se proliferaram e aumentaram seu alcance globalmente. Pior, com as recomendações de vídeos similares, as pessoas podem ficar reféns de seitas difusas, muito mais pelo tema em si do que por um sociopata específico. 

O episódio cita diversos casos famosos de atiradores, assassinos em massa, terroristas, neonazistas, incels, ou pessoas antes não violentas que ficaram reféns ao entrar nessa espiral. De um fórum para outro, de um artigo de fake news a outro, de um vídeo recomendado pelo algoritmo até outro mais radical… Sempre resultando tragicamente em muito sangue derramado.

Com o tempo, muitos conseguem se desligar das seitas ao perceberem as mentiras dos líderes, as hipocrisias e manipulações. Isso leva à destruição daquela “realidade paralela”, mas também gera medo de voltar ao mundo real (tanto pela violência ou simples quebra de relacionamento com as amizades do culto como por estar desacostumado a refletir e tomar as próprias decisões de maneira independente).

É isso que esperamos e, por isso, a insistência em que os carnistas ao menos assistam alguns vídeos da indústria animal que consomem. Quanto mais acesso às informações, à realidade da violência e tortura com os animais, sem as imagens de vaquinhas saltitantes do marketing, mais os carnistas poderão refletir e tomar suas próprias decisões. Também passarão pela dificuldade de sair do mundo ilusório de que carne nasce no supermercado sem sofrimento. Talvez tenham inclusive de rever costumes e amizades, reeducar paladares cultivados desde a infância, experimentar ingredientes e receitas novas.

Tanto faz o resultado. Ao entrar em contato com a realidade da indústria, muitos carnistas podem decidir se manter na seita, muitos podem tentar reduzir a dependência, outros podem buscar mesmo se tornar veganos. 

Tanto faz o resultado. Eu também nem sei se vou conseguir.

O essencial é que nós carnistas tomemos uma decisão. E, para isso, precisamos sair de nosso “mundo paralelo” e nos informarmos. Ler sobre o tema. Ver os famosos vídeos de tortura que acontecem diariamente. Os 80 bilhões de animais mortos por ano. Como esses animais vivem antes de serem abatidos.

Tanto faz o resultado.

O fundamental é que nós, os carnistas, tenhamos acesso e paremos de negar o mundo real.

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. Seus últimos livros são “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “Por toda vida, Carolina” (e-book Amazon).

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