Como já abordamos na Parte 2, para resolver o problema da violência policial, é preciso discutir seriamente reformas de política criminal tendo por base as políticas públicas baseadas nas melhores evidências cientificas. Nesta seção, apresentaremos mais algumas sugestões.
Índice
0.Antes de ler esse artigo…
Nosso primeiro ponto é de que vidas negras importam em qualquer lugar do mundo — no Minnesota, no Alagoas ou em Gana. Sendo assim, nosso principal questionamento é por que o sofrimento de pessoas na periferia do mundo não suscita sequer uma fração da atenção que damos à violência e à discriminação em nossos países? Deste modo, caso ainda não tenha lido, recomendamos que leia a primeira parte deste artigo aqui onde desenvolvemos esse argumento.
Já leu a primeira parte? Então vamos seguir em frente.
Qual o objetivo de um sistema de justiça criminal? A maioria das pessoas nunca para para pensar sobre isso.
Algumas pessoas pensam que o sistema deve ser como as Erínias, as Fúrias Vingadoras da peça “As Coéforas” de Ésquilo, que perseguem criminosos e amaldiçoam a cidade que não os pune; o objetivo seria retribuir o sofrimento causado à vítima, ou regenerar a ordem rompida. Para outras , o objetivo seria “reformar” as pessoas, ou uma expiação: ensinar o criminoso a ser alguém socialmente melhor. A punição seria uma segunda escola. Embora isso possa ser útil (assim como punir pode ser útil), reduzir o sistema de justiça a esse objetivo não é só paternalista, como irreal: nossas prisões não são locais onde se aprende a ser uma pessoa melhor — do contrário, algumas pessoas poderiam até mesmo desenvolver o desejo de ir para lá (o que não é muito comum).
Na peça de Ésquilo, a deusa Atena convence as Fúrias a submeterem seu direito de castigar Orestes a um júri de cidadãos atenienses; ao fazê-lo, elas deixam de ser repulsivas e se tornam as Eumênides (“Bondosas”), as guardiãs da justiça da cidade. A lei protege a sociedade e, por isso, é por ela legitimada (e aplicada).
Para além de retribuir ou reformar, a ameaça de punição existiria pelo seu efeito dissuasivo — ou seja, a ameaça de punição irá nos desencorajar a cometer crimes. Ela serve para que nós, que compomos a sociedade, sejamos lembrados e incentivados a respeitar as leis — i.e., para prevenir crimes.
Isso costuma ser associado a uma concepção utilitarista de sistema criminal. No entanto, V. Tadros apresenta um argumento deontológico em favor de um sistema baseado em prevenção geral: a punição é justificada (i.e., o agente tem o dever de submeter-se a punição, e o Estado tem o direito de punir) porque, já que o dano resultante da violação não pode ser plenamente compensado pelo violador, então este tem o dever de proteger a vítima contra futuras violações. Num sistema estatal de justiça, a maneira institucionalizada de fazer isso é submeter-se à punição a fim de dissuadir futuras violações; mesmo que isso não beneficie a sua vítima diretamente, beneficia o conjunto de potenciais vítimas em geral.
Essa concepção implica que, se pudermos reduzir o encarceramento sem aumentar a quantidade de crimes, devemos fazê-lo. O pesquisador e cientista de dados David Roodman demonstra que, ao menos para os EUA, isso é possível: há mais pessoas sendo presas por mais tempo do que o necessário para manter o nível de criminalidade atual.
Você pode ler / ouvir a história de Roodman no 80,000 hours
Mas, nas concepções de punição retributivistas e paternalistas, isso é irrelevante; já que não é preciso haver um nexo causal entre a punição e a quantidade crimes ou violência. O objetivo da punição é agir sobre o caráter do violador.
Certa vez, ainda quando delegado, prendi um condenado por homicídio, um pai de família que havia permanecido foragido por mais de quinze anos; um crime ocorrido quase vinte anos antes. Já era então uma pessoa radicalmente diferente do assassino que fora. Até hoje, não sei qual bem isso trouxe; só sei que destruí aquela família.
