Einstein, Buda, Spinoza, Rawls, Adão, Eva e a Revolução das Plantas

Semana 29

Albert Einstein defendia um mundo vegano. Em suas palavras: “o ser humano é parte de um todo, que chamamos de ‘universo’, uma parte limitada por tempo e espaço. Cada pessoa sente que tem suas experiências, pensamentos e sentimentos, como se estivessem separadas do resto – um tipo de ilusão de ótica da consciência. 

“Essa ilusão é um tipo de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e à busca de afeto com poucas pessoas próximas. Precisamos nos libertar dessa prisão expandindo nosso círculo de compaixão para abarcar todas as criaturas vivas”. Isso foi uma carta de 1950.

No final de sua vida, ele buscou traduzir essa filosofia para a alimentação: “Nada vai mais beneficiar a saúde humana e aumentaria a chance de vidas sobreviverem na Terra do que a adoção da dieta vegetariana”. 

Em outra carta, de 1954, ele escreve: “Tenho vivido sem gorduras, sem carne, sem peixe, e me sinto muito bem. Me parece que o ser humano não nasceu para ser carnívoro”. Para finalizar, um dos cientistas com a mente mais brilhante da história afirma: “a comida vegetariana nos deixa uma impressão profunda em nossa natureza. Se todo o mundo adotasse o vegetarianismo, o destino da humanidade seria diferente”.

Saltando da ciência para a religião…

Buda não tinha como defender um mundo carnista. Tenho muita dificuldade de entender monges budistas não veganos, estão totalmente errados. Digo dos budistas que vivem nas cidades e têm opção de escolha. O próprio Dalai Lama não nega uma carninha (afirma que come uma a duas vezes por semana). Não faz sentido, afinal, Buda “se iluminou” quando saiu de seu castelo e viu tanto sofrimento no mundo. É impossível que ele não se referisse também aos abatedouros. Aí vai lá nosso amigão Dalai Lama e, em uma famosa visita à Casa Branca, nega a opção de prato vegetariana e come carne, dizendo “sou um monge tibetano, não vegetariano”

Não sou especialista em budismo, mas sei que existem algumas correntes mais coerentes. Por sorte, temos monges budistas que realmente se importam com o sofrimento de animais não humanos no mundo. Um deles, infelizmente, morreu agora em janeiro de 2022. Sendo um dos fundadores do budismo engajado na época da Guerra do Vietnã, o monge Thich Nhat Hanh responde aqui sobre o porquê de veganismo ser o caminho correto (e não apenas vegetarianismo):

“Não queremos mais comer ovos, beber leite de vaca e comer queijo porque criar vacas e galinhas cria muito sofrimento. Se você viu o sofrimento da galinha, o sofrimento das vacas, você não gostaria mais de comer galinha, comer ovos, beber leite ou comer queijo. Parece que o sistema foi contaminado. Então ser vegano não é perfeito, mas ajuda a diminuir o sofrimento dos animais. Há filmes feitos sobre o sofrimento dos animais. Se você assistiu a esses filmes, verá. Devemos comer e beber de tal maneira que preserve a compaixão em nosso coração. Devemos consumir de uma forma que ajude a diminuir o sofrimento dos seres vivos e assim possamos preservar a compaixão em nosso coração. Uma pessoa que não tem muita compaixão em seu coração não pode mais ser uma pessoa feliz”.

E nosso ocidente cristão, como fica nesse debate? Também não sou especialista na Bíblia, mas todos os animais do Paraíso faziam sexo e se reproduziam, né? E deus teria feito Adão e Eva para não se reproduzirem? Não faz sentido. Para mim, a condição era eles não fazerem churrasco com os animais, pois, como seres à imagem e semelhança dele, não teríamos permissão de martelar cabeças de porcos se havia nutrição abundante nas plantas do Paraíso. A maçã proibida e tentadora, na verdade, simboliza a carne dos animais.

