Bradesco, Kafka e o serial killer de gatos

Semana 22

“— Tenho cinco gatos dentro desta valise. Foram todos pegos no terreno baldio. Recém-caçados, fresquinhos. Direto do campo para a mesa. Injetei neles uma droga que lhes paralisou o corpo. A droga não é anestésica. Portanto, os gatos não estão adormecidos, seus sentidos funcionam. Sentem perfeitamente a dor. Mas como têm os músculos paralisados, não conseguem mover as patas. Nem virar a cabeça. Faço isso para evitar que se debatam e me arranhem. Dentro de instantes, vou abrir a barriga deles com uma faca, retirar o coração ainda pulsante e depois decepar-lhes a cabeça. Vou fazer tudo isso diante de seus olhos. Vai correr muito sangue. A dor será indescritível. Você também sentiria muita dor se lhe abrissem a barriga e lhe arrancassem o coração a sangue frio, não sentiria? Pois é isso que vai acontecer com estes gatos. Não podem deixar de sentir dor. Tenho pena deles, não nego. Não sou nenhum sádico desalmado. Faço isto porque não posso evitar. Tem de haver dor.”

Essa cena está no livro “Kafka à Beira Mar” de Haruki Murakami, escritor japonês consagrado no mundo inteiro. Terminei de ler o livro mês passado, a história não é necessariamente sobre gatos, mas essa cena foi a que mais me marcou.

O que isso tem a ver com o Bradesco? Já explico. Primeiro, vamos ao livro. Johnnie é um serial killer de gatos, ele acredita que precisa matá-los, faz parte de um ritual, não tem como evitar. Aqui, ele conversa com Nakata, um velhinho que tem a habilidade de conversar com felinos. Johnny está com dois grandes amigos de Nakata em uma bolsa e vai matá-los, mas faz uma proposta.

“ — Missão é missão. Vou executar todos eles em ordem, um por um, e por último a gatinha Mimi. Temos ainda um pouco de tempo, de modo que você pode se decidir até lá. Das duas, uma: ou eu mato os gatos, ou você me mata.”

A gatinha Mimi é uma siamesa já muito amiga de Nakata, será a última assassinada. Nakata precisa se decidir logo se mata o serial killer para evitar tanta crueldade. A cena continua com um primeiro gato aleatório:

“Johnnie apertou de leve os olhos e, por instantes, acariciou carinhosamente a cabeça do gato. Depois, com a ponta do indicador percorreu de cima a baixo diversas vezes a macia barriga do felino. Apanhou então o bisturi na mão direita e, sem nenhum aviso ou hesitação, rasgou o ventre do macho. Foi um ato instantâneo. A barriga se abriu e os avermelhados órgãos internos transbordaram. O gato abriu a boca e tentou gritar, mas não se ouviu quase nada. Ele devia estar com a língua entorpecida. Nem conseguia abrir a boca direito. Mas os olhos se contraíam em indubitável expressão de violento sofrimento. Nakata conseguia imaginar a intensidade da dor. E então, como se tivesse sido subitamente despertado, o sangue esguichou. Molhou as mãos de Johnnie e manchou-lhe o colete. Mas Johnnie não tomou conhecimento do sangue. Sempre assobiando “Eu vou, eu vou”, meteu a mão no corpo do gato e com a ajuda de um bisturi pequeno retirou o coração com destreza. O coração era pequeno. E parecia bater ainda. Johnnie pôs o pequeno órgão sangrento sobre a palma da mão e o mostrou a Nakata. — Isto é o coração. Ainda pulsa. Veja. – Depois de exibi-lo por instantes, lançou-o para dentro da boca com a maior naturalidade do mundo. Em seguida, mastigou algumas vezes. Apreciou o gosto longamente e deglutiu sem dizer nada. Seus olhos brilhavam com a graça pura dos de uma criança que come um pedaço de doce recém-saído do forno. Depois, enxugou com as costas da mão o sangue que lhe restara em torno da boca. Passou a língua nos lábios e os lambeu cuidadosamente. — Morno e fresco. Continuava a pulsar dentro da boca.”

Ok, mas o que isso tem a ver com o Bradesco? Calma, leitor e leitora, já explico, só vamos acompanhar mais um pouco do ritual do serial killer:

“— Um liquidado! — disse Johnnie, estendendo ambas as mãos sangrentas na direção de Nakata. — Trabalho duro, não acha? A vantagem é que posso comer corações frescos, claro, mas é bem desagradável ter de me sujar de sangue toda vez que faço isto. (…) Johnnie tirou o gato seguinte de dentro da mala. Era uma fêmea branca. Meio idosa. Tinha a ponta do rabo quebrada. Johnnie acariciou-lhe a cabeça por alguns instantes em silêncio, conforme fizera com o anterior. Em seguida, traçou com o dedo uma linha de corte no ventre do animal. Uma linha imaginária que partia da garganta e seguia lentamente até a base do rabo. Pegou em seguida o bisturi e, como da vez anterior, cortou-a de chofre. O resto foi uma repetição da vez anterior. Um grito silencioso. O tremor percorrendo o corpo inteiro. As entranhas se derramando. O coração retirado ainda pulsante, mostrado para Nakata e lançado para dentro da boca de Johnnie. A deglutição lenta. O sorriso satisfeito. A limpeza da boca com as costas das mãos.”