A “sede de vingança” e a “recuperação do criminoso” podem ter alguma utilidade social: não é muito útil criminalizar condutas que não são socialmente reprováveis, e pode ser bastante útil ajudar condenados a se encaixarem melhor em sociedade (com terapia cognitivo-comportamental, ou ensinando habilidades úteis). Mas, por si sós, nada disso justifica causar, intencionalmente, todo o custo e o sofrimento que um sistema criminal implica.
O efeito dissuasor
A Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) recentemente questionou no Supremo Tribunal Federal um dispositivo da Lei nº 13.964/2019 (o polêmico pacote anti-crime) que aumenta o tempo máximo de execução criminal de 30 para 40 anos. Até então, se uma pessoa fosse condenada a, p. ex., 100 anos de prisão por um mesmo crime, ela passaria, na realidade, até 30 anos na cadeia; agora, serão 40 anos.
Qual a diferença real produzida por esse aumento?
Dificilmente, a perspectiva de passar 40 anos preso, ao invés de 30, vai desencorajar alguém de cometer um crime. Além disso, a prisão reduz consideravelmente a expectativa de vida de uma pessoa; mesmo que você seja um dos poucos sortudos que entra na prisão aos 20 anos de idade e consegue sair aos 50, em qual gangue você vai voltar ao seu emprego de matador profissional? Você provavelmente estará fisicamente incapaz de fazer isso — e, psicologicamente, é provável que prefira um estilo de vida menos arriscado.
Em 2012, o terrorista norueguês Anders Breivik foi condenado a 21 anos de prisão pela morte de 77 pessoas — a pena máxima do sistema da Noruega. Claro, ele pode ser reavaliado após esse período, e ser mantido preso se considerado um perigo para a sociedade; mas a premissa básica do sistema é que, depois de 21 anos de prisão, aos 53 anos de idade, é improvável que Breivik represente o mesmo risco social, por mais repulsivo que tenha sido seu crime.
O Brasil tem 335 presos por cada 100 mil habitantes; 44% deles são jovens entre 18 e 29 anos (sendo que essa faixa etária representa 21,5% da população). O problema da violência urbana não é o de ex-presidiários de meia-idade, mas de jovens que não pensam muito sobre as consequências de longo prazo de suas ações. Por isso, o código penal é mais leniente com menores de 21 anos, que têm a pena atenuada, e a prescrição reduzida pela metade.
Por outro lado, cabe também perguntar se isso é uma boa política criminal: um jovem que cometeu um crime aos dezoito anos tem grandes chances de ser solto poucos anos depois do crime; ainda jovem, a probabilidade de reincidir é bem maior — ainda mais se estiver envolvido em uma gangue ou organização criminosa. Não seria melhor se, ao invés de demonstrar uma benevolência hipócrita devolvendo-o de volta ao ambiente onde ele vai retornar à delinquência, mantivéssemos jovens violentos afastados (ao invés de encarcerados) até estarem mais maduros, por volta dos 30 anos?
(se alguém conhecer algum programa nessa linha que efetivamente reduza a criminalidade, por favor, indicar nos comentários)
Trabalhe para mudar o sistema de dentro
Pesquisadores e planejadores de políticas públicas podem ter grande impacto sobre o sistema de justiça, ajudando a reduzir seu caráter discriminatório e sua violência. Além disso, admiramos o trabalho de juízes e defensores, que salvam pessoas de condenações injustas e rigorosas. No entanto, se você for um bacharel em direito, talvez a maneira mais simples de ter um impacto positivo seja como promotor público ou delegado de polícia.
Você pode pensar num sistema de justiça criminal como composto das seguintes autoridades, em diferentes níveis, cada uma com um certo poder de veto sobre a punição:
Policial (que investiga / prende) -> Autoridade Policial (Delegado — responsável por inquérito e flagrante) -> Promotor (Denúncia) -> Juízes (condena / absolve).
Note que, se qualquer um desses agentes decidir que a pessoa é inocente, é improvável que a persecução criminal prossiga: se o policial não o prender, você continuará solto; se o delegado entender que a prisão é abusiva, vai relaxá-la; se o promotor não oferecer a denúncia, o inquérito será arquivado, etc.
