O que fazer para nunca mais acontecer? Banir o comércio de animais selvagens e os “mercados molhados”

Uma das principais hipóteses é que o COVID-19 surgiu em um wet market (mercado molhado) em Wuhan. Trata-se da mesma hipótese para a epidemia de SARS em 2003, no caso, de um mercado em Foshan, também na China. Isso leva a uma pergunta óbvia: por que tantas novas doenças estão vindo da China?

O que diferencia os chamados wet markets (mercados molhados) de um mercado ou feira-livre comum?

Neles, “os animais vivos são vendidos e abatidos aos olhos dos clientes (…) os mercados molhados vendem mamíferos, aves, peixes e répteis vivos, amontoados e compartilhando a sua respiração, o seu sangue e os seus excrementos”. (Para poupar a sensibilidade de todos não iremos inserir imagens destes mercados aqui mas uma rápida pesquisa no google imagens dará uma dimensão de como é o dia-a-dia destes mercados).

Para além de nossas sensibilidades, qual o risco biológico disso?

“Os cientistas nos dizem que manter diferentes animais em estreita proximidade entre si e com pessoas, por longos períodos de tempo, cria um ambiente insalubre que é a provável fonte da mutação que permitiu a COVID-19 infectar seres humanos. Mais precisamente, em tal ambiente, um coronavírus presente há muito tempo em alguns animais sofreu uma rápida mutação ao mudar de hospedeiros não humanos para outros hospedeiros não humanos e, finalmente, ganhou a capacidade de se ligar a receptores celulares humanos, adaptando-se assim ao hospedeiro humano”. Leia mais neste artigo escrito por Peter Singer e Paola Cavalieri (em português).

Aqui cabe uma observação importante: devemos afastar qualquer explicação racista ou preconceituosa. A compra de venda de siris colhidos no litoral e vendidos em beira de estrada e mesmo em alguns mercados de São Paulo representam risco similar, por exemplo.

Se fosse um problema meramente da cultura “asiática” ou “chinesa” teríamos focos similares aparecendo em outros países que compartilham desta cultura, tal como Taiwan, Hong Kong, etc. Como explicaremos melhor a seguir, o problema em última instância é político e quem deve ser responsabilizado é o governo chinês, não seu povo.

Como mostraremos a seguir, há alguns riscos muito mais graves no caso chinês. Abaixo mostramos um “cardápio” do mercado de Wuhan. Observe a presença de animais vindos de toda parte do mundo. Com eles, também vem os vírus de toda parte do mundo.

Cardápio de carnes que eram vendidas no “mercado molhado” de Wuhan

O problema não se resume a presença destes animais nos tais mercados molhados. Toda uma “indústria de animais selvagens” foi criada. A Vox explica em detalhes:

A razão pela qual todos esses animais estão no mesmo mercado é por causa de uma decisão tomada pelo governo da China décadas atrás. Na década de 1970, a China estava desmoronando. A fome havia matado mais de 36 milhões de pessoas. E o regime comunista, que controlava toda a produção de alimentos, estava falhando em alimentar seus mais de 900 milhões de habitantes.

Em 1978, à beira do colapso, o regime abandonou esse controle e permitiu a agricultura privada. Enquanto as grandes empresas dominavam cada vez mais a produção de alimentos populares como carne de porco e aves, alguns pequenos agricultores recorriam à captura e criação de animais silvestres como forma de se sustentar. O governo chinês apoiou.

Então, em 1988, o governo tomou uma decisão que mudou a forma do comércio de animais silvestres na China. Eles promulgaram a Lei de Proteção da Vida Selvagem, que designava os animais como “recursos pertencentes ao estado” e protegia as pessoas envolvidas na “utilização dos recursos da fauna silvestre”. A lei também “incentivou a domesticação e criação de animais selvagens”. Com isso, nasceu uma indústria.

Pequenas fazendas locais se transformaram em operações de tamanho industrial. Por exemplo, uma fazenda de ursos começou com apenas três e, eventualmente, cresceu para mais de 1.000 ursos. Populações maiores significam maiores chances de um animal doente espalhar doenças. Os agricultores também criavam uma grande variedade de animais, o que significava mais vírus nas fazendas.

Depois da crise da SARS, as autoridades chinesas fecharam rapidamente os mercados e proibiram a criação de animais silvestres. Porém, poucos meses depois do surto, o governo chinês declarou 54 espécies de animais silvestres, incluindo gatos da cidade, legais para cultivar novamente.

Em 2004, a indústria “da vida selvagem” valia cerca de 100 bilhões de yuans. Em 2018, a indústria da vida selvagem havia crescido para 148 bilhões de yuans.

Na verdade, em termos econômicos isso não é muito. No entanto, esses produtos se tornaram populares entre uma parte influente da população da China: essa elite, uma minoria, foi escolhida pelo governo chinês em detrimento da segurança do restante da população (e do mundo).

Leia mais neste artigo (em inglês). O artigo é basicamente uma introdução a esse excelente vídeo que explica detalhadamente o problema na China e que citamos, com leves adaptações, acima.

De todo modo, o que deve ser feito? Conforme proposto no artigo de Peter Singer:

“Enquanto esses mercados existirem, a probabilidade de surgir outras doenças novas permanecerá. Certamente, já é hora de a China fechar esses mercados. Mas nós iríamos mais longe. Historicamente, as tragédias às vezes levaram a mudanças importantes. Os mercados em que os animais vivos são vendidos e abatidos devem ser proibidos não apenas na China, mas em todo o mundo”.

Cabe aqui uma observação: nem todos os chamados “mercados molhados” são como os descritos acima. Alguns não diferem muito de nossas feiras-livres e “mercadões”, sem animais vivos ou exóticos. Para saber mais, leia essa outra reportagem da Vox que é esclarecedora sobre o problema com a ambiguidade do termo.

De todo modo, o que devemos ter, portanto, são critérios científicos do que de fato representa riscos a saúde pública, definindo assim quais praticas devem ser banidas ou maiores precauções tomadas. Grosso modo, acreditamos serem elas:

  1. Banir a venda e consumo de animais selvagens e exóticos, dentro e fora dos mercados molhados, assim como a “indústria” por trás dessa prática.
  2. Banir a presença de qualquer animal ainda vivo nos mercados molhados eliminando a perigosa junção de sangue dos abates, excrementos e animais vivos.
  3. Implantação, nas feiras e mercados, de demais medidas higiênicas de eficácia comprovada.

Isso não esgota o risco chamado zoonótico, ou seja, da doença ser transmitida de um animal para o homem. Se acima focamos no problema especificamente chinês da “industrial de animais selvagens”, há um problema similar presente em praticamente todo o mundo. Por isso, recomendamos que não deixe de ler a proposta sobre Combater as práticas de criação intensiva de animais

Ou volte para a nossa lista de “O que fazer para nunca mais acontecer”.

Autor: Fernando Moreno

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