Em 2018, eu nem havia iniciado a transição vegana, via com simpatia a ideia, mas não imaginava que deixaria de ser o mais carnista da família. Nesse ano, eu escrevia meu primeiro romance de ficção científica tragicômica e incluía uma interpretação parecida. O livro se chama “No útero de Paulo, o Embrião não Nascerá”, foi lançado em 2019, segue o trecho de um capítulo:

“A história de Adão e Eva mudou completamente com a chegada da cobra. Não porque a cobra ofereceu uma maçã, pois eles eram profissionais em questão de frutas, já haviam provado todas as variedades existentes naquele jardim infinito. A história mudou completamente com a chegada da cobra porque foi quando descobriram como comer carne era bom.

Adão matou a cobra e mostrou o pau em que a espetaria para girá-la com calma sobre brasas improvisadas até que a carne defumasse. Adão descobriu o churrasco e Eva, amando a ideia, logo inventou o chimichurri. Engrossou-o com sangue de cobra e foi preparar a mesa, enquanto Adão girava o pau para cozinhar a cobra por todos os lados.

— Esse molho aí vai fazer sucesso um dia – disse Adão enquanto se lambuzava de molho e tentava capturar com o dedo indicador os restos de carne entre as espinhas da cobra. A lasca que conseguia tirar, ele mergulhava com o próprio dedo no chimichurri e enfiava na boca.

Com o sucesso do churrasco de cobra, a leitora deve imaginar que a curiosidade de Adão e Eva foi atiçada. No domingo seguinte, decidiram assar um coelho. Delícia. No outro domingo, um pato. Espetacular. Experimentariam um animal por semana, para horror de deus, que era vegano. 

Ficaram bons nos molhos e temperos para as carnes, era tudo tão melhor que o tédio leguminoso de antes, que passaram a comer carne diariamente. Experimentaram javali, macaco, girafa, elefante, galinha, peixe, crustáceos, gado, insetos, cachorro, cavalo e gato e tudo que era vivo foi transformado em obras de arte culinárias — sempre bem harmonizadas com o vinho e a cerveja.

Passados dois anos de menus abundantes, Adão e Eva, hipertensos após tantos banquetes, perceberam rarearem os animais pelo jardim. Antes numerosos, restringiam-se a poucos aqui e acolá, temerosos e arredios. O casal decidiu mudar de estratégia. Não dava para continuar caçando, precisavam criar uma lógica mais produtiva — e menos cansativa.

Cercaram uma área e forçaram o gado a se reproduzir. Galinhas também. Estudaram como acelerar o ritmo de procriação, conseguiram, mas o trabalho era muito árduo. Se os animais podiam se reproduzir… Será que humanos também? Se conseguissem, ficaria claro serem animais também. Então realizaram a experiência e vieram logo dois filhos. O primeiro estremecimento do casal original surgiu ali. Quando Eva pariu Caim, Adão não ajudou — preocupado que estava em fazer amizade com uma nova cobra, nem deu atenção aos berros da esposa.

Com a ajuda de Caim e Abel, a fazenda cresceu e a família construiu um abatedouro moderno. Resultado: comiam carne todo dia. Eram os melhores e únicos churrasqueiros do jardim e deus não estava nada feliz com toda aquela matança. A gota d’água foi quando, enjoados de porco e de vaca, Adão e Eva olharam para a carne dos filhos. Convenceram um deles a fazer o outro na brasa para experimentarem um sabor inédito — Eva prepararia o melhor chimichurri que Caim já experimentara. E foi assim que o convenceram, e Caim matou Abel e o espetaram num pau e comeram o melhor churrasco de suas vidas.

E foi assim que os três canibais foram expulsos do Paraíso.”

