Biólogos estão tentando tornar a gripe aviária mais fácil de se espalhar. Podemos não fazer isso?

Esta pesquisa sobre vírus poderia nos ajudar a entender melhor as pandemias — ou poderia causar uma.

A gripe aviária é um vírus mortal com potencial para desencadear uma pandemia global. Agora, graças ao governo dos EUA, dois experimentos de laboratório tentando encontrar maneiras de torná-lo mais perigoso retomarão seu trabalho depois de anos de espera.

É um desenvolvimento preocupante e que destaca os riscos de algo chamado pesquisa de “ganho de função”. Trata-se de uma pesquisa em que os patógenos são manipulados para mudar suas capacidades — geralmente para torná-los mais mortais.

A Science Magazine, na semana passada, deu a notícia de que os EUA aprovaram silenciosamente os dois experimentos perigosos e controversos. Um deles começará dentro das próximas semanas. O outro é esperado para começar mais tarde nesta primavera. Os dois estavam em espera desde 2012 em meio a um debate feroz na comunidade de virologia sobre pesquisa de ganho de função. Em 2014, o governo dos EUA declarou uma moratória sobre essa pesquisa.

Aquele foi um ano ruim no front de batalha de risco biológico. Em junho de 2014, 75 cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças foram expostos ao antraz. Algumas semanas depois, Autoridades da Food and Drug Administration (Secretaria que regula alimentos e medicamentos) encontraram armazenados 16 frascos de varíola esquecidos. Enquanto isso, o “ maior, mais grave e mais complexo “ surto de Ebola na história grassava em toda a África Ocidental, e o primeiro paciente a ser diagnosticado nos EUA acabara de ser anunciado.

Foi nesse contexto que cientistas e especialistas em biossegurança se viram envolvidos em um debate sobre a pesquisa do “ganho de função”. Os cientistas que fazem esse tipo de pesquisa argumentam que podemos melhor nos antecipar as doenças mortais, tornando-as mais mortais no laboratório. Mas muitas pessoas na época e desde então se tornaram cada vez mais convencidas de que os potenciais benefícios da pesquisa — que parecem limitados — simplesmente não superam os riscos de dar início à próxima pandemia mortal.

Embora dividido internamente, o governo dos EUA ficou mais cauteloso na época. Anunciou uma moratória no financiamento da pesquisa sobre o ganho de função — colocando em espera experimentos potencialmente perigosos para que o mundo pudesse discutir os riscos que essa pesquisa acarretava.

Mas em 2017, o governo lançou novas diretrizes para a pesquisa de ganho de função, sinalizando o fim da moratória geral. E as notícias da semana passada sugerem que projetos perigosos estão acontecendo.

Especialistas em biossegurança estão preocupados que o campo está caminhando para um erro que poderia matar pessoas inocentes. Eles argumentam que, para avançar com pesquisas como essa, deve haver um processo transparente com as partes interessadas globais à mesa. Afinal, se alguma coisa der errado, a bagunça que enfrentaremos certamente será global.

A necessidade de cautela na pesquisa biológica

Na década de 1970, os biólogos estavam lutando para lidar com as implicações de novas técnicas em seu campo. Em 1975, foi possível colocar o DNA de um vírus em uma bactéria não relacionada. O que eles não tinham certeza é se isso era uma boa ideia.

“Eles não sabiam se criariam uma vantagem de aptidão(fitness advantage) que poderia se espalhar na natureza”, disse Kevin Esvelt, pesquisador do MIT e pioneiro da ferramenta de edição de genes CRISPR. “Eles não sabiam se poderiam fazer um supervírus. Eles não tinham ideia se os genes se espalham pelas espécies”.

Então naquele ano, eles convocaram uma moratória voluntária em experimentos com DNA recombinante. As novas técnicas, acreditavam eles, poderiam ser forças poderosas para o bem — como de fato acabaram sendo, possibilitando a modificação de culturas para alimentar mais pessoas.