Agora, o serial killer vai começar a pegar os dois gatos amigos de Nakata. A proposta continua de pé: Nakata pode matar Johnnie e impedir a morte dos amigos…

“— Ei, Nakata! — chamou Johnnie Walker alegremente. — Não vale fechar os olhos. A função principal vai começar agora. O que lhe mostrei até agora foi apenas uma abertura. Reles aquecimento. Agora é que vão surgir os gatos que você conhece, Nakata. Abra bem os olhos e olhe. Pois o verdadeiro entretenimento começa a partir deste instante. Espero que aprecie devidamente, pois me empenhei em produzir este crescendo para você. 

“Sempre assobiando, o homem tirou outro gato. Afundado na cadeira, Nakata abriu os olhos e olhou. Era Kawamura. O gato fixou um olhar intenso em Nakata. Que por sua vez suportou esse olhar. Mas Nakata não conseguia pensar. Não conseguia nem se erguer. — Acho que este gato dispensa apresentações. (…) Hello, good bye. A vida é um breve adeus, ou então, uma flor na tempestade — disse Johnnie acariciando com a ponta de um dedo a barriga macia de Kawamura. Uma carícia realmente terna e gentil. — Se quer impedir, é agora, Nakata. É agora.”

O Bradesco lançou na semana passada (final de 2021) uma campanha de sustentabilidade com algumas dicas. Além de baixar o aplicativo do banco para calcular a pegada de carbono, sugeria que os clientes participassem da famosa campanha “Segunda sem Carne”. Com isso, um dia a menos por semana, ajudariam no combate ao aquecimento global reduzindo sua pegada de carbono.

O banco não pediu para ninguém virar vegano, não citou nada sobre sofrimento animal. Era apenas uma ideia que os clientes não comessem carne na segunda-feira. Uma campanha já conhecida globalmente. Mas, no mesmo dia, representantes da pecuária protestaram nas redes sociais afirmando ser absurda aquela recomendação.

Fazendo um paralelo com o livro “Kafka à Beira Mar”, o Bradesco nem falava do sofrimento dos animais, só tentou sugerir ao serial killer para passar um dia (1, hum! dia) por semana sem aquela crueldade. Mas o banco nem citou a crueldade, a mensagem focava no combate ao aquecimento global… Continuemos na cena:

“No dicionário do famoso matador de gatos Johnnie a palavra hesitação não existe. E realmente sem hesitar, Johnnie rasgou o ventre de Kawamura. Seu grito foi perfeitamente audível. Sua língua não devia estar totalmente paralisada. Ou então o grito deste gato tinha uma qualidade especial que o tornava audível apenas a Nakata. Um grito agudo e violento, de enregelar os nervos. Nakata fechou os olhos, segurou a cabeça com as duas mãos. Sentiu as próprias mãos tremendo violentamente.”

Tudo isso ocorre diariamente na indústria da carne, muitos gritos, zero anestesia… Continuemos:

“— Você não pode fechar os olhos — disse Johnnie em tom decidido. — É outra regra. Você não pode fechar os olhos. Nada vai melhorar, mesmo que os feche. Não é porque você fecha os olhos que certas coisas desaparecerão. Ao contrário, muitas coisas tendem a piorar. Vivemos num mundo assim, Nakata. Abra os olhos. Fechá-los é sinal de fraqueza. Desviar o olhar é sinal de covardia. Enquanto você fecha os olhos ou tampa os ouvidos, o tempo passa do mesmo modo. Tique-taque, tique-taque.”

Pois foi isso que os pecuaristas fizeram. Mandaram o Bradesco voltar atrás e não abrir os olhos dos clientes, nem que fosse por 1 dia na semana. Só 1 dia na semana. O todo poderoso banco, um dos maiores do mundo, então recuou diante das ameaças e publicou uma “CARTA ABERTA AO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO”, afirmando que “medidas foram imediatamente tomadas incluindo a remoção do conteúdo de ambiente público, e, além disso, ações administrativas internas severas.”

O que era para ser uma simples campanha de conscientização virou uma amostra da força da pecuária na sociedade brasileira. É um dos setores mais representativos do PIB, nem um banco tradicional como o Bradesco conseguiu segurar a bronca. 