Mas divago. Voltando ao tema do texto de hoje: assumindo essas interpretações corretas do budismo, do cristianismo e da ciência, justifico-me que o veganismo é o caminho mais ético para um mundo sem violência. Então, decido zerar minha contribuição ativa para o sofrimento animal e algumas pessoas me contestam e dizem que as plantas também sofrem muito, também são inteligentes e têm vida. “Salvemos as vidas das plantas!” dizem eles. 

O tipo mais difícil de conversar é o carnista místico antiespecista que justifica seu consumo de crueldade animal falando que se importa com a vida das plantas, que “tudo é vida”… Para ele, pisar na grama é tão violento quando enfiar a faca no pescoço de um porco enquanto ele se debate. O carnista místico antiespecista também iguala a vida de formigas e grilos à vida de vacas e galinhas. Então justifica seu status quo churrasqueiro explicando por que não substitui por lentilha: “é um holocausto de minhocas!”

Nessa linha mística, sobraria pedra para comermos, certo? Errado! Como já pulamos do cientista para o religioso, saltemos agora para o filósofo.

Espinosa, um dos maiores filósofos da história (e um dos meus preferidos), explica que até as pedras são compostas de vida. Não existiria um “corte” entre o reino animal e o vegetal e o mineral, já que tudo o que existe é parte de uma energia única. Tudo, seja sólido, líquido ou gasoso, seja orgânico ou mineral, tudo é composto de pequenas partículas e cada partícula é uma manifestação dessa energia única, que ele chama de “vontade de viver” (e que também chamava de deus para não ser levado à forca). 

Mesmo chamando essa força única de deus em sua filosofia, no fim, acabou excomungado pela Comunidade Judaica Portuguesa de Amsterdã em 1656, vejam a carta:

“Os senhores do Mahamad fazem saber a vossas mercês: como há dias que, tendo notícia das más opiniões de Baruch de Espinosa, procuraram por diferentes caminhos e promessas retirá-lo de seus maus caminhos; e que, não podendo remediá-lo, antes, pelo contrário, tendo a cada dia maiores notícias das horrendas heresias que praticava e ensinava, e das enormes obras que praticava; (…) o qual tendo tudo examinado em presença dos Senhores Hahamín, deliberaram com o seu parecer que dito Espinosa seja excomungado e apartado de toda nação de Israel (…) com o Herém seguinte:

“Com a sentença dos Anjos, com dito dos Santos, com o consentimento do Deus (…) nós Excomungamos, apartamos, amaldiçoamos e praguejamos a Baruch de Espinosa. (…) Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar; não queira Adonai perdoar a ele, que então (…) caia nele todas as maldições escritas no livro desta Lei. E vós, os apegados com Adonai, vosso Deus, sejais atento todos vós hoje. Advertindo que ninguém lhe pode falar oralmente nem por escrito, nem lhe fazer nenhum favor, nem estar com ele debaixo do mesmo teto, nem junto com ele a menos de quatro côvados (três palmos, isto é, 0,66m; cúbito), nem ler papel algum feito ou escrito por ele”.

Mas divagamos de novo (sim, essa curiosa carta precisava entrar no livro!). 

Já nos encaminhando para o final, permitam-me negar a dieta de lamber pedras. Para me afastar do antiespecismo místico que iguala a vida de uma espiga de milho à vida de uma borboleta, e iguala a vida de uma borboleta à vida de um pastor alemão, o melhor caminho é o livro “A Revolução das Plantas” de Stefano Mancuso, um dos maiores cientistas do tema. 

Vejamos um trecho: “as plantas consomem pouca energia, fazem movimentos passivos, são ‘construídas’ em módulos, são robustas, têm uma inteligência distribuída (em oposição à dos animais, que é centralizada, comportam-se como colônias (…) Uma planta, se dividida em duas, multiplica-se”. Citando um naturalista francês, ele reforça: “em relação aos animais, na grande maioria dos casos, dividir significa destruir; para os vegetais, dividir é multiplicar”

Uma grande mensagem do livro é que não seria uma vantagem evolutiva das plantas sentirem dor, pois não podem correr dos predadores. Elas recebem e interpretam sinais, elas se comunicam quimicamente com outras, elas possuem estratégias de reprodução, algumas até praticamente “enxergam”, mas são vegetais, não possuem um sistema nervoso central para sofrer ou ter consciência de seu sofrimento, como um porco e uma galinha possuem.