Mas, na época, eles simplesmente não sabiam o suficiente para ter certeza de que essas técnicas não eram incrivelmente perigosas. A moratória foi controversa, mas foi universalmente obedecida e, no ano seguinte, cientistas, eticistas, líderes religiosos e formuladores de políticas se reuniram na Conferência de Asilomar, na Califórnia, para apresentar os princípios orientadores para o campo.

Hoje, sabemos que os primeiros experimentos na edição de genes eram, na verdade, mais seguros do que os cientistas da época pensavam e é fácil olhar para trás na Conferência de Asilomar e na moratória como desnecessariamente paranóica.

Isso está completamente errado, Esvelt argumenta. “Com base nas informações que eles tinham, era a decisão certa”. Quando você está apenas se aventurando em um novo campo e não sabe o quanto sua pesquisa pode ser fatal, você deve ser extremamente cauteloso. À medida que você aprende mais, talvez descubra que nem todo esse cuidado era necessário. Mas é muito melhor do que avançar de forma imprudente.

Atirar-se de forma imprudente é o que estamos fazendo hoje — e os riscos são maiores. Alguns cientistas estão estudando doenças que tem potencial para se tornarem pandemias capazes de matar milhões de pessoas. Às vezes, eles tornam essas doenças mais perigosas ou mais fáceis de transmitir entre os animais, a fim de entender melhor como as doenças se espalham. Em meio a controvérsias, esta pesquisa continua. E especialistas argumentam que não há transparência suficiente sobre o porquê.

Como uma “Pesquisa de ganho de função” se parece

Em 2001, uma equipe de pesquisa australiana trabalhava no que se pretendia ser um vírus contraceptivo para controle de pragas, visando camundongos. Em vez de esterilizar os ratos, o vírus Ectromelia os matou — todos eles. (Nos vírus, costuma ocorrer um equilíbrio de forças (trade-off) entre a letalidade e a transmissibilidade, de modo que este foi um resultado ruim para o controle de pragas, bem como um problema alarmante do ponto de vista da segurança).

A decisão que tiveram de publicar a pesquisa pareceu profundamente mal aconselhada. Eles deveriam ter publicado orientações detalhadas sobre como recriar um vírus mortal?

“Nós fomos embora, nos perguntando o que fazer sobre isso”, disse um dos pesquisadores, Ian Ramshaw, em uma entrevista, uma década depois.

Naqueles tempos não havia caminho na estrutura das instituições científicas para resolver um caso como este. Eu dei uma palestra em um retiro quando todos os nossos pesquisadores estavam lá. Dei-lhes os resultados e perguntei: “O que fazemos? Nós publicamos ou não o fazemos? Nós saímos com o consenso dos cientistas, que provavelmente não foram qualificados, de que já existia tanta coisa que poderia ser usado por bioterroristas que, eu acho que posso citar, “isso a mais não fará diferença”. Nós informamos os militares e nunca recebemos um retorno. Eles provavelmente se perguntaram “Quem diabos são essas pessoas?” ou “O que diabos é isso?”

Então a pesquisa — que poderia ter sido perigosa — foi publicada.

Os pesquisadores da ectromelia descobriram sua inovação por acidente. As próximas equipes que se seguiram a levantar essas questões estavam fazendo pesquisas que poderíamos facilmente prever que seriam perigosas. Eles estavam trabalhando com uma cepa de gripe — H5N1.

cepa mais mortal da gripe na história foi a pandemia de 1918 , que, segundo estimativas, matou 50 milhões de pessoas. O H5N1 já matou mais da metade das pessoas infectadas e, embora provavelmente se tornasse menos letal quando modificado para ser mais transmissível, ele é muito, muito perigoso.