O problema central aqui é que costumamos pensar em delegados e promotores como agentes que têm por função indiciar / acusar pessoas; mas esse é um lado da moeda. O outro é, necessariamente, o de assegurar os direitos das pessoas que passam por esse processo. Infelizmente, raramente se percebe isso: por exemplo, o trabalho dos policiais é, via de regra, avaliado por quantas pessoas são indiciadas ou presas. Ou quantas investigações foram feitas. Ou, pior: por sua capacidade de resolver crimes que chamam atenção (repercussão na mídia), mas que são pouco relevantes para a segurança pública em geral. Dificilmente se avalia o trabalho positivo por quantos inocentes ele deixou de perturbar, quantos suspeitos não tiveram seus direitos violados, quantas investigações desnecessárias não ocorreram, etc.
Eu gostaria de enfatizar isso, porque é um problema geral de incentivos em nossas sociedades: raramente prestamos homenagem às pessoas que evitam que sinistros ocorram cotidianamente, porque, em geral, não os percebemos. Se uma quarentena estrita houvesse sido implementada em Wuhan em dezembro, a crise do Coronavírus talvez não teria ocorrido — mas nós não saberíamos, nesse cenário, quanto sofrimento teria sido poupado.
Deveria ser óbvio que é essa a real função de um sistema criminal: prevenir violações de direitos — e diminuir a ocorrência de violência (e outros comportamentos socialmente prejudiciais, como poluição, fraude, etc). O que me leva a próximo ponto: por que não avaliamos essas autoridades de acordo com métricas que meçam esses objetivos?
Instituições vs. indivíduos
Pode ser que você tema que a instituição o faça mudar de opiniões ou valores, ou a sofrer exclusão social por ter um perfil diferente dos demais. Claro, instituições frequentemente incorporam vieses, mantidos por um subconjunto de seus membros. Isso leva ao conhecido problema do reforço de vieses: justamente porque é mais provável que pessoas com um determinado perfil busquem uma certa carreira, a instituição se parece cada vez mais com elas. (Por outro lado, isso pode ser uma das explicações por que é, em geral, relativamente mais fácil ser aprovado num concurso para delegado que num concurso para promotor ou juiz — i.e., se você passar pelo teste físico e pelo curso de formação).
Masnote como sua avaliação deve ter por referência um cenário contrafactual: se você não ocupar uma determinada posição, ela será ocupada por outra pessoa, que provavelmente terá o “perfil médio” dos integrantes dessa instituição; imagine essa pessoa tomando decisões dramáticas sobre a liberdade de outras pessoas. Se você se torna um defensor público para defender os direitos dos acusados, é provável que ocupe o lugar de outra pessoas que pensa de forma semelhante; mas, se você se torna um delegado para defender os direitos dos acusados, está tirando a vaga de alguém que provavelmente tem o mesmo perfil dos demais policiais. Logo, mesmo que você seja influenciado pelo ethos institucional, ou que tenha de fazer coisas que não o agradam, é provável que seu impacto geral seja positivo. Você pode garantir que, para cada indiciado seu salvo por um defensor, há pelo menos um inocente que não foi acusado porque você analisou adequadamente o inquérito.
Accountability (Responsabilização)
Ao invés de propor o corte do orçamento da Segurança (como vem ocorrendo nos protestos americanos), poderíamos condicionar mudanças orçamentárias a resultados estatisticamente mensuráveis (como queda — real — na taxa de homicídios). Note como, hoje, os incentivos são exatamente o contrário: aumentamos o orçamento da segurança quando a violência cresce, mesmo que não haja comprovação de que isso se deva a baixos salários ou falta de investimentos.
Algo ainda mais simples de operacionalizar nesse sentido poderia ter o ponta pé inicial dado pela sociedade civil: podemos criar um ranking de autoridades ou órgãos policiais de acordo com o percentual de mortes causadas por policiais, e de prisões relaxadas pelo judiciário, ou com a proporção de indiciamentos que são arquivados antes da denúncia; da mesma forma, poderíamos analisar qual fração das denúncias de um promotor efetivamente levam à condenação, qual o percentual de condenações são mantidas, etc. Assim como polícias modernas estão usando algoritmos de scoring para triar suspeitos, podemos fazer o mesmo para controlar autoridades.