Em outro trecho, ele deixa bem claro: “muitas das soluções [evolutivas] desenvolvidas pelas plantas são exatamente o oposto daquelas criadas pelo mundo animal. Os animais se movem, as plantas ficam paradas; os animais são rápidos, as plantas, lentas; animais consomem, plantas produzem; os animais geram CO2, as plantas fixam CO2… E assim por diante até a oposição decisiva: qualquer função que nos animais é confiada a órgãos específicos, nas plantas é espalhada por todo o corpo”. Inclusive, as plantas atraem e recompensam os animais que as comem, pois é uma maneira eficiente de espalhar suas sementes. 

Ainda assim, expandindo a ideia, mesmo que vegetais sofressem dores extremas como vacas e peixes, você mata mais plantas transformando-as em ração para engordar animais (inclusive peixes) e depois roubar seu leite ou esquartejar sua carne do que comendo diretamente a planta. Há muita violência desnecessária, muito desperdício no caminho.

Portanto, após esse longo caminho passando por Einstein, Buda, Espinosa, Adão e Eva, vemos que uma das grandes esperanças de reduzirmos a violência no mundo é o pensamento revolucionário de só nos alimentarmos de plantas. 

A ética futura do mundo é, 

e tem de ser, 

e será, 

quer sua papila gustativa queira quer não, 

a ética do futuro é vegana. 

***

Apenas uma última observação. Não sei se a leitora percebeu: o filósofo Rawls está no título, mas não apareceu no texto.

Foi proposital, pois gostaria de deixar uma lição de casa para você. Vamos testar o Véu da Ignorância de Rawls? 

Da Wikipédia para explicar o conceito rapidamente: “O véu da ignorância é um método para determinar a moralidade dos problemas. Ele pede ao tomador de decisão que faça uma escolha sobre uma questão moral e pressupõe que ele tenha informações suficientes para saber as consequências de suas possíveis decisões para todos, mas não saberia ou não levaria em conta qual pessoa é. 

“A teoria sustenta que o desconhecimento da posição final de uma pessoa na sociedade levaria à criação de um sistema justo, pois o tomador de decisão não gostaria de tomar decisões que beneficiem um determinado grupo em detrimento de outro, porque o tomador de decisão poderia teoricamente acabar nos dois grupos.”

Então, também para simplificar, vamos assumir que tudo tem vida, até as pedras de Espinosa. E você pode vir ao mundo sendo qualquer coisa: uma pedra, uma flor, um rio, uma barata, uma árvore, um cogumelo, uma galinha, um porco, um ser humano…

Você tem de escolher em que mundo quer entrar, sem saber o que vai ser (se pedra ou planta ou animal etc), qual mundo preferiria vir? Um mundo vegano do monge budista Thich Nhat Hanh ou um mundo carnista do Dalai Lama? O mundo como ele é hoje lotado de abatedouros de animais (que pode ser onde você entrará) ou um mundo em que as pessoas se alimentam apenas de plantas?

Lembrando, pelos números de “vidas”, você possui muito mais probabilidade de vir como um animal que hoje torturamos e comemos (são 70 bilhões por ano mortos, contando só os terrestres) do que como um dos 8 bilhões de seres humanos. O risco é seu, agora você poderá sentir na pele a crueldade psicológica e física que uma vaca leiteira sofre.

Você, no Véu da Ignorância, ainda gostaria de vir a um mundo que justifica essa extrema tortura para uma pessoa aleatória poder se lambuzar de cheddar?

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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