Em 2011, dois grupos diferentes de pesquisadores anunciaram planos de publicar pesquisas nas quais modificaram o H5N1 — em furões, não em humanos — para torná-lo transmissível pelo ar. Outros cientistas se opuseram. Em uma carta aberta à Comissão Presidencial para o Estudo de Questões Bioéticas assinada por líderes na área, incluindo vários ganhadores do Prêmio Nobel, eles argumentaram que é “moral e eticamente errado” manipular os vírus para torná-los mais mortais. As equipes de pesquisa que estudam o H5N1 argumentaram que seu melhor entendimento do vírus permitiria estratégias aprimoradas para nos manter seguros.

Em 2014, trabalhos como esse foram suspensos após uma moratória do governo dos EUA. Mas agora, esses mesmos dois laboratórios de pesquisa — os laboratórios de Yoshihiro Kawaoka, da Universidade de Wisconsin, em Madison e na Universidade de Tóquio, e o laboratório de Ron Fouchier, no Erasmus University Medical Center, na Holanda — receberam luz verde para continuarem suas pesquisas.

Um cientista extrai uma amostra viral do H5N1, uma gripe aviária mortal que está no centro da controversa de uma nova pesquisa. Foto por: Dimas Ardian / Getty

Que bem faz a pesquisa de ganho de função?

Defensores desse tipo de pesquisa de ganho de função (nem toda pesquisa de ganho de função usa agentes patogênicos pandêmicos) apontam para algumas coisas que eles esperam que tais pesquisas nos permitiriam fazer.

Em geral, eles argumentam que isso aumentará a vigilância e o monitoramento de novas pandemias em potencial. Como parte de nossos esforços para impedir pandemias antes que elas comecem — ou antes que elas se agravem –, coletamos amostras dos vírus que estão circulando atualmente. Se soubermos quais são as cepas mais mortíferas e perigosas que existem, assim argumentam, poderemos monitorá-las e então preparar uma resposta caso pareça que tais mutações estão surgindo na natureza.

“À medida que a coordenação das atividades de vigilância internacional e o compartilhamento global de vírus melhoram”, escreveram alguns defensores no mBio, ficaremos melhores em saber quais cepas estão por aí. Deste modo, a pesquisa de ganho de função nos dirá quais cepas estão prestes a se tornar mortais. “Os dados do GOF foram usados para iniciar investigações de surtos e alocar recursos (por exemplo, H5N1 no Camboja), para desenvolver os critérios para a Ferramenta de Avaliação de Risco de Influenza e para tomar decisões políticas difíceis e às vezes dispendiosas”, argumentam.

“O governo dos Estados Unidos ponderou os riscos e benefícios… e desenvolveu novos mecanismos de supervisão. Sabemos que isso traz riscos. Também acreditamos que é um trabalho importante para proteger a saúde humana”, disse Yoshihiro Kawaoka à Science Magazine .

Outros são céticos. Thomas Inglesby, diretor do Centro de Segurança da Saúde da Johns Hopkins, disse-me que não acredita que os benefícios para o desenvolvimento de vacinas se sustentem na maioria dos casos. “Eu não vi nenhuma das empresas de vacina dizer que elas precisam desenvover esse trabalho para produzir vacinas”, ressaltou. “Eu não vi evidências de que as informações que essas pessoas estão buscando possam ser amplamente usadas em campo”.

Além disso, há um número inimaginável de variantes possíveis de um vírus, das quais os pesquisadores podem identificar apenas algumas. Mesmo se nos depararmos com um modo de como um vírus sofre uma mutação para se tornar mortal, teremos diversos outros modos desconhecidos. “É uma questão aberta se os estudos de laboratório vão apresentar a mesma solução que a natureza”, disse Esvelt. “O quão preditivos são esses estudos realmente?” A partir de agora, essa ainda é uma questão em aberto.

E, mesmo no melhor dos casos, a utilidade deste trabalho seria bastante limitada. “É importante ter em mente que muitos países não têm mecanismos nenhum de controles de epidemias — muito menos uma maneira em tempo real de identificar e reduzir ou eliminar riscos, à medida que essas experiências e novas tecnologias são concebidas”, Disse Beth Cameron, a vice-presidente da Iniciativa de Ameaça Nuclear para políticas e programas biológicos globais.