Os assassinatos e a crueldade com animais vão continuar. Os gritos vão continuar. E precisamos abrir os olhos e ouvidos. No livro, a única maneira de Nakata impedir que Johnnie mate sua amiga felina Mimi é ele matando antes o serial killer. Na vida real, a única maneira é com campanhas de conscientização tanto dos consumidores como da indústria. A indústria da carne não precisa se assustar, apenas se adaptar aos novos tempos, fazer uma transição da produção para proteínas vegetais (que muitas já estão fazendo), tudo isso é possível.

A procura por alimentos “plant based” tem aumentado, a população está começando a enxergar, a indústria também precisa acelerar o passo na transição. Daqui a 20 ou 30 anos, vão se envergonhar de lutar contra, então, para que esperar mais? A indústria pode caminhar junto com a demanda da população, mas também impulsioná-la com alimentos cada vez mais sustentáveis e sem crueldade com animais. Podemos salvar a Mimi, juntos, indústria e consumidores.

“Nakata abriu os olhos. Johnnie certificou-se disso e comeu o coração de Kawamura em exibição acintosa. De maneira mais lenta que antes, saboreando com mais prazer. — É macio, morno, lembra tripas de enguias recém-pescadas — disse Johnnie. Meteu o indicador cheio de sangue na boca, chupou-o, tirou-o para fora e o ergueu no ar. — Basta provar uma única vez este gosto para você se viciar. Você não consegue mais esquecê-lo. A viscosidade do sangue, então, é uma delícia indescritível. Limpou o sangue do bisturi num pedaço de pano e, sempre assobiando alegremente, cortou a cabeça de Kawamura com o serrote circular. Os dentes miúdos da serra rangeram ao atingir o osso. O sangue espirrou para todos os lados. — Por favor, senhor Johnnie. Nakata não agüenta mais. 

“Johnnie parou de assobiar. Interrompeu o que fazia, levou a mão a um dos lados do rosto e coçou o lóbulo da orelha. — Ah, isso é muito ruim, Nakata. Você não pode passar mal. (…) O gato seguinte é siamês.  – Assim dizendo, Johnnie extraiu de dentro da mala outro felino inerte. Claro, era Mimi. — E agora… Voilà!, aqui está a gatinha siamesa Mimi. Mais que de qualquer outra raça, eu gosto da siamesa. Na certa você não sabe, Nakata, mas o coração de um siamês é uma preciosidade. Seu gosto tem um traço requintado. Como o de uma trufa, entende? Mas não se preocupe, querida Mimi. Seu lindo coraçãozinho será devidamente saboreado por mim. Ora essa, seu coração disparou, Mimi! 

— Senhor Johnnie — disse Nakata com uma voz que pareceu sair a custo das entranhas. — Por favor. Pare com isso.”

(…) Johnnie voltou a ponta do dedo indicador na direção do peito de Nakata: — Buum! — disse ele. — Eis um resumo da história da humanidade.”

***

ANEXO 1: Para quem quiser, segue a íntegra da carta do Bradesco (assinada por toda presidência). Fica como registro histórico:

“CARTA ABERTA AO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO

Ao longo de seus quase 79 anos de história o Bradesco apoiou de forma plena o segmento do agronegócio brasileiro, estabelecendo parcerias sólidas e produtivas. Tal opção é baseada em sua crença indelével nesse segmento enquanto vetor de desenvolvimento social e econômico do país.

Contudo, nos últimos dias lamentavelmente vimos uma posição descabida de influenciadores digitais em relação ao consumo de carne bovina, associadas à nossa marca.

Importante dizer que tal posição não representa a visão desta casa em relação ao consumo da carne bovina.

Pelo contrário.

O Bradesco acredita e promove direta e indiretamente a pecuária brasileira e por conseguinte o consumo de carne bovina.

Diante do ocorrido, medidas foram imediatamente tomadas, incluindo a remoção do conteúdo de ambiente público, e, além disso, ações administrativas internas severas.

Dessa forma, reiteramos nossa lamenta pelo ocorrido e reforçamos mais uma vez nossa crença irrestrita na pecuária brasileira.”

***

ANEXO 2: Manchete no jornal Valor, dia 03/01/2022: Pecuaristas fazem churrasco em agências do Bradesco em protesto após vídeo contra carne

“Pecuaristas de ao menos cinco Estados fazem na manhã desta segunda-feira (3) churrascos nas portas de agências do Bradesco, em protesto contra um vídeo em que influenciadoras recomendaram um dia sem carne e associam a prática a um aplicativo do banco que calcula pegadas de carbono.

(…) Durante o ato em Cuiabá, cerca de 2.000 espetos de carne são distribuídos para as pessoas que passam pela agência, no centro da cidade. No fim da manhã, uma fila chegou a se formar na porta do prédio.”

Leandro Franz é economista, escritor e wannabe vegano. É autor dos livros “A Pequena Princesa” (Ed. Letramento), “No Útero de Paulo, o Embrião não Nascerá” (Ed. Penalux) e “120 dias de Corona” (Ed. Letramento) – este último lançado agora em 2022.

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