Por fim, por que não experimentamos processar mais a polícia? Nós vemos isso acontecer em casos célebres, onde fica claro que alguém foi assassinado durante uma ação policial. Por que isso não ocorre de forma mais frequente — por exemplo, quando há repressão violenta a protestos? Claro, por vezes, não há garantia de que a ação seja bem-sucedida. Pode ser difícil condenar um agente policial específico por abuso da força, mas é muito mais fácil responsabilizar o estado numa ação de responsabilidade civil; o RJ, p. ex., tem ao menos 250 processos desse tipo, o que implica uma dívida de R$ 117 milhões. Afinal, se você for preso ou agredido por um policial é o Estado que deve provar que você cometeu um crime e que o uso da força foi proporcional — não o contrário. Em 2019, a cidade de Camden, EUA, teve de pagar 3,5 milhões em indenizações a 88 cidadãos que tiveram processos anulados sob suspeita de provas “enxertadas”. Depois disso, a cidade reconstruiu sua força policial do zero. Talvez, se nossos governantes perceberem que a violência policial é custosa, eles mudem algumas políticas de segurança pública.
Observações finais
Para a elaboração deste texto também revisamos as organizações e projetos estudados e apoiados pela Open Philanthropy e pela pesquisadora Chloe Cockburn. No entanto, eles não parecem extrapolar adequadamente para o Brasil, que tem um sistema de justiça bastante diferente. Se você puder contribuir, gostaríamos de sugestões sobre organizações e projetos de impacto no Brasil que, efetivamente, contribuam para diminuir a violência em geral, e, especialmente, a violência policial e a discriminação racial no país.
[Status epistêmico das sugestões presentes neste texto: “chute confiante”]
Mesmo recebendo feedback prévio de pessoas com experiência na área, esse é um dos textos que nos deixou mais inseguros; são antes sugestões que merecem uma exploração mais detalhada no futuro que sábios conselhos sacramentados pela experiência. Ainda, nada disso seria uma solução mágica para os problemas graves de locais como o Rio de Janeiro, por exemplo.
Por fim, notem como sequer tocamos no grande problema, o “elefante na sala”: racismo. Infelizmente, quanto mais pesquisamos o tema, buscando intervenções bem sucedidas, mais confusos ficamos. Mas talvez valha a pena relembrar um pouco de História.
Comecemos pela mita, uma odiosa forma de escravidão indígena que imperou na colonização espanhola do território Inca (principalmente Peru e Bolívia): índios eram obrigados a trabalhar em minas e em terras da coroa até a exaustão. Como demonstra a economista Melissa Dell, até hoje, os efeitos perversos dessa instituição podem ser observados: as famílias nas regiões onde houve mita tinham, em média, um consumo 25% menor, e suas crianças tinham crescimento subnormal 6% mais frequente, do que em regiões vizinhas. Historicamente, distritos com mita tinham menores taxas de alfabetização, menor integração a estradas, e seus residentes eram mais propensos a depender da agricultura de subsistência.
A mita acabou em 1812, com o fim do regime colonial hispano-americano — há 208 anos. Não houve qualquer separação social ou jurídica entre as populações de distritos com ou sem mita.
A escravidão acabou em 1888, no Brasil — o último país da América a aboli-la, há 132 anos; mesmo depois disso, a população negra continuou substancialmente segregada em diversos locais do país.
Muitas pessoas se assustaram com a dimensão e, em alguns casos, a destruição causada pelos protestos relacionados à morte de George Floyd — pense na sede da polícia de Minneapolis, por exemplo. Por outro lado, compare com o massacre de Tulsa, em 1921, onde, com o apoio da polícia, milícias racistas assassinaram centenas de negros — e destruíram um distrito próspero, então chamado de a “Wall Street negra”.
Isso foi há apenas 99 anos.
Autor: RAP
Revisão: Fernando Moreno
Disclaimer: esse texto é de responsabilidade dos autores e, em nenhuma hipótese, pode ser atribuído a outras pessoas ou ao Altruísmo Eficaz.