Com riscos tão altos, muitos pesquisadores estão frustrados com o fato do governo dos EUA não ter sido mais transparente sobre quais considerações os levaram a financiar a pesquisa. É realmente necessário estudar como tornar o H5N1, com a sua taxa de mortalidade estonteante, mais transmissível? Há precauções para dificultar que o vírus escape do laboratório? Quais são os benefícios esperados da pesquisa e quais foram os perigos considerados pelos especialistas que aprovaram o trabalho? “O painel do HHS não pediu que quaisquer experimentos propostos fossem removidos ou modificados”, relatou a Science Magazine quando eles divulgaram a história. Mas modificações ou práticas de segurança adicionais foram consideradas?

“As pessoas que propõem o trabalho são virologistas altamente respeitados”, disse Inglesby, “mas os sistemas dos laboratório não são infalíveis e, mesmo nos maiores laboratórios do mundo, há erros”. Quais medidas estão em vigor para evitar isso? Resultados potencialmente perigosos serão publicados para todo o mundo, onde atores inescrupulosos poderiam seguir as instruções?

Essas são exatamente as perguntas que o processo de revisão deveria responder. Mas desde que nenhum dos raciocínios por de trás das autorizações foi publicado, longe de minimizar essas questões, a aprovação deixou os pesquisadores preocupados com o fato de que decisões críticas estão sendo tomadas por pessoas que subestimam os riscos.

“O que eu acho mais importante é que essas deliberações sejam tornadas públicas para que possamos entendê-las”, disse Inglesby. “Acredito que os riscos de se proceder dessa maneira neste trabalho são altos, muito altos e não são superados pelos benefícios potenciais do trabalho. Mas o que é mais importante agora é que esse processo seja transparente para o público e para a comunidade científica, para que eles tenham a chance de decidir se esse trabalho vale as possíveis consequências”.

Sem dúvida, é frustrante para os cientistas terem suas pesquisas jogadas no limbo. Mas é absolutamente assustador que uma pesquisa que, se der errado, possa resultar em milhões de mortes seja aprovada — ou rejeitada — através de um processo secreto de caixa-preta sem qualquer ponderação pelos especialistas que ajudaram a propô-las. “As deliberações e justificativas para fazer este trabalho precisam ser feitas publicamente”, disse Inglesby.

Cameron, que estava envolvido com a supervisão das diretrizes do governo dos EUA e atuou como diretor sênior de segurança sanitária global e biodefesa na equipe do Conselho de Segurança Nacional (NSC) da Casa Branca, concordou. “Estou preocupado com a falta de transparência sobre isso para o público”, disse ela. “Deve haver uma compreensão real de por que esses experimentos seriam necessários, para o benefício de todos, e que pode haver um claro risco público”.

Existem também os riscos indiretos. Esvelt teme que o trabalho dos virologistas que salva muitas vidas esteja em perigo, talvez permanentemente, se um erro perigoso ceifar vidas inocentes. “Quais são os custos para a ciência, da confiança na ciência, se fizermos besteira nisso? Se um vírus produzido em laboratório sair do laboratório e matar um monte de gente?” ele me disse.

Ele pergunta a seus colegas pesquisadores: “Você acha que temos problemas com pessoas anti-vacinas(anti-vaxxers) agora ?” Se a pesquisa de vacinas, por mais bem intencionada que seja, resultar em doenças perigosas escapando do laboratório, as coisas poderão se tornar muito piores.

Escrito por Kelsey Piper em 17 de fevereiro de 2019

Tradução: Fernando Moreno

Publicado originalmente em: https://www.vox.com/2019/2/17/18225938/biologists-are-trying-to-make-bird-flu-easier-to-spread-can-we-not

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